A elaboração do pensamento interdisciplinar na escola: uma proposta de trabalho
"A elaboração do pensamento interdisciplinar é tecida por um sem-número de fios, lenta, pacientemente entrecruzados, articulados, sucedendo-se um ao outro, em um movimento de sincronia, fornecendo forma, solidez , resistência necessária e beleza" (Fazenda,2001,p.32) Essa talvez possa vir a ser uma das mais belas metáforas sobre a interdisciplinaridade: construir relações que se entrecruzam por meio de um processo cumulativo de conhecimentos e que vão ganhando horizontes e definindo caminhos e, a partir deles, criando outros caminhos, como se a cada final de um, iniciasse o outro.
A metáfora é bela, mas esses caminhos que se metaforizam nesses fios, tecidos pelos tecelões, ou seja, pelos sujeitos diretos do ensino/aprendizagem, são caminhos quase ingentes de serem trilhados, partindo do pressuposto de que esse ensino/aprendizagem aconteça em um espaço de educação institucionalizada e técnica, aquela que parece ter-se reduzido exclusivamente a tarefas de custódia das gerações jovens, em que segundo Jackson (1991,p.13) : “ O que realmente se aprende nas salas de aula são habilidades relacionadas com a obediência e a submissão à autoridade”.
Nesse contexto de educação institucionalizada e técnica, os conteúdos ministrados em sala de aula acabam se reduzindo a um âmbito de abstração tão grande que falseiam o exercício da reflexão crítica sobre a realidade e, conseqüentemente, da participação maior dos sujeitos do ensino/aprendizagem no meio social, porque acabam se tornando incompreensíveis, bem como de propriedade daqueles que mantêm o saber e, portanto, o poder.
Dessa maneira, a escola segue a mão do caminho da exclusão, da divisão social do saber e do fazer e da educação vista com os mesmos olhos do mercado: como um produto cuja qualidade pode ser medida, avaliada e controlada por meio dos símbolos que muito superficialmente a refletem: as notas e os conceitos.
Essa educação institucionalizada, muito presente ainda hoje na realidade escolar , reflete o modelo do sistema Toyotista que , segundo Santomé ( 1998, p.17 ) :
“ Originou-se na necessidade particular do Japão de produzir pequenas quantidades de muitos modelos de produtos ; mais tarde,o mesmo evoluiu para converter-se em um verdadeiro sistema de produção.Devido a essa origem, esse sistema é extremamente competitivo na diversificação”.
Entendemos esse modelo de sistema com base no pressuposto do modelo piramidal, incluindo aqui o modelo de sociedade medieval, em que a posição intelectual e social permitia a divisão do poder. O professor, por exemplo, dentro dessa pirâmide, situa-se como um controlador burocrático e disciplinar.
É quase impossível pensar em nuances interdisciplinares nesse modelo de escola que vem ganhando terreno cada vez mais em nossa sociedade contemporânea e que não faz, senão, reproduzir de maneira mais acelerada o que a educação profissionalizante operou no seio da humanidade nos primeiros duzentos e cinqüenta anos da história de nosso país.
Sabemos, entretanto, que a interdisciplinaridade tem emergido em estudos investigativos e que, para alguns teóricos, ela tem a sua razão de ser na busca de novas teorias como novas etapas do desenvolvimento da ciência. Com a complexidade da era contemporânea, as delimitações do saber estão sendo cada vez mais rompidas se levarmos em conta não só os saberes científicos que se modificam e se reconstroem a cada tempo, mas também aqueles que representam o senso comum: as crenças, os mitos, os costumes, dentre tantos outros e que, muitas vezes, são propriedades de estudos de cientistas mais interessados nesse assunto.
Neste trabalho, não estamos querendo adentrar os labirintos da categoria da teoria da complexidade de nossa sociedade, estamos procurando utilizar de nuances interdisciplinares apontando a idéia de que a intertextualidade no ensino de Literatura pode ser um recurso possível para apostarmos em um novo sujeito, um novo tipo de pessoa, contemporânea de seu tempo, mais solidária e mais democrática para enfrentar o que essa sociedade complexa cada vez mais nos apresenta : desafios.
Para tanto, mesmo sabendo que a concepção de interdisciplinaridade é um assunto em tônica a partir do século XX, estamos fazendo um recuo histórico e procurando por meio de uma abordagem mais compreensível , desenvolver aqui o que entendemos, na prática, por interdisciplinaridade e o que evidenciamos ao tratarmos de nuance interdisciplinar.
Não é possível ignorarmos a educação desde os seus primórdios, por isso fazemos esse recuo histórico a partir de Arroyo (1993, p.36-37) :
“ Se na velha ordem era Deus quem vencia o diabo, era a virtude que dominava o vício, e era a graça divina que criava o novo homem livre – livres pela graça de Deus – na nova ordem deveria ser a educação quem venceria a barbárie, afastaria as trevas da ignorância e constituiria o cidadão. (...) A pedagogia adquiriu , nas novas formas de representar o social, uma centralidade nunca tida antes. Passou a ser pensada como um mecanismo central na superação da velha ordem pela nova ordem , Aquela, desprezada como tempo de barbárie, de ignorância, de servidão, de despotismo, esta exaltada como tempo de racionalidade, civilização, liberdade e participação. Uma representação que terminou ocultando a barbárie, o despotismo e a exploração da nova ordem capitalista”.
Arroyo comenta como a escola se articulou durante os tempos e , para nós, continua se articulando, para a formação do homem moderno em sua base científica associada às alterações na produção da vida material .
As necessidades materiais promovidas a partir de modelos econômicos capitalistas, as revoluções industriais ocorridas durante a história da humanidade têm grande responsabilidade no que tange ao conhecimento escolar disciplinarizado, pois agregaram ao sistema capitalista a imagem de um trabalho especializado ou subespecializado que auxiliou e vem auxiliando o ritmo acelerado de produção para o consumo do mercado.
Nesse contexto, a cultura é tida como ciência: ter cultura é ter conhecimento e ter conhecimento é ter a capacidade de atender à produção material e individualista.
Esse modelo de escola, tecnicamente fundado na concepção das ciências naturais, acabou salvaguardando para uns poucos o domínio da ciência e da tecnologia e, conseqüentemente, obedecendo assim, a uma concepção de profissionalização do ensino.
Sobre esse assunto, expressa-se Lima (1974, p.75), reportando-se ao ensino no Brasil na era pombalina:
“ (...) nos primeiros 250 anos da história do país, nosso sistema escolar era constituído de seminários , o que não deixa de ser um ensino, rigorosamente, profissional, apesar de esse tipo de educação ser hoje denominado “ humanístico ”. Estes “ colégios” podem ser considerados um tipo elementar de ensino superior profissional ( formação de padres e burocratas) , o que confirma as teses: a-) os sistemas escolares modernos iniciam-se pelo ensino superior, b-) o ensino superior foi sempre um ensino profissional, c-) o que se chama, hoje, de “ humanismo”, era simplesmente. A forma primitiva de profissionalização”.
Nota-se que o ensino no Brasil na era pombalina se articulou no sentido de estratificar a concepção de educação e, por conseguinte, a função do educador por meio da privação dos saberes constituídos desse educador, interpondo-se entre o discurso do professor e do aluno por uma fala técnica e especializada e reduzindo o contexto da sala de aula a um contexto de circulação de saberes que poucos sentidos e poucas finalidades imprimiam à relação ensino/aprendizagem.
Diante desse modelo profissional, diz Contreras (1997, p. 64):
“ La Idea básica del modelo de racionalidad técnica es que la prática profesial consiste en la solución de problemas mediante la aplicación de un conocimiento teórico y técnico, previamente disponible, que procede de la investigación cientifica. Es instrumental, porque supone la aplicación de técnicase procedimentos que se justifican por su capacidad de conseguir los efectos o resultados desejados”
A partir da segunda metade do século XIX, a idéia de cultura como mundo dos sentidos, dos saberes particulares e não como o mundo do cotidiano emergiu de intelectuais como dicotomia à idéia de cultura como ciência.A cultura passou a ser vista como universal, social e singular e por isso entendida nesses três processos:
Universal por representar um conjunto de práticas, de representações, de comportamentos, de estruturas de ações que apresentam o mínimo de estabilidade; social, por definir comportamentos sob convenções e, muitas vezes, em um plano material, sob exigência de eficácias e particular porque cada um tem o direito de ser diferente.
Nesse âmbito, a interdisciplinaridade acaba ganhando mais atenção e mais defesa, principalmente na teoria geral dos sistemas como estudos globais e totais a respeito do conjunto de elementos que compõem um sistema.
Lembramos aqui que o desconstrutivismo de Jacques Derrida (1976) servira também como estímulos para o pensamento interdisciplinar como forma de desconstruir e reconstruir o pensamento a partir de conexões com variadas formas do saber , formas essas que requerem, sobretudo, domínio prévio.
O próprio modelo teórico de Bruner (1991, p. 42) afirma que a “ revolução cognitiva tal como foi concebida originariamente exigia que a psicologia unisse forças com a antropologia e a lingüística, a história e a filosofia, e mesmo com a disciplina de direito”, pronunciando-se diante da necessidade de se entender a complexidade da sociedade da época.
Nesse recuo histórico, tentamos organizar um pensamento de como a escola se articulou diante desse contexto de mudanças no pensamento humano e de como a interdisciplinaridade foi e vem sendo objeto de estudos , inclusive para se interrogar o currículo escolar fragmentado em disciplinas.
Na concepção de Wallerstein (1990, p. 91), “ as disciplinas são agrupamentos intelectualmente coerentes de objetos de estudos diferentes entre si” , o que nos remete ao conceito positivista de ciência que desconhece a influência dos processos sociais em sua construção, ou seja , aparece como uma atividade pura do pensamento e de acordo com concepção de uma pedagogia disciplinar, especializada, fragmentada e reprodutora das relações sociais.
Assim, o modelo de escola proposto pela retórica pública do final do século XIX , apenas serviu para se confirmar os mitos iluministas, interpretando o mundo por meio de discursos científicos formados dentro de comunidades profissionais e conduzindo o homem a uma libertação dos limites da natureza, rumo a um mundo social mais progressista.
Na década de 1970, em especial no Brasil, a interdisciplinaridade emerge para responder à crise das ciências e para proclamar uma nova racionalidade humana na produção de conhecimentos, bem como para responder à crise paradigmática do ensino institucionalizado pela escola.
Em nossa sociedade contemporânea, estamos ainda diante dessa escola que funciona como o modelo de produção fragmentada e capitalista e não é possível ignorarmos as profundas transformações que o mundo industrial do capital operou no mundo da Literatura e suas conseqüências em relação ao seu consumo estético, mas também é preciso não nos recolhermos à idéia de que a Literatura se degradou diante da fria lógica capitalista e desacreditarmos que um ou mais textos possam contribuir para que o homem descubra sua capacidade de relacionar idéias, de fazer suas conexões e, principalmente, por mais paradoxal que isso venha a ser, para que o homem, inserido no mercado material , perceba, por meio do processo cumulativo de conhecimentos proporcionado pela intertextualidade, a sua própria humanidade.
Em uma perspectiva interdisciplinar, ou seja, aquela que se apóia em um intercâmbio no qual uma ou mais leis tomadas de uma disciplina possam ser usadas para explicar fenômenos de outra disciplina mediante alguma redefinição, algum acúmulo de conhecimento e, principalmente, mediante as conexões possíveis com outras disciplinas, discutimos, neste trabalho, o texto literário como um mosaico de outros textos, alguns mais próximos, alguns mais distantes. Apontamos como o sujeito leitor pode ser capaz de reconhecer os traços e vestígios considerados aqui como nuances interdisciplinares, a partir dos quais esse intercâmbio pode acontecer, uma vez que um texto pressupõe um outro texto, um assunto pressupõe outro assunto e uma análise, outra análise.
Objetivando esse estudo, é necessário discutirmos como o texto literário pode ser trabalhado em sala de aula a partir da perspectiva de fugir das técnicas tradicionais daquele ensino de Literatura centrado na semiologia e na análise sistêmica, ou seja, aquele de se inscrever o texto literário na época de sua produção e de seus principais juízos e características que interessaram a essa época. A título de questionamento do currículo escolar fragmentado por disciplinas, criamos um diálogo entre o sujeito leitor e os textos a partir do seu próprio cotidiano, entendendo esse cotidiano desde o mundo contemporâneo até os impasses individuais vividos nos arredores de cada texto.
Segundo Lajolo ( 1994, p. 32), “ a literatura constitui modalidade privilegiada de leitura em que a liberdade e o prazer são virtualmente ilimitados”. É preciso lembrar também que a Literatura é uma ciência em trânsito com outras ciências e que o prazer, a motivação da aprendizagem podem residir justamente nessa travessia de ciência para ciência, de disciplina para disciplina, ou seja , na interdisciplinaridade. Segundo a autora:
“ Talvez não se tenha refletido ainda o bastante sobre alguns traços que modernas pedagogias e certos modelos de escola renovada imprimiram à educação, principalmente no ensino da literatura. Nesse sentido, urge discutir, por exemplo, o conceito de motivação, porque é em nome dele que a obra literária pode ser completamente desfigurada na prática escolar .Propor palavras cruzadas, sugerir identificação com uma ou outra personagem, dramatizar textos similares que manuais escolares propõem é periférico ao ato da leitura, ao contato íntimo e profundo que o texto literário pede”.
As técnicas de interpretação de textos que se limitam a análises de estruturas textuais e de mensagens centrais dele, muitas vezes, não ultrapassam os limites das mensagens inerentes desses textos e, portanto, não se limitam, senão, a reproduzir o que os manuais escolares propõem.
Para efeito de raciocínio que pretendemos desenvolver e sem a intenção de eleger a disciplina de Literatura como uma disciplina capaz de monopolizar conhecimentos interdisciplinares e reduzi-los a conhecimentos literários, organizamos um estudo a respeito de um poema e, com base nele, apontamos uma abordagem dos fenômenos e de situações que podem ser aferidas desse poema, mas que, em momento algum, podem absorver outras abordagens.
Para exemplificarmos, utilizamos o poema abaixo como referencial de explicações sobre o estudo que propomos:
Lições sobre a água
Este líquido é água.
Quando pura
É inodora, insípida e incolor.
Reduzida a vapor,
Sob tensão e alta temperatura,
Move os êmbolos das máquinas, que, por isso
Se denominam máquinas de vapor
É um bom dissolvente.
Embora com exceções, mas de um modo geral,
Dissolve tudo bem, ácidos, bases e sais.
Congela a zero grau centesimais
E ferve a cem, quando a pressão é normal.
Foi nesse líquido que numa noite cálida de verão,
Sob um luar gomoso e branco de camélia,
Apareceu a boiar o cadáver de OféliaCom um nenúfar na mão.
( Gedeão, Antonio, Poesias Completas, (1956-1967) Lisboa:Portugália, 1971, p.244-245)
Escolhemos esse poema, porque há nele uma linguagem que não é apenas um instrumento, um meio de se expressar, mas uma espécie de revelação , de descortínio da importância da água e da relação dela com o homem e com a natureza. É uma linguagem ordenada que passa, primeiramente, pelos aspectos físicos e químicos da água, entremeia pela ligação deles com o mundo material , “ a máquina ”, e acaba fazendo relação com uma realidade mais cotidiana do leitor iniciante , que é a realidade da água congelada e da água fervente.
Essa linguagem denotativa a respeito da água é aquela que nos permite voltar à concepção de ciência como verdade factual que pode ser aferida. A partir de análises dessas verdades factuais, chegamos, então, a uma análise da última estrofe do poema.
A linguagem, agora, muito mais intuitiva do que a primeira, tem a função de comover, de despertar o leitor para um contraponto às propriedades e às funções da água, ou mesmo , ao seu ciclo hidrológico: o contraponto das tragédias humanas.
Nota-se que, propositalmente, pela semiologia, o próprio tempo verbal se modifica das três primeiras estrofes para a última estrofe com a intenção de despertar o leitor para a mudança da linguagem e marcar o descompasso entre as verdades científicas que podem ser aferidas e as verdades poéticas que não podem ser aferidas como ciência, mas também são verdades, porque têm razões que as justificam.
A título de exemplo, examinamos o potencial do poema numa perspectiva interdisciplinar. É importante ressaltarmos aqui que ainda não estamos exemplificando a intertextualidade como nuance interdisciplinar, mas estamos compondo uma explicação sobre aquilo que entendemos a respeito do que é um texto e sobre uma concepção de nuance interdisciplinar com base nele.
Mais uma vez , alertamos que não nos prendemos ao tema água como objeto central e temático da análise , mas o remetemos a outros temas que são pertinentes a outras áreas do conhecimento escolar e humano . Observando a realidade da comunidade escolar, a escola pode organizar uma historiografia de textos que atendam às necessidades dessa realidade.
Imaginemos que o poema acima fosse o ponto de partida para essa historiografia.
Obviamente, as propriedades da água seriam estudos das ciências naturais, bem como seu uso, suas finalidades, sua conservação, suas diferenciações, suas composições e, por que não dizer , da própria história da ciência, por meio de estudos que mostrem como se constrói o pensamento científico, uma vez que o poema requer um conhecimento prévio sobre os aspectos científicos da água.
Em busca de uma rede interdisciplinar por meio do texto “ Lições sobre a água ” , na disciplina de Geografia, por exemplo, o poema poderia dar margem para estudos sobre a seca nordestina, numa perspectiva geopolítica de se confrontar a miséria e a barbárie produzidas há séculos pela aspereza e escassez da água no sertão nordestino em nome de uma política capitalista ; o que essa escassez provocou e provoca na terra e no homem nordestino.
Matematicamente se discutiria, por exemplo, a questão da quantidade de impostos pagos pelos cidadãos brasileiros e que muitos deles surgiram justamente para se evitar a barbárie, a pobreza, a miséria, não só do sertanejo, mas daqueles que são oprimidos pelo progresso industrial acelerado do mundo contemporâneo. Ainda, o quanto os cofres públicos e o poder político lucram com essa indústria da seca.
Historicamente, é possível compor um estudo sobre o mundo em globalização, sobre as políticas públicas neoliberais: suas origens, suas causas, suas conseqüências e relaciona-las com a miséria, com a pobreza, com os problemas sociais e, por que não dizer, com a escassez de água que, inclusive, parece ser um dos fatores que contribuíram para o racionamento de energia elétrica no Brasil do século XX.
Diante das Artes, por exemplo, um estudo mais aprofundado sobre como os artistas contemporâneos têm alertado em suas composições literário-musicais para os perigos a que a humanidade se submete quando despreza os valores da vida, inclusive, o valor da água.
Esses alertas, por exemplo, estão presentes em músicas de rua (rap), em letras de música popular brasileira de cantores famosos como Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Guilherme Arantes, Chico Buarque, Chico Cezar, dentre tantos outros que se utilizam não só do desprezo pelo valor da vida e da água como perigo para a humanidade , mas também do desprezo pelo valor da amizade, da cooperação, do respeito, da igualdade, do amor.
No que se refere ao estudo de línguas, seja inglesa ou outra língua estrangeira, poder-se-ia pensar em uma leitura de Hamlet, de William Shakespeare, em que a protagonista Ofélia se atira no rio e morre afogada, justamente por se sentir desprezada diante do mundo em que vivia, inspiração, inclusive, expressa na última estrofe do poema acima.
Quanto à Língua Portuguesa e Literatura, objetos centrais deste trabalho, há que se perceber que o texto nos dá margem para diversas abordagens. Pensemos naquela citada inicialmente nesse capítulo: aquela que acolhe categorias sociais para adentrar nas zonas de sombras que circulam no caráter ideológico do texto.
Podemos, por exemplo, falar em semiologia ou semântica, fazendo trabalhos com as palavras que se inserem no texto, bem como a metáfora do nenúfar se contrastando com o drama da tragédia, ou os processos de formação das palavras: insípido, inodoro, dissolvente, centesimais, mas preferimos fazer o caminho daquela análise guiada pela weltanshauung , de origem fenomenológica.
O trabalho em Língua Portuguesa, então, pode estar centrado justamente na categoria social das relações humanas. Como elas têm-se destacado na mídia de forma corriqueira e banal. Por que essas relações têm-se tornado tão vulneráveis? Por que a indiferença diante delas tem crescido assustadoramente entre nós?
Nessa perspectiva, por exemplo, podem ser lidos alguns textos jornalísticos sobre essa questão e inserida uma ou mais obras literárias que tratassem de tal assunto. Sugerimos, aqui, por exemplo, a leitura de alguns trechos da terceira parte de Os sertões , de Euclides da Cunha, intitulada “ A luta ” , em que as expedições militares dos governos Floriano Peixoto e Moreira César investem-se contra os canudenses na Bahia , provocando um dos maiores crimes das nacionalidades em nome de um regime político autoritário e capitalista.
Então estaremos fazendo aquele caminho que Mello Souza (2000, p.91) chama de “olhar social ”, procurando estabelecer um diálogo entre as ciências humanas e as ciências duras e olhando-as como semeaduras desse olhar social , entendendo aqui que essas semeaduras não serão férteis para todo o contexto da sala de aula , mas estarão brotando, aqui e ali , flores e frutos para o porvir.
Segundo o Sermão da sexagésima , de Vieira ( 1997, p.125-126):
“ O semear é uma arte que tem mais natureza do que arte. Nas outras artes, tudo é arte: na música tudo se faz por compasso; na arquitetura tudo se faz por regra; na matemática tudo se faz por conta; na geometria tudo se faz por medida. O semear não é assim. É uma arte sem arte, caia onde cair. Hão de cair as coisas e hão de nascer... Ia o trigo caindo e nascendo...”
Ou ainda segundo Weber (1992, p.81), quando diz:
“O destino de uma época cultural que“ provou da árvore do conhecimento”é ter de saber que podemos falar a respeito do sentido do devir do mundo, não a partir do resultado de uma investigação, por mais perfeita e acabada que seja, mas a partir de nós próprios que temos que ser capazes de criar esse sentido”.
REFERÊNCIAS:
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Autor: Jose Luiz Marques
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