A fixação do valor mínimo da reparação de danos na sentença penal condenatória



A problemática da vítima consiste tema relevante no Direito Penal e na Política criminal. Discussões referentes ao apoio psicológico e material da vítima tornaram-se tendência internacional. Isso, porque, anteriormente, não havia perceptiva preocupação com a vítima no que se refere às consequências do delito; enquanto hoje não mais haverá o abandono da mesma pelo sistema criminal, haverá, outro sim, um atendimento especializado que possibilite a superação do trauma causado pelo delito.

García Pablos, por exemplo, expressa sua opinião ao dizer que “o abandono da vítima do delito é um fato incontestável que se manifesta em todos os âmbitos (...). O Direito Penal contemporâneo – advertem diversos autores – acha-se unilateralmente voltado para a pessoa do infrator, relegando a vítima a uma posição marginal, ao âmbito da previsão social e do Direito Civil material e processual”.

No entanto, após vigorar a Lei Federal nº 11.690/95, em que a vítima foi enfim valorizada no campo criminal nacional, nova lei foi promulgada a fim de dar ênfase à vítima no processo penal: Lei Federal nº 11.719/08.

Apesar da nova redação, o Código de Processo Penal já previa a possibilidade de a vítima, seu representante legal, ou seus herdeiros promover a sentença penal condenatória transitada em julgada no juízo cível – isto é, ação civil ex delicto –, segundo o artigo 64, do CPP, caso em que se procederia a liquidação.

Art. 64.  Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for caso, contra o responsável civil.

A referida Lei passou a vigorar como norma penal incriminadora que visa à proteção de bem jurídico, uma vez que lesão causada por crime pode afetar o patrimônio moral e econômico de determinada pessoa – particularização da vítima. Para tanto, dentre as modificações impostas pelo novo diploma legislativo, verifica-se a alteração no disposto no artigo 387, CPP, introduzindo o inciso IV que inclui o dever de o juiz, na sentença condenatória, fixar o valor mínimo para reparação dos danos causados pela prática de infração penal.

Art. 387.  O juiz, ao proferir sentença condenatória:

(...)

IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

(...)

Diante de tal reforma no Código de Processo Penal, a vítima ou legitimados – arrolados no artigo 63, do Código de Processo Penal – poderão executar, desde logo, no Juízo Cível, a parcela mínima reparatória, sem perigo de prosseguir na apuração do montante efetivamente devido. A execução da parcela mínima estabelecida no artigo 387, inciso IV, nada mais é do que uma das modalidades de ação civil ex delicto, e encontra-se devidamente regulada no parágrafo único do mencionado artigo 63. Ou seja, com a nova sistemática, a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, o ofendido já terá direito a um título executivo líquido, apesar de ainda haver a possibilidade de liquidação de sentença a fim de apurar o efetivo dano sofrido, se a vítima não se satisfizer com o valor mínimo fixado – liquidação por artigos, nos termos do artigo 475-E, do CPC.

Art. 63.  Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

Segundo Jorge de Figueiredo Dias, “a natureza da reparação arbitrada em processo penal não deverá suscitar – e não tem efetivamente suscitado – fundadas dúvidas: trata-se ali de uma verdadeira e própria indenização de perdas e danos, com natureza exclusivamente civil”.

Entretanto, parte da doutrina levanta questionamentos acerca da validade da aludida norma disposta no artigo 387, inciso IV, do Código de Processo Penal. É imprescindível destacar três discutidos obstáculos à imposição de valor mínimo na condenação, a saber: o necessário, ou não, pedido expresso na denúncia ou queixa a fim de obter o título referente à parcela mínima; a legitimidade do Ministério Público para efetuar o ressarcimento patrimonial do ofendido; e, por último, a impossibilidade de se falar em prejuízo causado à ação penal em função da discussão quanto aos prejuízos causados à vítima.

Com relação à necessidade, ou não, de pedido expresso na denúncia ou queixa a fim de obter o título quanto à parcela mínima, somente será possível fixar o valor desde logo na sentença condenatória caso tenha sido objeto de discussão durante o processo, com anterior pedido expresso na petição inicial; e se referente a prejuízos materiais comprovados tanto quanto à sua certeza e liquidez, quanto à sua natureza. Isso, porque, com base no artigo 91, inciso I, do Código Penal, somente haverá de se falar na fixação de valor mínimo para reparação de danos causados pela infração se reconhecida a certeza e a obrigação de indenização dos referidos danos.

Art. 91. São efeitos da condenação:

I - tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.

(...)

No sentido da necessidade de formulação de requerimento, posicionam-se Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:

"[...] não acreditamos que o magistrado possa reconhecer o pleito indenizatório sem que tenha havido requerimento neste sentido. Não funcionaria como um efeito automático da sentença condenatória, que até então apenas tornava certa a obrigação de indenizar. O magistrado não pode julgar extra petita, de sorte que só estabelecerá o valor da indenização se tal requerimento lhe for apresentado, em regra, com a apresentação da inicial acusatória".

No que se refere à legitimidade do Ministério para efetuar o ressarcimento patrimonial do ofendido, além de existir a Defensoria Púbica – órgão público destinado à defesa daqueles que necessitam -, não há de se falar na constitucionalidade da advocacia pelos membros do Ministério Público, nos termos do artigo 129, inciso IX, da Constituição Federal. No entanto, por outro lado, pode-se considerar o Ministério Público parte legítima para efetuar o dito ressarcimento caso pense-se no efeito secundário da sanção penal condenatória; ou seja, deve ser observado somente o valor sobre o qual não haja dúvida quanto à sua origem de dano, à titularidade do acusado e à sua liquidez.

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

(...)

IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas.

(...)

Posiciona-se Mirabete quanto ao assunto: “não obstante parte, o Ministério Público deve conduzir-se com imparcialidade, pois deve defender os interesses da sociedade e fiscalizar a aplicação e a execução das leis”.

Por último, a objeção referente à impossibilidade de se falar em prejuízo causado à ação penal em função da discussão quanto aos prejuízos causados à vítima explica-se pelo fato de a nova legislação impedir o alargamento da instrução criminal, a partir da especificação de valor mínimo devido e demonstrado no desenrolar da ação penal, o que impede, também, o tumulto da persecução penal.

Solucionadas os referidos obstáculos, vale mencionar que a doutrina divide-se em sistemas jurídicos que tratam a relação entre os direitos penal e civil de maneira distinta, a saber: sistemas da confusão, da solidariedade, da livre escolha e da separação.

No Brasil, adotou-se o sistema da independência relativa ou mitigada. Considerando-se que no sistema da separação ou da independência há de se falar em total separação das ações penal – com a finalidade de condenar o réu pela prática do crime - e civil – que visa à reparação de danos -; a independência relativa consiste a subordinação temática de uma esfera à outra com o intuito de evitar decisões contraditórias.

Dessa maneira, as modificações trazidas pela Lei Federal nº 11.719/08 têm função, também de abrandar o sistema da independência entre as instâncias, uma vez que, a partir da fixação de “valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos causados pelo ofendido”, a vítima ou legitimados poderão executar, imediatamente, no juízo cível, a parcela mínima reparatória sem prejuízo de prosseguir na apuração do montante efetivamente devido.

Comprovando que a independência entre as esferas penal e cível é relativa, o Código de Processo Penal prevê, em seu artigo 386, hipóteses de absolvição do réu, as quais respectivamente repercutem no âmbito civil.

Art. 386.  O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça:

I - estar provada a inexistência do fato;

II - não haver prova da existência do fato;

III - não constituir o fato infração penal;

IV – estar provado que o réu não concorreu para a infração penal;

V – não existir prova de ter o réu concorrido para a infração penal;

VI – existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (artigos 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do artigo 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência;

VII – não existir prova suficiente para a condenação.

(...)

Na hipótese do inciso I do artigo acima, caso seja comprovada a inexistência do fato, exclui-se a responsabilidade penal e, por óbvio, também a responsabilidade civil do acusado. Isso, porque a inexistência do fato impossibilita o ajuizamento de ação civil ex delicto para reparação do dano, nos termos do artigo 66, do Código de Processo Penal.

Art. 66.  Não obstante a sentença absolutória no juízo criminal, a ação civil poderá ser proposta quando não tiver sido, categoricamente, reconhecida a inexistência material do fato.

Capez enfatiza a importância da repercussão na esfera cível deste dispositivo alegando: "o inciso I (inexistência do fato) possui importante repercussão na esfera cível, na medida em que impossibilita o ajuizamento de ação civil ex delicto para reparação do dano (CPP, art. 66)".

Na hipótese prevista no inciso II, não há de se falar na impossibilidade de ajuizamento de ação ex delicto para reparação de dano em função de “não haver prova da existência do fato”, visto que a inexistência de provas, dentro do processo penal, que comprovem o fato não significa que este não ocorreu; é possível, pois, a responsabilização civil do acusado.

Na hipótese do inciso III, caso não constitua o fato infração penal, não haverá impedimento à propositura de ação civil, pois ainda que o fato configure-se como atípico e, portanto, não seja um ilícito penal, nada impede que o mesmo seja compreendido como ilícito civil. Nesse caso, a decisão proferida em âmbito criminal não terá influência sobre aquela dada em juízo cível.

Nesse caso, Damásio de Jesus afirma: “absolvido o réu, nada obsta ao exercício da ação civil, pois o fato, embora não constitua ilícito penal, pode constituir ilícito civil. É o que determina o art. 67, III, do CPP”.

Caso não haja prova da existência de ter o réu concorrido para a infração penal, ou seja, se não for comprovada a participação do réu ou execução do crime por ele, com base no princípio do in dúbio pro reo - segundo o qual presume-se que o réu seja inocente -, o mesmo será absolvido pelo juízo criminal. No entanto, ainda assim, a responsabilidade civil poderá ser analisada.

Na hipótese de existir circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, ocorrerá influência na jurisdição civil, visto que, nos termos do artigo 65, do Código de Processo Penal, poderá haver impedimento da propositura da ação civil – para satisfação de dano ex delicto – salvo as exceções previstas nos artigos 929 e 930 do Código Civil. Ou seja, como regra, absolvido o réu devido a causa excludente de ilicitude, será excluído, também, o exercício da ação civil; no entanto, em casos determinados, a lei estabelece o ressarcimento do dano, havendo, pois, efeitos no âmbito civil.

Art. 65.  Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Por último, no caso de não existir prova suficiente para a condenação, analogamente às interpretações dos incisos II, III e IV, também na hipótese do inciso VII haverá a possibilidade de se propor ação indenizatória na esfera cível.

Atinente a este dispositivo Mirabete diz que “mais raras são as sentenças proferidas com base nesse inciso, já que em primeiro lugar, o juiz, na análise dos fatos, adequará a absolvição em um dos incisos anteriores”.

Ademais, o dispositivo legal que autoriza o magistrado criminal a fixar o valor mínimo da indenização civil está associado ao princípio da celeridade processual, já que, quando da prolação da sentença condenatória, desde logo se fixe o referido valor. Imprescindível destacar, para finalizar, que o dispositivo em questão não retira da esfera cível a competência para fixação de indenização, haja vista que o juiz prolator da sentença criminal fixa valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração somente.

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