“Muere a los 99 años el cineasta pedro almodóvar”
“Muere a los 99 años el cineasta Pedro Almodóvar”
Diziam que eu era espelho. Assim chamavam as crianças que imitavam os adultos encenando. E eu imitava. Antonio Serafín, Vicente P. Lurdes, Juan Amado, Simone, Mercedes, Stela de Paula... Agora as fortíssimas memórias da infância retornam, e talvez sejam elas as responsáveis por este sonho extravagante.
Eu era o menino que abria a porta. O personagem do Vicente tinha de entrar. Então a campainha tocava, eu abria a porta e ele dizia “deseo hablar con tu madre”. Eu devia ter uns doze anos de idade. Almodóvar um pouco mais de sessenta. Meu pai e eu havíamos ido à Espanha de férias em 1973 e no nosso terceiro dia lá presenciamos uma filmagem na rua lateral ao nosso hotel. Não sabíamos quem era o diretor, que gritava, gesticulando com os braços e também com os pés. “¡Más fuerte!”, ele dizia ao casal de atores seminus que brigavam na calçada. As seminudezes me chocaram menos que os gritos de Almodóvar. Meu pai me conseguiu um bico como figurante, apesar de que a intenção dele era conseguir um bico ele mesmo. Acho que foi nesse momento que ele começou a me detestar, quando percebeu que eu tomaria tudo o que era dele. Dali a uns dois dias eu estava no set abrindo a tal porta...
Não me lembro de ter falado longamente com Almodóvar. Sei que foi tudo muito rápido, não mais que meia hora. Ele era muito magro, vestia camiseta e estava de chinelos, apesar do frio; “todo lo que tienes que hacer es abrir esta puerta”, ele me disse, apontando para a porta, como se eu ainda não a tivesse visto.
Divertido mesmo era brincar com os atores nos intervalos das filmagens. Juan fazia um jogo muito interessante com cartas, que consistia no seguinte: ele as usava para montar uma pirâmide, enfileirando-as em sequências de 7, 5, 3 e 1. Os jogadores deveriam retirar quantas cartas quisessem, desde que fosse apenas da mesma fileira. Quem tivesse de tirar a última carta, perdia. O fato era que só o Juan ganhava, porque todos (Almodóvar não participou), não importava o que fizessem ou qual tática adotassem, sempre tinham de tirar a última carta. Juan não nos revelou o segredo. Disse que havia aprendido o jogo com um príncipe falido, de linhagem indiana, que conhecera durante uma viagem à Escócia. Só mais de vinte anos depois descobri que era mentira: esse truque era feito num filme de Alain Resnais, lançado havia mais de uma década, chamado Ano Passado em Marienbad. Além de Juan, quem me divertia bastante era Stela de Paula, que havia trazido seus dez cães da raça Shih Tzu e tratava deles com zelo muito exagerado. Eles comiam uma ração colorida e Stela chegava a separar as cores de acordo com o humor de cada um. Segundo ela, um dos cães sofria de depressão porque havia ficado abalado com a horrível morte de Pablo Picasso. Mercedes e meu pai se declararam completamente descrentes dessa história. Achavam que o cãozinho, na verdade, tinha otite ou, talvez, um princípio de labirintite, de maneira que quando ele andava, seu caminhar parecia débil e displicente, sintomas que ambos atribuíam à depressão apenas por aproximação e semelhança, mas que nada tinham de fundo psicológico. Eu, por minha vez, acreditava que mal do cão era lombriga.
Eles sempre pediam que eu brincasse de espelho. Punham-me de pé e diziam “haz lo mismo que nosotros”. Alguns encenavam espantalhos, outros se fingiam de animais, e eu imitava. As mulheres sempre faziam gestos exageradamente femininos, na intenção de me constranger, mas eu só achava graça e imitava tudo sem nenhum pudor. Às vezes eu me cansava ou me enchia da brincadeira, mas eles queriam que eu continuasse. Por eles, se ninguém nos interrompesse, eu ficaria naquilo dias e dias. Esse povo de cinema não sabe parar...
Eis que agora acordo assombrado por esse sonho terrível. Foi um cochilo rápido. Ainda eram onze da noite. Respondi alguns e-mails e meus olhos começaram a arder demais, sintomas da idade e dos remédios. Deitei no sofá e dormi imediatamente. No sonho, eu estava na cama. A casa estava escura e eu não sabia bem onde estava, porque era como se eu estivesse dentro e fora de casa ao mesmo tempo. Trata-se de uma sensação muito peculiar aos sonhos; isso porque a pessoa está ao mesmo tempo parada, porque dorme, e em movimento, porque passeia na imaginação. No sonho, eu levantava da cama e procurava o interruptor para acender a luz, mas não encontrava. Eu não conseguia me mover direito. Era como se eu ainda fosse um feto... Eu ouvi um ruído familiar, arcaico. Era o rádio. A voz do locutor me guiou pelos cômodos e finalmente encontrei o corredor. Foi estranho não poder me orientar dentro da minha própria casa, mas não tão estranho quanto a notícia que o rádio anunciava:
“Muere a los 99 años el cineasta Pedro Almodóvar”
O locutor deve ter repetido essa frase umas cem vezes, como um mantra. Acordei num impulso tão violento que caí do sofá. Aquilo não fazia o menor sentido: vivemos numa era em que as pessoas só ficam sabendo das notícias através da internet ou da televisão — O rádio não nos serve para mais nada, nem para ouvir música. Portanto, as informações que ele me passasse não poderiam ter nenhuma credibilidade! Teria sido, então, um sonho premonitório? Eu não acredito nessas coisas, entretanto, é muito comum experienciarmos situações nas quais não acreditamos, assim é com o casamento, a família, o socialismo, a democracia... Mas, por outro lado, por que um sonho premonitório, no qual eu não acredito, teria mais credibilidade que notícias de rádio, às quais ninguém dá valor?
A sensação desagradável do sonho só desapareceu completamente depois das duas da manhã, quando finalmente peguei no sono de novo. Aí foi tudo diferente: sonhei que tinha viajado à Espanha de férias com meu pai e que fazia uma ponta num filme de Pedro Almodóvar. O filme se chama “Sueño” e eu era o menino que abria a porta...
Fim
Sodine Üe (12 de novembro de 2011)
Autor: Sodine Üe
Artigos Relacionados
Tem Um Bicho Debaixo Da Minha Cama
Promessas
Arquivos Mentais Abertos
Absolvição
Parto "a"normal
A Confissão De Pedro.
O Teu Eterno Momento