Transação penal em ações de iniciativa privada: faculdade do ofendido?



1 - INTRODUÇÃO

Com a edição da Lei n. 9099/95, o legislador deu cumprimento ao art. 98, inciso I, da Constituição Federal, que previu a criação, no âmbito do Poder Judiciário, de "juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menos complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumariíssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau".

A lei n. 9099/95, implantou no Brasil um sistema, que busca estabelecer o consenso para a composição dos litígios, sempre mediante o efetivo acordo entre as partes processuais, com mediação judicial. A nova lei estabeleceu uma política criminal, que permite a exclusão do processo, em benefício do acusado, onde propostas de aplicação imediata de pena restritiva de direito ou multas serão feitas ao réu, pelo instituto da transação penal. 

A transação penal é um instituto baseado no “pleabargaining” (possibilidade do promotor negociar diretamente com o advogado do réu).  Dámasio E. de Jesus conceitua a transação penal: “Trata-se de um negócio entre o ministério público e a defesa, possibilitando-se ao juiz, de imediato, aplicar uma pena alternativa ao autuado, justa para a acusação e defesa.”

 

2 - DESENVOLVIMENTO

O artigo 76 da Lei 9099/95 ("Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta"), permite que antes do oferecimento da denúncia, portanto, na fase administrativa ou pré-processual, o Ministério Público proponha um acordo, transacionando o direito de punir do Estado com o direito à liberdade do acusado, desde que presentes os pressupostos objetivos e subjetivos previstos no artigo 76, parágrafo 2º, incisos I, II e III da lei 9099/95: “ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida”.

O que se discute é a natureza jurídica do instituto previsto no art. 76 da Lei n. 9099/95. Trata-se de uma faculdade do acusado, sendo aplicado inclusive nos casos de ação penal de iniciativa pública condicionada ou privada?

Se analisarmos o citado artigo 76 da lei 9099/95, parece ser claro que o cabimento da transação penal restringe-se apenas aos crimes de ação penal pública (condicionada ou incondicionada).

Nesse sentido, parte da doutrina (Júlio Fabbrini Mirabete, Marcelus Polastri Lima, entre outros), é contrária à possibilidade de aplicação da transação penal à ação penal privada. Sobre o argumento da ausência de previsão legal no CPP, da legitimidade exclusiva do MP para propor a transação e de que o ofendido já possui outras possibilidades que lhe permitem renunciar ao direito de queixa (renúncia, decadência) ou mesmo desistir da ação ofertada (perdão, perempção), sendo-lhe, portanto, desnecessária a transação. 

 

Apesar disso, outra parte da doutrina (Ada Pellegrini Grinover e Scarance e Luiz Flávio Gomes), da qual minha opinião se assemelha, defende a possibilidade de aplicação deste instituto também à ação penal privada.

Especificamente, Ada Pellegrini Grinover diz que em razão da aplicação analógica do art. 76 à ação penal privada, deve-se permitir "que a faculdade de transacionar, em matéria penal, se estenda ao ofendido, titular da queixa-crime (...)", isso porque "Como somente deste é a legitimidade ativa à ação, ainda que a título de substituição processual, somente a ele caberia transacionar em matéria penal, devendo o Ministério Público, nesses casos, limitar-se a opinar”.

Ainda em linha de argumentação a doutrina de Scarance e Luiz Flávio Gomes, entende que a vítima, teria também interesse na punição do agente. “A vítima, que viu frustrado o acordo civil do art. 74, quase certamente oferecerá a queixa, se nenhuma outra alternativa lhe for oferecida. Mas, se pode o mais, por que não poderia o menos? Talvez sua satisfação, no âmbito penal se reduza à imposição imediata de uma pena restritiva de direitos ou multa, e não se vêem razões válidas para obstar-se-lhe a via da transação que, se aceita pelo autuado, será mais benéfica também para este.”

 

Soma-se a essa idéia o argumento de Scarance e Luiz Flávio Gomes afirmam que “Acima de preciosismos linguísticos, está o interesse maior na efetiva realização de uma política criminal alternativa, assim como o interesse do próprio acusado de valer-se, querendo, dessa resposta estatal alternativa”.

No STJ, há entendimento a respeito do cabimento desse instituto (transação) nas ações penais de iniciativa privada:

 

STJ. CORTE ESPECIAL: (5.ª T. - HC n. 34.085/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, j. em 8.6.2004, DJ de 2.8.2004, p. 457): A Terceira Seção desta Egrégia Corte firmou o entendimento no sentido de que, preenchidos os requisitos autorizadores, a Lei dos Juizados Especiais Criminais aplica-se aos crimes sujeitos a ritos especiais, inclusive aqueles apurados mediante ação penal exclusivamente privada. Ressalte-se que tal aplicação se estende, até mesmo, aos institutos da transação penal e da suspensão do processo".

 

 

STJ (HC 13337/RJ julgado em 15/05/2001): PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. LEI Nº 9.099/95. AÇÃO PENAL PRIVADA. A Lei nº 9.099/95, desde que obedecidos os requisitos autorizadores, permite a transação e a suspensão condicional do processo, inclusive nas ações penais de iniciativa exclusivamente privada.

 

STJ. CORTE ESPECIAL (Apn 390/DF julgado em 01/06/2005): Tratando-se de delito que se apura mediante ação penal privada, a proposta de transação penal deve ser feita pelo querelante.

 

 

3 - CONCLUSÃO

A Lei n. 9099/95 tem como fundamento o consenso entre as partes, não se permitindo a violação da autonomia da vontade de qualquer delas. Nesse sentido, não pode deixar de admitir a transação, atendendo o requerimento do ofendido.

Enfim, as infrações de ação penal privada, ao meu ver, admite o instituto da transação penal, o qual pode ser proposto pelo Ministério Público, desde que não haja discordância do ofendido, o que impõe considerar que o ofendido é quem detém facultativamente a legitimidade para a propositura.

 

4 - REFERÊNCIAS

GRINOVER, Ada Pellegrini - Juizados Especiais Criminais. 4. ed. São Paulo: RT, 2002. p. 142-143.

JESUS, Damásio de. Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada. São Paulo. Saraiva. 7ª ed. 2002.

LIMA, Marcelus Polastri  - Novas Leis Criminais Especiais. Vol I, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 63 e 148.

MIRABETE , Júlio Fabbrini - Juizados Especiais Criminais. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 137.

SCARENCE e Luiz Flávio Gomes - Juizados Especiais Criminais. 4 ed. São Paulo: RT, 2002, p. 269.

 

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Autor: Fernando Nepomuceno Bicalho Santos


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