Breve ensaio sobre o Fogo
Breve ensaio sobre o Fogo
(A opção pelo Fogo como instrumento de Dolo)
Sodine Üe
Sempre que tentamos determinar a origem do fogo, somos postos diante de duas vertentes, ao mesmo tempo, diversas e complementares, e que não podem ausentar-se deste discreto estudo. A primeira delas nos lança milhões de anos atrás, quando o homem pré-histórico reproduz deliberadamente o fogo, sem dúvida a mais significativa aquisição natural humana. A segunda vertente aponta, como não poderia deixar de ser, para os mitos. O titã Prometeu rouba de Zeus o “brilho longevisível do infatigável fogo¹” e o entrega aos homens. É importante destacar já a partir deste momento a personalidade de Prometeu: Hesíodo o descreve como “astuto”, um indivíduo de “curvo pensar”, o “mais hábil em seus desígnios”. Até certa medida, este ensaio, como se verá, não abandonará tais definições quando se referir àqueles que optam pelo Fogo como instrumento de Dolo.
***
O fogo é o mais cômodo de todos os instrumentos. Não está vinculado à violência, nem ao sangue: os queimados não sangram. Ele é higiênico e, portanto, solitário. Quando se ateia fogo em alguém ou em alguma coisa, usando ou não substâncias que o deflagrem com mais facilidade, deve-se correr, sair de perto imediatamente, com o risco de também o próprio incendiário acabar se queimando.
Consequentemente, o incendiário vê o incêndio sempre de muito longe, ou, na maioria das vezes, nem vê. Muito diferente é o uso de outros instrumentos. Golpear com um bastão, um machado ou um martelo, por exemplo, é sempre perigoso, demorado. Se o golpe é desferido contra um objeto, corre-se o risco de alguma parte, minúscula que seja, se desprender a ferir aquele que golpeia (se alguém martela um vidro, um caco pode alojar-se em seu olho ou cortar seu rosto); se a vítima dos golpes é uma pessoa, o agressor deve, acima de tudo, preparar-se para o revide, afinal de contas, o agredido pode levantar-se, tomar a arma da mão de seu algoz: a vítima de queimadura nunca revida; caso consiga levantar-se, o máximo que pensa fazer é encontrar ajuda, ou água para salvar-se. Há também mais dois inconvenientes no caso dos golpes. O primeiro deles é o sangue. Ferir a golpes significa estar no máximo a 30 centímetros do inimigo, ou seja, o agressor deve ter estômago forte, deve desprezar a limpeza, deve ter tendência ao contato físico e não pode jamais se embaraçar com o espaço, uma vez que o objeto utilizado para bater pode resvalar numa parede ou derrubar algo ao redor. Esses pequenos empecilhos, que se tornam coadjuvantes da ação, precisam ser ao mesmo tempo ignorados e medidos, para que não comprometam o movimento. Uma característica relevante do agressor que opta por esse tipo de arma é o descuido com o asseio pessoal: golpear implica sujar-se porque, não raro, a vítima cai e leva junto o agressor (a contaminação vai desde o sangue até a imundície do piso, dependendo de onde ocorre a briga). Mais: esse agressor deve abdicar dos próprios sentidos: golpear uma pessoa implica ouvir seus gritos de dor e desespero, sentir o cheiro de seu suor, de sua urina ou de suas fezes (não raro, a pessoa agredida chega até a vomitar). O segundo problema é o tempo. Golpear sempre demora, não importa se o golpeado é uma coisa ou uma pessoa; é preciso repetir o gesto pelo menos mais de uma vez, o que exige alguma força e o mínimo de precisão.
Nenhum desses problemas se aplica ao fogo. A coisa ou a pessoa incendiada está longe, ficou para trás, e o incendiário já se afastou. Mesmo a questão olfativa se torna irrelevante: é muito mais cômodo sentir o cheiro de um carro queimando do que o cheiro das fezes de um golpeado — o mesmo se pode dizer quando o que está queimando é uma pessoa; aliás, poucos conhecem o cheiro de um corpo em chamas, mais uma comodidade, sem dúvida.
O fogo, ao contrário do golpe, envolve totalmente o objeto incendiado e não faz com que ele libere nada. Pode-se dizer que o incêndio é sempre um acontecimento limitado e determinado; assim é porque aquilo que queima diminuirá gradativamente, até sumir. A intenção do incendiário é, portanto, inicial e final, uma vez que o fogo é também uma medida: medida que compreende o objeto que queima; mesmo em linguagem médica, o estrago é proporcionalmente porcentual: ter 30% do corpo queimado é menos grave do que ter 70% — a propósito, o mesmo ocorre com a avaliação do seguro de um carro em caso de incêndio.
O dolo impetrado não se destina apenas a desfigurar, mas sim a fazer sumir, de maneira ordenada e medida, aquilo que não é mais suportável de se encarar, seja um rosto odiado ou um documento comprometedor do qual o indivíduo quer se livrar. Afirmar que o uso do fogo é também uma opção ordenada e medida, ou seja, uma opção proveniente da razão, se aplica e se confirma, inclusive, no ato da cremação, em que o parente pode levar para casa, de maneira muito prática, as cinzas do falecido — o corpo do falecido, compactado, leve, frágil, mas, acima de tudo, social. Trata-se de um procedimento caríssimo e, por isso mesmo, luxuoso, entretanto, não exótico, especialmente se comparado a outras formas de manutenção do corpo de um cadáver. Quando pensamos que Eva Perón morreu em 1952, mas só foi definitivamente enterrada em 1974 — e que neste meio tempo seu cadáver embalsamado ficara exposto de todas as maneiras, sendo, inclusive, roubado, enterrado e desenterrado para ser novamente exposto —, temos uma perspectiva perfeita do evidente distanciamento entre esse tipo de tratamento e aquele oferecido pela cremação. Se Juan Perón a tivesse cremado e a mantivesse numa pequena urna em sua sala de estar, pouco esse fato nos afetaria, e isso porque nos sentimos atraídos pelo Poder: aquilo que é queimado, se não desaparece completamente, passa a caber na palma da mão; queimar é um status de poder, de superioridade, o que nos induz a pensar que optar pelo fogo significa estar lúcido, sob todos os aspectos, pois o anseio pelo poder através do dolo é a principal característica da lucidez. No caso de uma agressão, a pessoa ou a parte do corpo golpeada nunca diminui de tamanho, muito menos desaparece. Quando o agredido é uma pessoa, ocorre exatamente o contrário, ela sempre incha. A aparência intumescida de uma face agredida já é quase uma tautologia, se não tudo isso, é já um lugar-comum, pelo menos nas maquiagens dos filmes; uma briga cinematográfica só é verossímil quando quem apanhou traz no rosto as marcas da surra (como se depois de uma briga a única parte inchada fosse o rosto...).
Se a parte afetada pelo golpe foi a cabeça, sabidamente a mais importante, o problema se torna gravíssimo. Os médicos avaliam de duas maneiras distintas esse tipo de lesão: elas podem ser por aceleração (quando um objeto se choca contra a cabeça) ou por desaceleração (quando é a cabeça que se choca contra algum objeto). É o chamado coup contrecoup. Em ambos os casos, o resultado pode ser um só: traumatismo craniano. Curiosamente, a metáfora mais comum relacionada ao edema oriundo do golpe é também o inchaço. Quando se fala em edema, pensa-se logo que o cérebro ferido está inchando, não raro, o medo é de que ele exploda. Na verdade, o problema é exatamente o oposto: o edema torna-se um perigo justamente por não ter como expandir-se, o que pode destruir o tecido cerebral. Da mesma forma, um objeto golpeado se deforma, mas não perde massa.
Já no caso do corpo queimado, o que se sabe é que ele encolhe. Um braço queimado nunca mais esticará, assim também os dedos; o couro cabeludo queimado não produzirá mais nem um fio. Deduz-se que o queimado perdeu massa, passa-se a falar, naturalmente, em enxertos de pele. No fogo há, entretanto, outra forma de inchaço totalmente rejeitada quando em sua utilização como instrumento de agressão: as bolhas. Deve-se ressaltar, contudo, que se trata de uma consequência apenas da queimadura de segundo grau, considerada grave, mas geralmente não letal. Quando o incendiário pretende matar sua vítima, a imagem ingênua das bolhas é excluída de sua mente. O mais que se pode pensar é que, neste caso, mesmo essas bolhas serão incendiadas e o queimado, assim, finalizará a si mesmo. “O fogo começa e termina sozinho”, pensa o incendiário. De fato, o fogo devasta, apequena, e, se não detido, transforma em pó. Isso nos faz concluir que o agressor que usa o fogo deseja, antes de mais nada, que a vítima desapareça de seu ângulo de visão. Essa é uma característica muito importante que evoca o fogo como instrumento do Mal, mas não como ferramenta de violência.
De fato, associar o golpe à violência significa considerá-lo “não mal”, genuíno, possível — qualquer um pode golpear, mas nem todos podem queimar, e isso porque, como se sabe, é possível golpear “um pouco”, assim como uma mãe que bate no filho de leve para educá-lo (o que a classifica como violenta, mas não como má), também no caso do lutador que mais golpeia o adversário (e que por isso mesmo vence) ou mesmo quando alguém dá um tapa na tv para fazer com que ela “pegue no tranco”. Essas atitudes passam longe do fogo: uma mãe jamais pode queimar um filho de leve. O mesmo se aplica ao caso da tv.
O golpe é, em muitos casos, um sinal de não premeditação, uma vez que, num acesso de ira ou num momento de pressa, qualquer objeto pode ser utilizado para golpear (veja-se o caso do indivíduo que precisa de um martelo e que, na falta dele, acaba usando uma lata ou uma pedra). O fogo é insubstituível; na falta dele, não há instrumento compatível. O fato de se poder também queimar qualquer coisa facilmente por intermédio da eletricidade ou mesmo usando substâncias químicas não é jamais cogitado; o ácido sulfúrico causa muito mais danos a uma pessoa que uma queimadura por fogo, pois é nocivo não só ao contato com a pele, mas também se inalado, causa vômito, diarréia, colapso circulatório, pulsação fraca e rápida, baixa respiração, edema pulmonar, é corrosivo, afeta os dentes e é cancerígeno. A tudo isso soma-se seu surpreende fator de flamabilidade = 0, ou seja, ele não incendeia sob nenhuma hipótese.
O lugar do fogo como instrumento para queimar é permanente no imaginário histórico dos indivíduos, quiçá irremovível. O sol, grande símbolo de fogo, não raro, é classificado como bola de fogo ou bola em chamas, e com o agravamento do aquecimento global, adotou-se de vez a ideia de que ele queima, esquecendo-se de vez de sua utilização romântico-burguesa, não muito antiga, em que ele servia para aquecer. “Deve-se temê-lo”, alertam mesmo os cientistas, “porque ele pode queimar” — o que significa afirmar que, para as pessoas, o fogo que arde no sol é o mesmo produzido pelo fósforo e é também o mesmo que se obtém incendiando uma garrafa de álcool. Ou seja, pensa-se, de fato, que só existe um único tipo de fogo. Isso, no mínimo, contraria a lógica, uma vez que cada objeto inflamável é composto por substâncias químicas diferentes, pressupõe-se, portanto, que cada fogo gerado será um fogo também diferente.
O ato pelo fogo é invariavelmente premeditado, escapa ao impulso. Para queimar alguém ou alguma coisa é preciso planejar; não raro, os jornais noticiam casos de ex-maridos que incendeiam as ex-companheiras e que, antes, tiveram de comprar uma garrafa de álcool (o que, juridicamente, já configura premeditação). Também nas queimadas programadas (em encostas, para obras, em canaviais, para limpeza do terreno etc.) são necessárias barricadas para que o fogo não se alastre além do necessário. Para atear fogo é preciso planejamento.
Mas, afinal de contas, por que optar pelo fogo como instrumento de dolo? Por comodidade, sem dúvida, por higiene e, como se demonstrou, para alcançar Poder.
Pode-se dizer que o fogo é um constrangimento da força em favorecimento do Poder. Essa afirmação se aplica a Nero, no mínimo, a respeito de quem é visível a diferenciação estabelecida entre o assassinato de sua mãe, que é comumente citado como manifestação irreparável de sua maldade, e o incêndio de Roma, que, numa virada espetacular de interpretação, nos chega ainda hoje não como um ato mal, mas como o momento em que se inicia e se fixa permanentemente a sua loucura. Pode-se ainda estender essa afirmação — e sua extravagante dupla interpretação — ao Santo Ofício, que adotou a fogueira como meio de execução, mas não como meio de tortura.
Talvez a distorção relacionada a esta e a outras questões fundamenta-se na compreensão lateral da maldade. Para o humano, o mal sempre foi representado pelo Dolo, mas nem sempre o Dolo foi vinculado ao Mal. Com isso, surge a ideia do Dolo Maligno, uma definição absurda, estranha e impossível, por intermédio da qual estes mesmos indivíduos são levados a perguntar: haverá, na outra extremidade, o “dolo benigno”?
***
Gostaria de terminar este breve ensaio relembrando uma notícia antiga, provavelmente já esquecida, sobre um índio pataxó — a quem este trabalho é dedicado:
“Agência Folha 21/04/1997 20h06 – De BrasíliaO índio pataxó Galdino Jesus dos Santos morreu nesta madrugada no Hospital da Asa Norte de Brasília. Na madrugada de sábado para domingo, cinco rapazes atearam fogo em Santos com um líquido inflamável. O índio teve 95% do corpo queimado.”²
1 Teogonia A Origem dos Deuses – Hesíodo (Estudo e Tradução Jaa Torrano)
2 Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fol/geral/ge21041.htm
Autor: Sodine Üe
Artigos Relacionados
Elias NÃo Subiu Ao CÉu Em Um Carro De Fogo
Elias Não Viajou Em Um Carro De Fogo
EscorpiÃo
Quero Ser Fiel A Ti
Promessas
Roubo
Fogo