Foucault: Uma Interpretação Filosófica Do Direito Do Consumidor



1 - INTRODUÇÃO

A história do direito do consumidor no Brasil não é tão curta como pretendem alguns doutrinadores e conservadores civilistas, principalmente aqueles que defendem a ala privatista extremada, como parece ser o caso do principal responsável pelo projeto do Código Civil de 1916. O Direito Material do Consume é inerente a todas as relações sociais, destarte, as sociedade, mesmo aquelas que vivem em regime socialista, estabelecem relações de compra e venda de produtos e serviços, em que um dos pólos – pessoa física ou jurídica - tem o desiderato de utilizá-los como destinatário final.

Assim, o Direito do Consumidor nasceu muito antes do dia 11 de setembro de 1990, quando da promulgação da Lei nº. 8.087. Isto pode ser confirmado com antigas publicações e obras de grandes doutrinadores brasileiros, como a obra Direito do Consumidor do renomado mestre Hely Lopes Meirelles, cuja primeira edição data de 1976, sem mencionar outras produções acadêmicas tão importantes quanto e livros de autores estrangeiros, publicados décadas antes. Entretanto, é importante frisar que o Direito do Consumidor teve seu maior auge com o advento do estado de bem estar social.

Até meados do século XX, era o direito do civil que regia as relações de consumo e imperava sozinho, entretanto, com o fim da primeira guerra mundial, e principalmente da Segunda Grande Guerra, o Estado Liberal que tinha suas raízes em John Locke, foi buscar novas bases para seu desenvolvimento e manutenção. A experiência liberal já perecia ter dado seus frutos de banisses e também de aversões, entre estas as idéias de Estado Socialista e do regime comunista.

Dessarte, os países capitalistas precisavam se proteger contar a chamada "maré vermelha", que se difundira, principalmente, por causa da indispensável e decisiva participação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Eis, que surge o well fair state, ou seja, um novo modelo de Estado, que se firmou como mantendedouro dos ideais capitalistas, mas com a incumbência de impedir o crescimento do número de adeptos do comunismo.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, é o grande instrumento da implantação de um Estado de Bem Estar Social. Deste modo, com base em seu texto, a igualdade formal não mais bastaria aos países em geral, o escopo de cada soberania seria "tratar os desiguais desigualmente na medida de suas desigualdades", um velho postulado aristotélico que só então passaria a ter sua validade prática para o mundo do direito.

Malgrado, o grande questionamento dos juristas brasileiros da época, era como fazer isso, se até então o código para as relações privadas se regiam apenas pela igualdade formal das partes. A resposta perecia ser clara, a reestruturação do regime jurídico então vigente, no entanto as décadas consagraram a desigualdade, e por isso o entrave pare se modificar uma ordem jurídica arcaica e mal estruturada, em que as inúmeras e constantes leis extravagantes, faziam com que o Código Civil de 1916 se tornasse uma "cocha de retalhos". Um regramento do direito que se bastava por se próprio e tinha o desiderato de abarcar e reger todos os atos que envolvessem o direito privado.

A pressão já era forte, desde a década de 30, por parte dos trabalhadores, que buscavam a igualdade material e eram também o principal alvo das correntes socialistas, por isso, e ainda pelo fato de atuarem em classe, os trabalhadores conseguiram, como instrumento de seu bom comportamento e dos acordos paternalistas que firmaram no governo Getúlio Vargas, a carta legal que passou a reger as relações de trabalho; noutras palavras, foi instituído o Decreto-lei nº. 5.452, de 1º de maio de 1943, intitulado de consolidação das leis trabalhistas.

O primeiro passo havia sido dado em rumo a uma nova relação entre trabalhadores e empregados, um novo sistema regido pela igualdade material estava posto e deveria ser testado pelas décadas vindouras. E assim o foi, e legitimada ficou a proteção do hipossuficiente na relação de trabalho, que indubitavelmente é o trabalhador, empregado ou funcionário.

Entretanto, não bastava apenas proteger uma classe da sociedade e deixar outro ramo descoberto pelo regimento legal. Além do mais a gama de indivíduos, seja figurando como pessoa física ou jurídica, pode participar da relação consumerista, tanto como consumidor ou fornecedor, já que inseridos numa sociedade capitalista.

Eis que voltamos a tratar do que já foi dito alhures sobre a produção acadêmica e literária de muitos juristas brasileiros nesse período – 1940 a 1990 – sobre as relações de consumo, uma vez que se apresentavam descentralizadas, espaças e ainda estavam longe de atender ao novo momento do judiciário, na tentativa de tratar os desiguais desigualmente.

O advento da CF/88 foi decisivo para o surgimento de um regramento legal para as relações de consumo e, principalmente, com o escopo de proteger o consumidor contra o poderio, normalmente muito superior, dos fornecedores. Assim, em 11 de setembro de 1990, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor. Ora, daí em diante inúmeras seriam as interpretações e entendimentos dados a esta novatio legis, afinal a muito tempo foi vencido o principio do mens legislatori, em prol, do mens legis.

Vale a pena rememorar a distinção desses dois postulados hermenêuticos mencionados supra. Como prelecionava o Prof. Carlos Cossio, com menção ao ilustre criador desta distinção, Friedrich Carl von Savigny, o mens legislatorié a que integrava a doutrina subjetivista, se referia a interpretação da lei com base na intenção do legislador, noutros termos, uma interpretação a partir de suas aspirações e propósitos no momento de legiferar. Já os objetivistas, seguidores do mens legis acreditavam que a lei deveria ser interpretada a partir de se texto, ou seja, a lei depois de feita ganharia vida própria, desvencilhando-se de seu legislador.

Eis que dessas duas correntes da interpretação surgiram divergências crassas. Os objetivistas criticavam os subjetivistas afirmando que a figura do legislador é ficta, uma vez que não existe apenas um legislador, são vários, e não determinam o surgimento de uma lei ao seu bel prazer, e sim de um consenso coletivo. Além do mais seria a vontade de uma pessoa, ou de um grupo de pessoas, em um determinado momento histórico, determinando o regramento da conduta de pessoas em tempos futuros e com novas concepções culturais, sem falar que é humanamente impossível a interpretação dos sentimentos e convicções de uma pessoa apenas através do texto legal. A hermenêutica deste, demanda um conhecimento histórico da época e das concepções pessoais do legislador. A corrente subjetivista criticava piamente a objetivista sob o argumento de que a interpretação, apenas atrelada ao texto da lei, torna o interprete um "deus", noutros termos, ele interpreta a lei com uma axiologia e visão de mundo própria, e na maioria das vezes procurando adequá-la ao caso prático que pode estar em analise.

Assim sendo, elucidaremos pensamentos de hermeneutas e filósofos renomados para respaldar a nova visão, e o surgimento de uma nova relação de poder no sistema jurídico, aquele que preza a isonomia, ou seja, o tratamento desigual na medida da desigualdade, no caso deste estudo, com relação aos consumidores e fornecedores. Todavia, frisa-se desde então, que o filosofo mais exaltado será Michel Foucault, cujo síntese do pensamento e método passamos a expor no próximo tópico.

2 - PENSAMENTO E MÉTODO FOUCAULTIANO

Michel Foucault (1926-1984) é uma dos mais inovadores filósofos da modernidade, e suas idéias vêm sendo bastante debatidas pelos estudiosos brasileiros. Este teórico se destaca pela forma excepcional de estudo do poder, do sujeito e dos "dispositivos", não se limitando a estes vieses, visto sua vasta produção literária e o intercâmbio de conhecimento com mais de novecentos pensadores conhecidos internacionalmente das diversas áreas, mas, ressalva-se que estes itens são inerentes a quase todas suas obras.

O pensamento foucaultiano é articulado de modo descontinuo, obrigando seu leitor a fazer um esforço interpretativo incomum, pois nem tudo é o que parece ser a primeira vista. O motivo dessa peculiaridade é uma argumentação que despreza os discursos conhecidos como verdades em detrimento dos excluídos, esquecidos, tidos como mitos, ou inverdades, aquilo que parecia ser irrelevante vem ao palco de discussões, o que a história omitiu será desvelado pela sua retórica. Tudo isto possibilitado pelo acesso a acervos de bibliotecas seculares que poucos pensadores chegaram a ter contato, mas na maioria das vezes não puderam se utilizar ou ficaram receosos de fazê-lo.

Outros elementos que se somam para compor esse estilo argumentativo são os métodos de investigação, arqueológico e genealógico. Aquele, basicamente, o estabelecimento de camadas distintas de conhecimento com suas peculiaridades temporais, que nada tem de imediato com o presente; destas são "desenterrados" recortes históricos específicos, as chamadas "epistemes", que buscam explicar como os saberes aparecem e se transformam a partir de uma análise histórico-política. Por exemplo, o suplício de um parricida, minuciosamente, descrito em uma manchete da Gazeta de Amsterdam de meados do século XVIII, que Foucault utiliza no início do livro Vigiar e Punir. Já a Genealogia seria, em sua essência, uma menção do passado para explicar um fato do presente, algo que transcende o simples processo da Arqueologia, chegando à atualidade.

Foucault relativisa a existência de verdades universais e a noção de "humanismo". Alegando que este se apresenta como parte da ética humana, independentes do regime de liberdade, seja nazismo, fascismo, stalinismo, logo se imiscui como modelo universal, consideradas as devidas proporções espaciais e temporais. Ou seja, nada é absoluto, mas assim pode ser dito, mesmo que para respaldar pensamentos segregacionistas.

Ele introduziu nas relações sociais a idéia de poder, enquanto ente disposto e existente em todas as relações sociais, entre corpos, ou destes para com os "dispositivos", independente do local ou momento histórico. O poder, portanto, seria algo sem essência própria do qual não se pode apropriar, mas deve ser manejado, operacionalizado.

Assim nega-se o poder centralizado, seja na figura do rei durante o Antigo Regime, ou no Estado hodierno. Além do Marxismo, combatendo a idéia de uma classe dominante detentora do poder, através do sistema econômico. Pois o poder seria disposto de forma horizontal; todos o exercem e sofrem sua ação, mas ninguém o detém. Destarte apenas incide sobre indivíduos "livres", que tem a mesma capacidade de utilizá-lo, caso contrário, falar-se-ia em coação. Essa teoria é a chamada Microfísica do Poder.

Não só nas idéias, mas também no objeto de estudo, Foucault utiliza-se do excepcional, nesse caso o sujeito de poder, enquanto ente negativo da ordem, o corpo do louco, do condenado, do escolar exemplificativamente. O termo corpo é utilizado como objeto político do saber, sujeito a manipulação, entre si ou através de "dispositivos". Estes os vínculos que se podem estabelecer entre discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas, enfim o dito e o não dito[1]. É, portanto, por meio destes que o poder pode ser operacionalizado, na intenção de normalizar, disciplinar e "docilizar" o sujeito.

Estas são as premissas do pensamento foucaultiano, que tem como precípua finalidade, fazer as pessoas conscientizarem-se de que consideram verdadeiros alguns conceitos formulados em momentos particulares da história, aludindo-se uma nova forma de criticá-los e desconstruí-los.

2.1 - AS RELAÇÕES DE PODER

Há uma necessidade, neste ponto, de analisarmos os objetos separadamente, na ordem, o poder e, posteriormente, a relação, para daí chegarmos a nosso escopo, a relação de poder.

Como já suscitado, não é nosso objetivo conceituar o poder, tampouco recorrer aos conceitos já existentes, que por sinal são intensamente combatidos por Foucault. Mais que isso, serão apresentadas as características desse ente, que para o pensador, extrapola as barreiras do reducionismo conceitual.

Seguindo os critérios, magistralmente, adotados por Thamy Pogrebinshi[2]; assim caracterizamos o poder foucaultiano:

a) Positividade – a grande maioria das teorias que tentaram conceituar o poder acabou por descrevê-lo como um ente negativo, de força, repressão ou dominação, em alguns casos, visando apenas à depreciação do corpo social como um todo. Enfim, são múltiplos os exemplos que podem ser elencados nesta linha, a saber, o Marxismo, a Teoria de Nietzche, e a Teoria de Reich.

Foucault, então, incumbiu-se de refutar estes posicionamentos, afirmando a necessidade, e a própria indissociação do poder nas relações em sociedade.

b) Difuso[3] - está em toda parte e ao mesmo tempo em lugar algum.

c) Imaterial e não–subjetivo – é uma abstração, ente incorpóreo inerente à relação; enquadrando-se como extra-patrimonial, ou seja, ninguém pode tomá-lo como propriedade, consequentemente, não há que se falar em "detentores do poder", seja por via pecuniária ou legal, por exemplo.

d) Circular e Transitório[4] - é operacionalizável, manejado, circulando de forma efêmera por todos que podem fruí-lo, entretanto que não detêm a capacidade de freá-lo.

e) Imanente – por mais que possa parecer contraditório devido ao caráter difuso e imaterial, o poder pode ser intrínseco a determinados entes de sua manifestação, como o saber e o sexo.

f) Não-ideologizado e Não-dualístico – não é passível de ser determinado ou conceituado por postulados ideológicos, daí o próprio pensador ter afirmado que não teve a intenção de analisar o poder nem seus possíveis fundamentos. Além disso, é impróprio figurar como seu fator existencial, a necessária oposição de interesses qualificada de maneira maniqueísta, na contraposição entre bons e maus, dominadores edominados, por exemplo.

Vistas estas classificações, pode-se, então, explicar o funcionamento da Genealogia do Poder. Como foi dito, é um método que se confunde com a própria analítica do poder, pois, se este é manejado pelos componentes atômicos da sociedade, por exemplo, o corpo e os dispositivos disciplinares, logo, o exame promovido pelo filósofo parte do micro para o macro, em um escalonamento de importância inversa, em que o mínimo se sobrepõe ao máximo, cuja ascendência provoca uma gradual desnaturação no que se refere ao manejo do poder. Isso é o bastante por hora.

Voltaremos nossas atenções agora para a relação, a qual não se faz necessário provar ser um ato, uma vez que o ser humano é essencial a esta. Entretanto, o posicionamento foucaultiano torna desnecessário figurarem, no mínimo, dois sujeitos para sua consecução, como suscita a parxi, já que aparecem em cena os dispositivos de poder, que são mais apropriadamente tratados como entes ou organizações.

Ressalva-se a difícil aplicabilidade do termo sujeito, representando um membro da relação, já que afirma Foucault,

Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de poder que subjuga e torna sujeito a.

Deste modo, é preferível o termo corpo, que a partir de então será frequentemente utilizado.

Malgrado ainda é importante questionar sobre a produção de efeitos de uma relação, em outras palavras, só seria relação aquela que produz efeitos? Isto não é postulado expressamente por Foucault, assim sendo adotaremos o critério de que relação é todo vínculo direta ou indiretamente estabelecido entre os corpos ou de no mínimo um destes para com o(s) dispositivo(s).

Sabe-se até então da idoneidade da utilização das partes da relação – corpo e dispositivos - escolhidas por Foucault para compor a relação de poder, mas faz-se necessário especificá-las.

O corpo é mais que a simples personificação do indivíduo, é antes sua individualidade cultural, em outras palavras, é a moldura que a política do saber provoca no "ser primitivo". O homem perde sua identidade de igualdade fisiológica e passa a ser pautado no campo do saber, da subjetividade. Não mais o ser humano per si será levado em consideração, mas o normal, o condenado, o louco, o escolar, dentre outros, possibilitando que um único indivíduo possa pairar dentre os diversos corpos pelo universo do saber, por exemplo, um corpo sexualizado não deixa de ser condenado.

Já o dispositivo é segundo Foucault:

"(...) um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas. Em suma o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos. [5]

Portanto, evidencia-se, claramente, na definição do autor, que os dispositivos nada mais são que a representação da tecnologia do saber em entes culturais regulamentadores ou operacionalizadores do poder sobre o corpo. Porquanto, mais adiante será abordado particularmente a importância do dispositivo disciplinar e seus possíveis efeitos nos corpos, visto que é o mais enaltecido pelo filósofo.

Finalmente, chegamos à relação de poder, e esclarecemos desde já, que não indo de encontro a nenhuma das características dos seus componentes isoladamente – relação e poder -, esta apenas deve respeitar a mais uma condição de existência, a liberdade.

O poder, deste modo, só se exerce de forma livre, não se estabelecendo a relação na coerção, na repressão física ou moral, quando o corpo encontra-se impossibilitado de uma atitude contrária, de reação àquela que se impõe. Por isso Foucault proclama não ser a escravidão uma relação de poder completa, pois enquanto estiver atuando sobre ameaça ou coação, o escravo não tem meios para repelir tal situação.

O mais importante de tudo isso é compreender que o poder tem sua essência indissociável da relação, noutros termos, ele só pode ser operacionalizado através dela.

Assim, estão postos os requisitos básicos para que possamos explicar outros pilares do pensamento do autor, tais quais: o poder-saber, a microfísica do poder e o contrapoder.

2.3 - O PODER-SABER

Fonte e ao mesmo tempo o produto, parte e simultaneamente um conjunto, assim se comportam o poder e o saber, convivendo em uma produção mútua e dependente. Em outras palavras, a operacionalização do poder tem como requisito a utilização ou produção de um conhecimento. Este que extrapola o campo da ciência propriamente dita, pois é possível expressar-se pela mera construção de uma frase, ou, até mesmo, através das culturas ditas vulgares, por exemplo. Enfim, tudo que pode ser compreendido pela razão humana é saber, e este sim pode ser selecionado na operacionalização do poder.

Daí falar-se no poder-saber, porquanto:

"entre técnicas de saber e estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo que cada uma tenha seu papel específico e que se articulem entre si a partir de suas diferenças. Partir-se-á, portanto, do que se poderia chamar de focos locais de poder-saber"[6]

Enfim, segundo Foucault, não há saber que se exteriorize sem que tenha ônus de poder.

2.4 - A MICROFÍSICA DO PODER

O fato de as menores partículas, seja social - o corpo -, ou cultural, como o discurso, figurarem como grandes operacionalizadores do poder no pensamento foucaultiano é que propicia a articulação destes em um plano horizontal de possibilidades. Logo, promovendo a formação de uma rede de poder, em que seus protagonistas estão, simultaneamente ou em momentos distintos, no pólo ativo – exercendo poder – ou no pólo passivo - sofrendo a incidência dele. É, então, a este infinitesimal e ilimitado campo de relações de poder que se chama microfisica do poder.

2.5 - O CONTRAPODER

Foucault não inova apenas na análise de arquivos e documentos esquecidos, escondidos, ou que deixaram lacunas históricas, mas também trata do excepcional no que tange aos entes negativos da sociedade, enquanto manipuladores do poder; vale ressaltar, por exemplo: o louco, o leproso, o escolar, o militar e o detento. Enfim, entes considerados como emanadores de contrapoder, ou seja, do poder que se insurge e reage contra o dito normal, legítimo, moral ou ético.

A preferência do filósofo por essa abordagem deve-se, segundo ele, a maior facilidade existente em se examinar o poder a partir de sua exceção. Esta que em momento algum deve ser vista como vítima ou refém dos acontecimentos.

Ressalva-se, então, que para o pensador, o poder excepcional fascina pelo tratamento diferenciado que requer da sociedade; além de viabilizar a melhor compreensão do emprego e funcionamento de dispositivos, que muitas vezes a ele se designa na busca da contenção e neutralização, exemplificativamente, o hospício, o leprosário, a escola, o quartel militar e a prisão.

2.6 - OS DISPOSITIVOS DISCIPLINARES

Voltamos a tratar dos objetos da relação de poder, em especial, dos dispositivos disciplinares. Entretanto, não desceremos às minúcias que o tema merece, bastando-nos apenas expor as noções gerais indispensáveis para compreensão do pensamento do filósofo.

A disciplina requer uma abordagem isolada por se tratar do dispositivo por excelência, uma espécie de "máquina de poder" formadora de corpos submissos e exercitados, os chamados corpos "dóceis", assim a partir de sua instauração:

(...) ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. [7]

A disciplina atua, portanto, como potencializadora das forças produtivas de aptidão e capacidade do corpo no exercício de determinadas atividades, assim aumentando sua utilidade econômica. Em contrapartida, minimiza o poder de reação, de insurgência, o contrapoder, uma vez que, a insubordinação é contida, há uma tentativa de coagir, de produzir uma política de obediência, enfim, de alienar. Em suma, diz-se "que a coação disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada." [8].

2.7 - A NORMALIZAÇÃO

A noção de "normalização" é analisada no pensamento foucaultiano, no sentido mais primário do termo, de tornar normal, regularizar, padronizar, supondo, assim, que existe algo que é excepcional, fora da regra, desvirtuoso, anormal. Este seria todo um rol de condutas e estigmas ilícitos da ordem, o ser enquanto fora do "dever ser", enfim, algo que requer ser normalizado, e caso haja impossibilidade de fazê-lo, terá seu corpo expurgado da sociedade, escondido, servindo de exemplo. Além disso, fará parte de uma tecnologia do poder para que seja reaproveitado economicamente, podendo-se explorar valia do intitulado inválido. Mas nem por isso considerado coitado, pois livres em grande parte de suas condutas e fonte importante de contrapoder. Ressaltando-se sempre que o excepcional amedronta e põe em perigo a normalidade.

3 - APLICAÇÃO DO PENSAMENTO FOUCAULTIANO AO DIREITO DO CONSUMIDOR

Segundo Foucault, o sistema jurídico nada mais é que um meio de se exercer poder, mas como visto alhures, todo dispositivo que emana poder também sofre a incidência do poder daquele a quem se exerce. Assim, a igualdade material no direito seria, antes de mais nada, um falácia. Noutros termos, como sujeitos que são desiguais, aliás, como são todas as pessoas, e na maioria das vezes a forma e o objeto pelo qual se litiga, podem ter o mesmo tratamento? A resposta é que ao se evidencia, e o mais certo e que assim o seja, o mesmo tratamento para as diversas pessoas.

Destarte, o "corpo do consumidor", como Foucault supostamente se referiria a tal tema, se nele tivesse se debruçado com mais afinco, é um corpo que precisa ser salvaguardado, protegido pelo ordenamento jurídico pela sua vulnerabilidade, e muitas vezes pela sua hipossuficiência, no que tange a matéria processual.

Neste diapasão, o Código de Defesa do Consumidor seria um dispositivo disciplinador das condutas de consumo, com o escopo de responder ao poder do fornecedor, normalmente o pólo mais forte da relação consumerista.

Assim instala-se um sistema regido pela microfísica do poder, ou seja, uma rede em que o consumidor passa depois de muitos anos de subordinação, quase inconteste dentro do Estado brasileiro, a exercer poder através de instrumentos, como a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas (art. 6º, inciso V, CDC); e a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, quando o juiz verificar que seus argumentos são verossímeis, ou que ele é hipossuficiente (art. 6º, inciso VIII, CDC). Dispositivos que proporcionam relações mais equânimes entre o consumidor e o fornecedor, estes que, antes da criação da Lei nº. 8.087/90, dispunha de todos os elementos opressores e ultrajantes para, na maioria das vezes, fazer soberana sua vontade perante os anseios do consumidor.




Autor: Felipe Jacques


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