Mercador de Veneza: constitucionalização do direito civil



1-      Resumo

O mercador de Veneza de Willian Shakespeare retrata por excelência o contexto de uma época marcada pelo paradigma da liberdade irrestrita do cidadão em relação ao seu patrimônio, possibilitando o aferimento de frutíferos detalhes jurídicos no que concerne ao direito privado, característica esta que permite-nos realizar a observância das etapas desse processo evolutivo e aferir seus reflexos no direito contemporâneo.

O autor mune-se de fatos empíricos para materializar a realidade em Veneza, apresentando um cenário de comédia, romance e aspectos sociais, todavia nos retemos aos aspectos jurídicos dos quais revestem-se de suma relevância contributiva nesta análise.

Nesse sentido a obra apresenta a história de uma relação obrigacional entre Shylock (credor) e Antônio (devedor) fundamentada em uma dívida pecuniária contraída pó Antônio, com a finalidade de emprestar ao seu grande amigo Bassânio para que cortejasse uma nobre senhorita, suas riquezas eram suficientes para conceder o empréstimo, no entanto estavam comprometidas com empreendimentos no exterior.

Outra peculiaridade apresentada na obra e que se faz fundamental para a análise jurídica em questão é o fato de que a garantia do contrato recai sobre o próprio corpo de Antônio (devedor), partindo do pressuposto de que Shylock (credor) possuía uma rixa pessoal com Antônio e subsidiou da relação obrigacional para valer-se de seus interesses de vingança, exigia-se assim uma libra de carne ao se vislumbrar o inadimplemento da prestação.

Contrariando a perspectiva de Antônio em quitar a dívida no prazo de três meses como foi estipulado, encontrou-se sem subsídios para o adimplemento da prestação em face de que todos seus navios perderam-se em águas oceânicas.

Ademais o contrato foi lavrado em cartório e detinha do aval da normativa vigente da época e em dada localidade, munido da referida prerrogativa Shylock buscou em juízo o adimplemento da obrigação que seria a exigência de uma libra de carne de devedor recusando qualquer outra forma de cumprimento do contrato, nem mesmo uma quantia, mas alta ao valor do débito. Iniciando-se assim em longo discurso judicial acerca da possibilidade do cumprimento desta garantia.

2-      Impossibilidade jurídica de efetivação da garantia contratual apresentada do filme e constitucionalização do Direito Privado.

Na expectativa de atender as exigências de um Estado liberal as constituições passadas omitiram-se acerca das relações privadas, esse fato foi determinante para vislumbrar a ocorrência de exploração dos mais fracos, como exemplificadamente se vislumbra no caso da relação contratua exposta no filme em que vigora o paradigma do pacta sunt servanda, liberdade irrestritiva da partes em contratar, resguarda a ausência absoluta do Estado na interferência do contrato estabelecido entre os contratantes. Dessa característica liberalista do Estado que emerge a elevação do código civil ao ápice do ordenamento jurídico, mantendo-se desideologizado e inerte diante das mutações sociais.

De fato, diante das elucidações aqui desenvolvidas a obrigação apresentado no filme entre Shylock (credor) e Antônio (devedor) eram válidas do ponto de vista jurídico, sob o manto do entendimento predominante na época, de liberdade para pactuar sendo desnecessária a observância de qualquer princípio previamente estabelecido, promovendo a tendência ao individualismo e ao patrimonialismo, evidência esta que coloca o devedor em posição extremamente desvantajosa, pois a concepção de patrimônio esta acima da pessoa humana.

Assim nessas premissas é perceptível a contextualização que pode-se materializar em face da obrigação pactuada no filme, considerando que o estabelecimento legal de uma garantia contratual que recaia sobre o próprio corpo do devedor é antes de tudo uma afronta a dignidade da pessoa humana, mas tal argumentação não era acolhida na época, pelo contrário, esta modalidade de garantia detinha o aval do Estado, tendo em vista que a vontade humana surge como fonte criadora das obrigações caracterizando como lei entre as partes, afastando de direito a intervenção estatal.

Diante das evidentes manifestações negativas proporcionada pela liberdade demasiada das relações privadas, cresceram os reclamos da sociedade a favor de constituir um Estado social, que seja capas de atender aos interesses da coletividade, exigindo que seja atribuída força normativa a constituição e que essencialmente se consolide como sendo o ápice do ordenamento jurídico, limitando o poder político, econômico e projetando a tutela dos direitos individuais.

Nesse esquema de idéias atribui-se à constituição brasileira de 1988 a prerrogativa de ser a primeira em que se possa vislumbrar a efetividade (ao menos relativa) da força normativa.

Nesse passo, é possível asseverar que as constituições democráticas em essência proporcionaram em sua maioria a força normativa constitucional tão almejada. Todo esse processo reveste-se de infinita relevância ao se aferir a constitucionalização do Direito Privado. Tomando por referência o fato de que esse fenômeno resultou na elevação das constituições ao status de norma fundamental vetor de todo o ordenamento jurídico, posto este ocupado até então pelo estático e patrimonialista código civil.

É a colocação dessa realidade fática que proporcionou o fenômeno da constitucionalização do Direito Privado que consiste no fato de que a constituição é a lei Mario que irradia seus princípios para todo o ordenamento jurídico, estabelecendo um parâmetro para a elaboração da legislação infraconstitucional e buscando a unidade hermenêutica a fim de que o jurista interprete o código civil segundo a constituição e não o contrário.

É justamente nesta irradiação de princípios que reside o ápice da análise do caso em epígrafe, pois a constituição prescreveu a dignidade da pessoa humana como princípio vetor de todo o ordenamento jurídico e o fenômeno da constitucionalização do direito civil exigiu que este abdica-se da concepção de hegemonia do patrimonialismo em detrimento do humanismo das relações privadas.

Nesse sentido originam-se princípios derivados do mandamento constitucional de zelar pela dignidade humana, princípios estesinseridos no código civil como função social do contrato, a boa-fé objetiva e os direitos de personalidade, entre outros.

Ademais somente nos resta a assertiva de que é nulo de pleno direito o contrado apresentado no filme, pois a garantia com a finalidade meramente vingativa no ato de retirar um libra de carne do corpo do devedor é em essência uma afronta a integridade física do contrato, um direito de personalidade expresso no art. 13 CC/02:

Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.

 

Um óbice a função social do contrato em que se dá preferência aos valores coletivos, promovendo a “socialização dos contratos”, consolidada no art. 421 CC/02

 

A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

 

E principalmente um atentado ao princípio da boa-fé objetiva, legalmente expresso no art.422 CC/02.

 

Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Previsões legais da qual o código civil não pode desvencilhar-se, tendo em vista a supremacia da constituição federal, e se o contrário ocorrer coloca-se em risco a vigência do Estado Democrático de Direito.

O processo de constitucionalização do direito civil impôs às relações privadas uma releitura constitucional do princípio da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade e condizente tem sido as decisões judiciais contemplando a apreciação. Vejamos:

 

AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER PROPOSTA EM FACE DO PLANO DE SAÚDE QUE SE NEGOU A FORNECER "STENT" PARA CIRURGIA CARDÍACA DE EMERGÊNCIA, COM PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR ALEGADOS DANOS MORAIS. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA DA AÇÃO, CONDENANDO O PLANO DE SAÚDE AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO PLEITEADA. APELAÇÃO DO RÉU.1. O processo de constitucionalização do direito civil, na verdade, impôs às relações privadas uma releitura constitucional do princípio da força obrigatória dos contratos e da autonomia da vontade. 2. Ora, interpretando-se o referido contrato, não apenas de acordo com a boa-fé objetiva, mas de forma razoável exigida do homem médio, constata-se que o tratamento recomendado é inevitável na tentativa de preservação da vida do paciente.3. É incontroverso que a requisição do material decorreu da necessidade de cirurgia cardíaca, a que foi submetido o autor, não podendo ser acolhido o argumento de que o contrato é anterior à lei nº 9656/98, o que dispensaria o réu da obrigação de fornecer o "stent".96564. A condenação em danos morais em casos como o que se apresenta nos autos, vem sendo amplamente aceita, visto que tais negativas transcendem o mero inadimplemento contratual, atentando contra a dignidade da pessoa humana, daí a caracterização da ocorrência do dano. 5. A doutrina e a jurisprudência, com o objetivo de delimitar e contornar os valores devidos indicam que a fixação do "quantum" indenizatório deve orientar-se pelos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, levando-se em consideração a extensão do dano, a condição econômica das partes e os objetivos do instituto, e ponderados os critérios e fins da verba indenizatória, de se ver que para o caso, aos critérios normais adotados na Câmara e neste Tribunal de Justiça, o valor arbitrado para a indenização pode ficar confirmado. 6. Recurso a que dou parcial provimento (art. 557, § 1º-A, do CPC).557§ 1º-ACPC

 

 

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. VENDA DE IMÓVEL POR ASSOCIAÇÃO ATLÉTICA. NEGATIVA DE DIVISÃO DE CRÉDITO COM O AUTOR EM RAZÃO DE TER SIDO EXCLUÍDO DOS QUADROS SOCIAIS. IMPOSSIBILIDADE. PROCEDIMENTO DE EXCLUSÃO, REALIZADO DE ACORDO COM O ESTATUTO, QUE NÃO RESPEITOU O DEVIDO PROCESSO LEGAL, IGNORANDO O CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA. OFENSA À CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INCIDÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. PREVISÃO ESTATUTÁRIA ILEGAL. VALOR DEVIDO. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO.CONSTITUIÇÃO"A ordem jurídico-constitucional brasileira não conferiu a qualquer associação civil a possibilidade de agir à revelia dos princípios inscritos nas leis e, em especial, dos postulados que têm por fundamento direto o próprio texto da Constituição da República, notadamente em tema de proteção às liberdades e garantias fundamentais. O espaço de autonomia privada garantido pela Constituição às associações não está imune à incidência dos princípios constitucionais que asseguram o respeito aos direitos fundamentais de seus associados. A autonomia privada, que encontra claras limitações de ordem jurídica, não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional, pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de liberdades fundamentais [...]"(STF, RE n. 201819, do RJ, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 11-10-05).

 

Na tradução de Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 42).

 

“A Constituição, que não pretende ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um (...) fortalecimento da validade (...) dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurisprudência recebem dele diretrizes e impulsos.”

 

 

 

 

 

Referências Bibliográficas

 

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 33, 1 jul. 1999. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/507>. Acesso em: 18 nov. 2011.

 Silva, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005.

 

197338 SC 2008.019733-8, Relator: Victor Ferreira, Data de Julgamento: 08/07/2010, Quarta Câmara de Direito Civil, Data de Publicação: Apelação Cível n. , de Itajaí.

  3725110320098190001 RJ 0372511-03.2009.8.19.0001, Relator: DES. MIGUEL ANGELO BARROS, Data de Julgamento: 20/09/2010, DECIMA SEXTA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 22/10/2010


Autor: Tatiane De Gois Ferreira


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