Cogitações - Anjos Decaídos



A alta espiritualidade que comanda os sistemas, cuja natureza e nome não há propósito em tentar declinar já que isso de nada importa a eles, vem cuidando, dentre outras tarefas, da colonização da Terra, autorizando e gerenciando a sucessão de civilizações que trouxeram, cada uma ao seu turno, os avanços que os hominídeos terrestres puderam absorver.

Não se sabe quem exatamente, nem em que momento ou em que circunstâncias, mas é muito provável que uma consciência de alta condição envolvida com a evolução deste planeta houve por bem incrementar o desenvolvimento cerebral dos hominídeos. A capacidade de raciocínio linear, que somente seria atingida após longos evos de condicionamentos emocionais e atenuações de impulsos automatizados, foi antecipada e se desenvolveu progressivamente ao mesmo tempo em que o ser buscava aprimorar seu corpo emocional submetendo os impulsos tirânicos da condição instintiva conquistada após milênios de experiências como animal. Hominídeos foram nascendo cada vez mais habilitados ao estabelecimento de sinapses cerebrais, enriquecendo o córtex para estréias intelectivas precoces.

A tradição religiosa e esotérica nos relata tal fenômeno através do simbolismo de Lúcifer e a fruta do conhecimento que ilicitamente retirou a ingenuidade do ignorante selvagem até então equilibrado no contexto de sua primitividade.

Enfim... É um bom simbolismo.

Seja como for, a ciência não tem uma boa explicação para o fato do ser humano ostentar um cérebro mais complexo do que pode ele mesmo usar. Além disso, o surgimento do homem no calendário geológico terrestre é ridiculamente recente. Algo assim: de repente, fez-se o homem! Não é difícil compreender por que tantos põem à conta de mistérios da Criação certos aspectos da história deste Planeta.

Mas o que interessa nesta análise é que a catálise do desenvolvimento do cérebro e da capacidade intelectiva certamente não se operou como mera mudança genética, subentendendo uma série de modificações no corpo energético e psicossoma dos hominídeos. Não apenas de corpos físicos modificados se cuidava, mas sim de toda a matriz, tanto etérica como semimaterial.

Eis que o homem passou à condição de fera com capacidade de raciocínio. Um ser que se embala ao sabor de seus instintos ao mesmo tempo em que tem consciência de si mesmo e medita sobre tal. Por isso o homem realiza projetos belíssimos ao mesmo tempo em que jamais deixou de promover a guerra. Por isso o homem desenvolve chips de computador com fantástica capacidade de processamento de dados, ao mesmo tempo em que continua explorando seus semelhantes e destruindo o seu meio-ambiente. É por isso que o homem só conhece o universo pela dualidade, sempre concebendo o que existe pela comparação entre alto e baixo, quente e frio, perto e longe, feio e belo, bom e mau, yin e yang.

A religião bem se amoldou por essa realidade.

Deus e seus anjos têm uma imensa tolerância e misericórdia com o homem, prontos a perdoar-lhe o mais grave pecado desde que exista o arrependimento. O filho pródigo é recebido com festa, alegria e júbilo, sob reconhecimento maior do que aquele que se manteve junto ao pai. É possível compreender que esses sejam os valores descritos na religião. A espiritualidade superior certamente reserva um tratamento muito condescendente a esta humanidade precocemente lançada às teias de um intelecto capaz de raciocínios contínuos, estando ainda sobre alicerces emocionais enraizados na natureza animal ostentada.

Veja-se que a religião está encharcada com a idéia de salvação, arrependimento, conversão etc. Foi necessário disseminar o conceito de que houve um pecado original e que a humanidade, mais do que tudo, deveria procurar o abandono do pecado, uma vez que "pecador" passou a definir sua condição geral. O único caminho para a salvação é o abafamento dos instintos conquistados em milênios de evolução, impondo-se, ainda que por absoluto sacrifício pessoal, o que somente o tempo cuidaria de bem lapidar em outros tantos milênios de evolução.

Tarefa difícil. Muito difícil.

O homem continua ao sabor de vários instintos puramente animais, conquanto já tenha galgado vários degraus acima da condição inicial. Curiosamente, a natureza animal do homem associada à capacidade de raciocínio contínuo é visível em vários elementos do dia-a-dia. Não se busca o desenvolvimento de máquinas ou ferramentas apenas tendo em mente a sua finalidade última. Não, na Terra um automóvel, por exemplo, se submete a toda uma concepção de estética que tem tudo a ver com o prazer que o equipamento desperta no senso de força, velocidade e poder. O homem efetivamente sente como se o seu carro fosse parte de si mesmo, escolhendo, sempre que possa, o veículo com que mais se identifique. Por isso existem tantos tipos e cores de carro, tantos quantos são os mais comuns tipos e variante da personalidade humana. Até mesmo o som dos motores em muito lembra o uivo das feras. Os faróis compõem um olhar ferino, como se a máquina pedisse para ser posta na mais desatinada velocidade. O carro, enfim, ostenta a força e o poder que o homem deseja para si, ficando feliz em dominar o equipamento ou confundir-se com ele.

A roupas... As roupas, por sua vez, exsurgem em importância quase nunca por sua utilidade, mas pelo estilo, pela combinação, pela moda, pela cor, pelos acessórios etc etc etc. É a plumagem que o corpo não ostenta. Grupos se identificam pela forma de se vestir.

O uso da linguagem tantas vezes redunda em codificações tribais, restringindo o sentido exato de termos comuns ao contexto só plenamente conhecido pelos componentes daquela tribo.

Até mesmo nos setores mais intelectualizados da humanidade são notórios os efeitos da componente animal ainda tão vívida no espírito humano. Bismarck teve seus ideais de conquista e força suficientemente soerguidos por uma base filosófica refinada, encontrando no discurso de Nietzche o super-homem que a natureza premia com o sucesso. Nada melhor do que a obra desse filósofo para denunciar que o homem procura assimilar e ter por perfeitamente natural que a animalidade conviva com o intelecto desenvolvido. O bom selvagem de Rosseau, isolado no concerto das teses de origem da sociedade, é até hoje visto como uma quimera quase pueril. Montesquieu percebeu a natureza humana destacando que o maior mérito da mercancia era atenuar os homens, que passaram da conquista e esbulho para o desejo de riqueza via comércio. Claro que a exploração econômica logo se estabeleceu. Hobbes chamou de Leviatã o Estado que tudo engloba e submete, como um monstro que se impõe pela força. Impossível deixar de mencionar o triste episódio do nazismo, que levou milhões à barbárie.

No mundo atual, o país mais poderoso militar e economicamente não tem um só segundo de paz, estando na mira de milhares de organizações radicais que lhe combatem o imperialismo e dominação.

O homem avançou largamente em todas as ciências, mantendo-se contudo no desequilíbrio patético da exploração econômica que privilegia alguns milhões em detrimento de bilhões de semelhantes relegados à miséria. Um tigre não se apieda nem tem remorsos por depredar os animais mais fracos. Lembremos, porém, que um tigre não se alimenta de outro tigre.

A culinária humana é um requinte de auto-envenamento saborosíssimo. A necessidade de alimentação foi logo levada à condição de mero prazer. Sabores são adicionados, atenuados, maximizados, fazendo do sistema digestório uma pobre vítima da sanha humana por degustações sedutoras.

O sexo mantém sua natureza de indescritível sensação de prazer. O fenômeno, responsável por fazer que as feras se ponham vulneráveis no intercurso sexual, ao sabor de instinto quase invencível premiado por uma explosão de satisfação, foi levado ao recinto seguro para desdobro em miríades de reticentes novas ousadias.

Não sei se houve mesmo alguém chamado Lúcifer. Mas sei que somos nós – e não ele – os verdadeiros anjos decaídos.


Autor: Marco Aurélio Leite da Silva


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