Relatos de Higino José Pereira sobre a inclemente seca de 1877



Relatos de Higino José Pereira sobre a inclemente seca de 1877 

 

Higino José Pereira era filho do casal, Camilo Pereira e Maria Pereira, nasceu em 1853, no sítio Vacaria, pertencente nessa época a freguesia de São Mateus dos Inhamuns. Casou-se na igreja de Nossa Senhora do Carmo da vila de São Mateus em 1873, com Maria Teresa de Jesus.

Higino Pereira herdou da parte de seu pai Camilo Pereira, o sitio Vacaria com 320 braças de frente e uma légua de fundos, cujos limites no sentido leste-oeste se estendiam do Pau d´Arco ao riacho Fortuna, e no sentido transversal da Cacimba do Gado ao Recanto. Portanto, era considerado naquele sertão como uma das pessoas mais abastadas, da Vacaria ao Monte Alegre.

No entanto, naquela época nenhum nordestino, mesmo por mais prevenido que fosse, estava preparado para enfrentar o flagelo das secas, numa região de caatinga, de solo pedregoso e clima inclementemente árido.

Na província do Ceará não havia nenhuma infra-estrutura básica para servir de apoio as vítimas da secas, fenômeno esse meio sazonal e integrante da paisagem tórrida da região. Não havia obras de açudagem, barramentos, nem mesmo de poços, afetando assim drasticamente as populações mais afastadas das áreas que margeavam as ribeiras do Jaguaribe, Cariús e Salgado.

Naquela época os locais de armazenamento eram precários, o milho era recolhido em paióis, o feijão e arroz em surrões de couro cru. Muitas vezes Higino Pereira enterrava os grãos nas areias escaldantes do Riacho dos Porcos, correndo o risco de perda total, quando ocorria uma chuva temporã.

Durante o período da grande seca do Nordeste que começou em 1877, milhares de retirantes acossados pela sede, pelo chão resequido, testemunharam a devastação de suas lavoura a morte de suas crianças e de suas cabeças de gado. Isso causou um grande êxodo da sua população para São Paulo, mas principalmente para a Amazônia, atraídos pela propaganda de ganho rápido e fácil na exploração da borracha.

Nessa calamitosa época, Joaquim Ferreira Lima um dos filhos mais velhos de Martins das Cajazeiras, migrou para Amazônia, seguindo a trilha de milhares nordestinos, no entanto, essa aventura não teve mais volta, pois, foi brutalemente assassinado por um seringalista, quando tentava acertar suas contas, antes de regressar ao seu torrão natal.

Na época da seca, muitas famílias foram embora para o Maranhão. Isabel Cabocla da Vacaria foi uma dessas pessoas corajosas que se aventurou vagar por terras estranhas. Seus planos eram de voltar logo que as coisas melhorassem.

Antes de sair ele chamou seu Higino Pereira, e entregou-lhe os documentos de suas terras para que ele os guardasse até a sua volta, no entanto, os anos se passaram e a mulher, nem os seus filhos nunca mais voltaram, então, Higino tomou posse das terras durante toda a sua vida.

Muitos anos depois, já na década de 60, apareceram os seus netos lá pela Vacaria, reivindicando a Antonio Higino a posse da terra, no entanto, pelo decorrer do prazo já tinha sido cumprido o direito de usucapião. No entanto, Antonio Higino por força da sua própria consciência negociou a propriedade com os descendentes de Isabel Cabocla e essas terras pertencem aos seus filhos até hoje.

Conforme um estudo elaborado pelo professor Samuel Benchimol no período de 1877 a 1900, pelo menos 158.125 nordestinos, mais conhecidos como cearenses, haviam emigrado para a Amazônia. Dorneles Câmara em seu trabalho intitulado “Colocação no Amazonas dos flagelados do Nordeste”, publicado em 1919, calcula que de 1877 a 1890 a população cearense ficou reduzida a um terço, 300 mil pessoas desapareceram umas porque faleceram e outras porque emigraram (citado por SANTOS, 2009).

A seca de 1877 foi devastadora na região de Vacaria a Monte Alegre, pois alem de causar inanição, cegueira, morte, foi acompanhada de terrível surto de coléra. Uma das vítimas mais conhecidas desse surto epidemiológico, era filha de Raimundo Martins, ela foi sepultada nas Cajazeiras a beira da estrada, proximo a residência de seu avô Martins Ferreira Lima, a seu tumba permanece incólume, até hoje.

A cólera uma doença causada pelo vibrião colérico Vibrio cholerae, uma bactéria em forma de vírgula ou bastonete que se multiplica rapidamente no intestino humano produzindo uma potente toxina que provoca diarréia intensa. Ela afeta apenas os seres humanos e a sua transmissão é diretamente dos dejetos fecais de doentes por ingestão oral, principalmente em água contaminada (WIKIPÉDIA, 2010).

Antonio de Aniceto contava que seu avô materno Higino Pereira enterrou setenta pessoas só na Vacaria. Os locais onde foram enterrados como indigentes, as vítimas dessa calamidade, foram: quarenta, atrás da casa de seu Higino, próximo ao local onde morou Higino de Aniceto. Quatorze pessoas foram enterradas na Tereza Cega, próximo a Grota Funda, na divisa dos sítios de laranja dos irmãos Antonio e Victor, tendo com referencia o pé de oiticica do riacho Fortuna. Somente da família de Manoel Lopes, Higino Pereira enterrou seis pessoas, debaixo de um pé de tamarindo, bem próximo a residência de Gonzaga. Por esse motivo, diziam os moradores mais antigos, que lá se viam assombrações e vozes de almas penadas, especialmente nas luas cheias e mingunates.

Quando Higino de Aniceto cavou os alicerces para construir uma casa na Teresa Cega, no início da década de 30, descobriu várias ossadas nesse lugar. O seu pai Anicete havia lhe prevenido que aquele local era um cemitério de flagelados da seca. Os ossos foram removidos e depositados em um formigueiro nas proximidades da casa por ele construída. Esse local histórico deveria ser preservado e nele ser construído um memorial, em homenagem aos flagelados, que tombaram durante o período da grande seca de 1877.

O texto de um jornal da época dizia: “O povo está desesperado. A fome vai acabar gerando a violência.” Viam-se jovens mulheres, cobertas de trapos, desgrenhadas, os pés ensangüentados, a pele terrivelmente queimada, caindo pelas ruas. Os homens, levando duas ou três crianças, andavam dezenas de quilômetros. Vendiam até as próprias roupas do corpo em troca de alguma coisa para comer. Muitas pessoas ficaram cegas, pela exposição contínua ao sol. Apareciam casos de cólera, de febre amarela e de varíola (NANNI, 2009).

As notícias da terrível calamidade ecoaram no paço do palácio imperial, então o imperador D. Pedro II condoído com a situação de miséria, disse que daria a sua própria coroa para salvar os nordestinos da fome, mas os recursos não chegavam ao interior, ou quando chegavam eram tarde demais.

Animado com essa notícia, Manoel Higino, um dos filhos mais velhos de Higino Pereira, foi juntamente com o Velho Neném a Fortaleza, atrás de ajuda do governo imperial, partiram com uma tropa de burros e viajaram muitos dias pelos sertões secos e escaldantes. A viagem era perigosa havia riscos constantes de saque, portanto para asseguram a sua empreitada, levaram em sua companhia um cangaceiro, armado com duas pistolas e um bacamarte.

Dizem que eles conseguiram trazer seis cargas de farinha e duas de jabá, um pequeno quinhão para uma tão longa e perigosa viagem. No caminho um pobre esfomeado intentou um saque, mais foi afugentado com um disparo de bacamarte.

Naquela época muitos animais morreram de fome, até o gadinho de leite teve que ser consumido. Martins Ferreira ainda salvou uma vaca leiteira, alimentando-a com mandacaru e xiquexique assados numa fogueira. Mas um dia o animal desapareceu e depois de procurar por todos os recantos, avistou de longe que a vaquinha já estava sendo esfolada na Grota Funda pelo um bando de famintos, então ele voltou emudecido e trêmulo, pois temia até pela sua própria vida.

O Velho Eufrásio, morador da Chapada e pai de Benedito, tinha nessa época muitos bens e consegui até escapar um gadinho da fome, utilizando os recursos da caatinga e uma vazante na confluência dos riachos dos Porcos e Fortuna.

Esse bravo nordestino era considerado rico, porém, muito sovino. Dizem que tinha muita prata e com medo de ser roubado, carregava o metal sempre na sua algibeira, mesmo quando ia para roça. Porém, nessa época de calamidade a situação era de perigo. O velho deixou o bornal na cabeça de uma estaca e foi roubado, enquanto distraído, arraçoava os animais na vazante do riacho. Mas Eufrásio tinha sorte, pois Higino Pereira conseguiu capturar o larápio na subida da ladeira dos Belizários, devolvendo posteriormente as suas pratas.

A fome se agravava, enquanto isso, Eufrásio assistia insensível a miséria que rodeava os seus próprios familiares, uma de suas irmãs a mais pobre, já estava em estado avançado de inanição, quase a beira da morte. Muita gente tentou convencê-lo a matar um das reses para saciar a fome de sua irmã, porém ele era muito apegado as coisas materiais. Finalmente, depois de muita peleja, o velho foi convencido pelas palavras de seu grande amigo e compadre José Alves, então decidiu a matar a vaquinha Estrelinha.

A pobre criatura já desnutrida avançou sobre o prato de pirão acostelado, sem pena e nem dó, dizem que comeu até a gata miar. No entanto, as conseqüências dessa gula lhe foram funestas, o intestino quase fechado pelo estado de inanição, empacou de vez, morreu de barriga cheia. 

A notícia correu célere pela região, uma mulher morre de barriga cheia, numa época de fome. No momento do velório, entre choros e lamentos, alguém observou os sussurros espremidos do velho Eufrásio no para-peito do alpendre e tentou consolá-lo dizendo:

- Não fique se sentido culpado pelo o acontecido! Pelo menos a sua irmã não morreu de fome, mas de barriga cheia.

O velho ergueu a cabeça e com os olhos cheios de lágrimas, murmurou:

- Eu não estou chorando pela minha irmã, mas com pena da vaquinha que matei! Parece que estou vendo os dois olhos da estrelinha a fitar-me, pedindo para não ser morta!

Os antigos moradores da região contavam que certo viajante, um dia estava passando em frente de uma casa e ouviu um grande pranto, então, desapeou da sua mula para saber o que estava acontecendo. Era uma família faminta e desesperada, não tinham mais nada para comer, já fazia alguns dias.

O homem meio assustado foi até entrada do ranchinho de taipa e perguntou o que estava acontecendo. De repente apareceu na janela, um sujeito desgrenhado e raquítico, explicou-lhe que a família estava muito faminta e extremamente desesperada, e tinham acabado de decidir que uma das suas filhas seria abatida com animal para ver se escapavam da fome. O viajante estarrecido diante de tal revelação, profundamente consternado, ofereceu-lhes a sua própria mula em sacrifício, em lugar da pobre criatura.

Enquanto toda essa calamidade solapava a vida dos cearenses, os recursos enviados pela coroa eram insuficientes e desviados pelas autoridades constituídas. Em são Mateus dos Inhamus os recursos, já chegaram tardiamente, mas os políticos ambiciosos retiveram a farinha armazenada em velhos galpões a beira do rio Jaguaribe, com o propósito de venderam a mercadoria na época das vacas gordas.

Mas a natureza, de forma imprevisível promoveu no início de janeiro de 1888 uma chuva torrencial, de tal forma que água prorrompeu pelas biqueiras e inundou o armazém, molhando e fermentando toda farinha estocada. Os responsáveis preocupados com a repercussão política do caso, durante a calada da noite despejaram o mantimento no rio Jaguaribe, próximo a cidade de Jucás, por isso aquele lugar é conhecido até hoje como o poço da Farinha.

Higino Pereira e Martins escaparam da grande seca porque eram os mais abastados da região, no entanto, a situação foi muito difícil naquela época, inclusive, chegaram a perder quase todos os seus animais, vitimados pela fome. As duas famílias escaparam as duras penas, plantando batata-doce nas vazantes e comendo raiz de maniçoba, plantadas no sertão com intuito de extração do látex.

Frutuoso de Santa Teresa dizia que na época da grande seca, resmungava com fome nos ouvidos de seu pai:

- Eu quero batata de farinha de soba (maniçoba).

Seu pai lhe respondia asperamente:

- Corno besta, não tem nem de soba, nem que chega.

José Higino Pereira morreu em 1929, aos 76 anos de idade, vítima de doenças provocadas pelo tabagismo. Ele a sua esposa Josefa Pereira tinha como hábito, pitar o cigarro de palha e o cachimbo, aceso no borralho.

Quando o velho Higino sentiu que o seu fim se aproximava, mandou chamar lá no sítio São João, o seu genro Manoel Mandu e a sua filha Semiana para uma reconciliação. Ele tinha sido contrário ao casamento de sua filha e guardou essa mágoa no coração, até o final de sua vida. Semiana chegou a Vacaria mais cedo e ainda pode conversar com pai no leito de morte, no entanto, Manoel Mandu não teve a mesma sorte, ao pisar os pés no leito seco do riacho Fortuna, recebeu a notícia fatídica, o velho Higino da Vacaria acabou de falecer.

Um dos últimos desejos de Higino era ser enterrado bem próximo, ao portão de entrada cemitério de Cariutaba. Ele queria que o povo pisasse na sua cova e nunca se esquecessem do velho Higino Pereira, o senhor da Vacaria. Além dos treze filhos, Higino criou ainda Chico, Cirilo e José de Bilinha, filhos de Manoel Gino que morava nas Corujas, município de Crato.

Por esses e por muitos outros motivos, o escritor Euclides da Cunha, disse a célebre frase: “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, pois consegue sobreviver em condições tão adversas.


Meu sertão, minha gente e minha vida. Trechos citados por Antonio Ferreira Lima e escritos por Antonio Anicete de Lima

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS


NANNI, R. O drama das secas - 1958. Disponível em: <http://74.125.95.132/search?q=cache:TqWfKoaFC4J:www.oretorno.com.br/arquivos/texto_nanni.doc+Colera+seca+1877&cd=3&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acessado em: 18 de fevereiro de 2009.

SANTOS, E. A saga nordestina em Santarém. Disponível em: . Acessado em: 17 de novembro de 2009.

WIKIPÉDIA. Cólera. Disponível em: . Acessado em: 18 de novembro de 2010.

 


Autor: Antonio Anicete De Lima


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