Princípio da legalidade e normas penais em branco heterogênenas



 

 

Normal 0 21 false false false MicrosoftInternetExplorer4 st1\:*{behavior:url(#ieooui) } /* Style Definitions */ table.MsoNormalTable {mso-style-name:"Tabela normal"; mso-tstyle-rowband-size:0; mso-tstyle-colband-size:0; mso-style-noshow:yes; mso-style-parent:""; mso-padding-alt:0cm 5.4pt 0cm 5.4pt; mso-para-margin:0cm; mso-para-margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:10.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-ansi-language:#0400; mso-fareast-language:#0400; mso-bidi-language:#0400;}

 

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E NORMAS PENAIS EM BRANCO HETEROGÊNENAS

 

 

Floriano Batista Neto*

 

RESUMO: O princípio da legalidade, no qual é enunciado que não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal, é um dos pilares do garantismo penal, sendo um dos métodos de controle contra arbitrariedades do Estado. Ocorre que as normas penais em branco heterogêneas, que tem um complemento advindo de fonte diversa de lei, ferem a legalidade, em especial no seu fundamento democrático e em sua taxatividade, requisitos procedimentais e principiológicos da reserva de lei, sendo, portanto, com esta incompatível. O objetivo do presente trabalho é demonstrar a incompatibilidade do princípio da legalidade com as normas penais em branco heterogêneas.

 

 

Palavras-chaves: Princípio da legalidade. Norma penal em branco heterogênea. Incompatibilidade.

 

INTRODUÇÃO

 

O principio da legalidade disposto no texto constitucional em seu artigo 5°, XXXIX e no artigo 1° do Código Penal Brasileiro, constitui um verdadeiro mecanismo limitador das ações do Estado e princípio pilar do garantismo penal.

 Preceitua tal princípio, não haver crime - que deve ser entendido com infrações penais, destarte, incluindo as contravenções penais - sem lei que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

A doutrina moderna entende que princípio da legalidade deve ser compreendido como sendo a junção do princípio da reserva legal (lei em sentido estrito) mais o princípio da anterioridade.

Noutro vértice, encontram-se as normas penais em branco, que são normas que necessitam de uma complementação normativa para que se possa compreender a aplicação de seu preceito primário, sendo tais normas subdivididas em normas penais em branco homogêneas e normas penais em branco heterogêneas.

A norma penal em branco homogênea tem seu complemento normativo emanado do legislador, passando por um trâmite legislativo a fim de se inovar a ordem jurídica. Entretanto, a norma penal em branco heterogênea tem seu complemento normativo emanado por outra esfera de poder, que não é o legislativo, sem passar por trâmites legais, inovando a ordem jurídica.

Em face da ponte que se faz ao criar tipos penais sem se passar pelo trâmite legislativo, através de discussões em ambas as casas do Congresso Nacional, as normas penais em branco heterogêneas perscrutam demasiados estudiosos do direito sobre sua compatibilização com o princípio da legalidade, em especial no seu fundamento democrático, ou seja, uma “criação” camuflada de tipos penais sem ser pelos representantes do povo.

Reportam, ainda, que as normas penais em branco heterogêneas, à guisa do princípio da legalidade, não obedecem à taxatividade da norma, remetendo a complementação de seu conteúdo a outras esferas de poder, que deteriam, em tese, uma função indireta atípica de legislar sobre Direito Penal.

O presente trabalho foi embasado em pesquisas bibliográficas, visando demonstrar a afronta ao princípio da legalidade pelas normas penais em branco heterogêneas.

 

1  ONTOLOGIA DO DIREITO PENAL

 

Em apertada síntese, o Direito Penal é um ramo do Direito Público, por conter mandamentos de ordem pública impostos a todos de maneira coercitiva em um determinado território.

Na lição de Bruno Aníbal, o Direito Penal é: [1]

 

O conjunto de normas jurídicas que regulam a atuação estatal nesse combate contra o crime, através de medidas aplicadas aos criminosos, é o Direito Penal. Nele se definem os fatos puníveis e se cominam as respectivas sanções – os dois grupos dos seus componentes essenciais, tipos penais e sanções. É um direito que se distingue entre os outros pela gravidade das sanções que se impõe e a severidade de sua estrutura, bem definida e rigorosamente delimitada. 

 

Dessa forma, o Direito Penal, à luz dos funcionalistas teleológicos, é o ramo do direito responsável a resguardar ou proteger os bens jurídicos mais importantes e necessários à vida em sociedade, qualificando determinadas condutas humanas como infrações penais, definindo seus agentes e fixando sanções correspondentes.

Nesse sentido assevera Fernando Capez:[2]

 

O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em conseqüência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.

 

A fim de cumprir tal missão imposta a esse ramo do direito, de selecionar os bens jurídicos a serem resguardados, tem o legislador o dever de inovar a ordem jurídica, selecionando bens jurídicos mais importantes à vida em sociedade e tipificá-los como infrações penais por meio de Leis - que terão de buscar a harmonização social, resguardando ao máximo a segurança jurídica e os direitos inerentes à pessoa humana em um estado democrático de direito.

Importante trazer a baila que o Estado, na busca da harmonização do convívio social, deve ter como fundamento ideológico a punição de culpados, que não é sua função exclusiva, que vai além – a de proteger os inocentes, sua razão de ser.

 

2 O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

 

Divergente a doutrina quanto à origem do principio da legalidade, sendo que três correntes dissertam sobre seu surgimento.

A primeira corrente aduz que o princípio da legalidade adveio do Direito Romano; a segunda corrente sustenta que referido princípio adveio da Carta de João sem terra de 1215; uma terceira corrente, a mais aceita pela doutrina brasileira, sustenta que tal princípio tem seu alicerce no Iluminismo, sendo recepcionado, posteriormente, pela Revolução Francesa.

Feito tais apontamentos, exsurge a necessidade de se conceituar, num campo macro, o princípio da legalidade - que no mais das vezes se confunde com o próprio conceito de Direito Penal -, que pode ser entendido como o princípio limitador ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais, sendo que somente por lei poderá o Estado incriminar determinadas condutas humanas e cominar-lhe sanções. Para consecução de tal fim, deve o Estado obedecer a requisitos substanciais que norteiam o princípio da legalidade, dando-lhe validade diante e ordem constitucional e o Estado Democrático.

Ao elaborar lei incriminadora, deve o Estado fazê-la norteado pelas seguintes formas: a lei deve ser escrita, a fim de evitar costume que possa incriminar condutas humanas; estrita, a fim de evitar analogia que incrimine; certa (princípio da taxatividade), lei certa e clara, evitando-se ambigüidade; necessária, que nada mais é do que um dos tentáculos do princípio da intervenção mínima e do garantismo penal.

Registre-se, por oportuno, que o princípio da legalidade é o pilar do garantismo penal, fundamentado por Luigi Ferrajoli, que, parafraseado por Rogério Grecco, diz que: 3

 

A constituição nos garante uma série de direitos, tidos como fundamentais, que não poderão ser atacados pelas normas que lhe são hierarquicamente inferiores. Dessa forma, não poderá o legislador proibir ou impor determinados comportamentos, sob a ameaça de uma sanção penal, se o fundamento de validade de todas as leis, que é a Constituição, não nos impedir de praticar ou, mesmo, não nos obrigar a fazer aquilo que o legislador nos está impondo.

 

Nesse sentido, Ferrajoli aduz que “garantismo – entendido no sentido de Estado Constitucional de Direito, isto é, aquele conjunto de vínculos e de regras racionais impostos a todos os poderes na tutela dos direitos de todos, representa o único remédio para os poderes selvagens”. 4

Em apertada síntese, o garantismo penal funciona como freio as arbitrariedades do poder estatal frente ao cidadão, reduzindo ao máximo o poder punitivo daquele frente a este, que terá elevado ao máximo suas garantias, estas asseguradas através de leis certas, taxativas e constitucionalmente válidas na pirâmide do Direito inicialmente elaborada por Hans Kelsen.

Quanto à localização em nosso ordenamento pátrio, o principio da legalidade encontra-se expresso na Constituição Federal de 1988 (CF) em seu artigo 5°, inciso XXXIX e no Código Penal Brasileiro em seu artigo 1°, que estabelecem que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

Importante ressaltar que a lei incriminadora deve ser anterior a ocorrência do fato, princípio da anterioridade, impedindo-se uma retroatividade incriminadora.

 

2.1 A imprescidibilidade de leis certas e taxativas

 

Merece maior destaque, entre os requisitos que deve possuir uma legalidade penal válida, a taxatividade, ou, como preferem alguns autores, o princípio da taxatividade, que, se entendido desta maneira, nada mais é do que extensão do princípio da legalidade.

Em 1764, Beccaria já alertava a respeito da obscuridade das lei:5

 

Se a interpretação das leis é um mal, claro que a obscuridade, que a interpretação necessariamente acarreta, é também um mal, e este mal será gradíssimo se as leis forem escritas em línguas estranhas ao povo, que o ponha da dependência de uns poucos, sem que possa julgar por si mesmo qual seria o êxito de sua liberdade, ou de seus membros, em língua que transformasse um livro, solene e público, em outro como que privado e de casa”.

 

Nesse mesmo sentido, de forma brilhante, Cláudio do Prado Amaral disserta sobre a taxatividade:6

Exige-se que a lei penal seja certa, isto é, que os tipos penais sejam elaborados legislativamente de forma clara e determinada, a fim de que as condutas incriminadas sejam passíveis de identificação, sem que se precise recorrer a extremados exercícios de interpretação ou integração da norma. Quer-se se a clareza denotativa dos tipos penais, o que torna a norma legal prontamente inteligível a seus destinatários em termos cognitivos: todos os cidadãos. Se a norma penal incriminadora tem como um de seus objetivos intimidar para a não-realização da conduta proibida, é preciso que seja clara a todos, a fim de que saibam e conheçam sem quaisquer dúvidas o conteúdo da norma legal.

 

O erudito professor Rogério Grecco ainda assevera:7

 

Por intermédio da vertente nullum crimen nulla poena sine lege certa extrai-se a conclusão de que a lei penal dever ser taxativa. A própria Constituição Federal, ao abrigar expressamente o princípio da legalidade em seu art. 5°, XXXIX, o traduziu dizendo que não há crime sem lei anterior que o definam ou seja, a definição da infração penal é um dado indispensável pertencente ao conceito de legalidade.

 

Concluindo, o princípio da legalidade e o da taxatividade são conceitos ligados umbilicalmente, sendo que afastando a taxatividade, onde o tipo não deixa margem a dúvidas e aduz claramente a certeza normativa sem necessitar de complementos, retroagir-se-á as eras selvagens, tempo em que ditaduras adotavam o Direito Penal como camuflagem para cometer arbitrariedades, como, por exemplo, na Alemanha nazista.

 

 

 

2.2 Fundamentos do princípio da legalidade

 

São três os fundamentos do principio da legalidade: Político, jurídico e democrático.

O fundamento jurídico estabelece que uma lei clara e anterior produz importante efeito intimidativo. Neste sentido leciona Cleber Masson “O fundamento jurídico é a taxatividade, certeza ou determinação, pois implica, por parte do legislador, a determinação precisa do conteúdo do tipo penal”.8

O fundamento político estabelece que o poder de inovar ordem jurídica pelo Estado, criando tipos penais, não pode ser de maneira autoritária. Há, primeiramente, que se passar pelo trâmite legislativo, em que representantes do povo que criarão leis abstratas e coercitivas, sendo exigido de todos a vinculação a estas leis formuladas.

O fundamento democrático, que nada mais é que uma extensão do fundamento político, diz respeito à divisão de poderes ou separação de funções, através do qual o povo, por meio de representantes eleitos, democracia semidireta ou representativa, deve ser o responsável pela criação de infrações penais.

 

2.3 Legalidade e reserva legal

 

A denominação do princípio da legalidade merece especial cautela, pois a doutrina faz a distinção salutar entre as expressões legalidade e reserva legal ou estrita legalidade.

Há duas correntes sobre tal denominação: a primeira defende não haver diferença entre legalidade e reserva legal e tem como um de seus defensores Fernando Capez, que leciona “o princípio da legalidade e da reserva legal são sinônimos e equivalentes”. 9

Outra corrente defende que o princípio da legalidade se difere do principio da reserva legal. A reserva legal considera lei em sentido estrito (somente se cria infrações penais por meio de lei ordinária e lei complementar) e o princípio da legalidade lei em sentido amplo (artigo 59 da Constituição Federal de 1988, que estabelece como sendo do processo legislativo: decretos, leis delegadas, medidas provisórias). Essa corrente tem como defensor Rogério Greco.

A maioria da doutrina entende que a segunda corrente é mais correta, por abarcar a lei em sentido material, matéria reservada exclusivamente à lei, e lei em sentido formal, obediência ao processo legislativo, sempre observando, ainda, a anterioridade da lei penal.

Em uma fórmula, pode-se dizer que o princípio da legalidade abrange a reserva legal - leis ordinárias e complementares - e anterioridade da lei penal.

 

2.4 Legalidade formal e legalidade material

 

Diz-se legalidade formal quando há obediência aos trâmites legislativos, ou seja, há regularidade formal aos procedimentos previsto no corpo da Constituição Federal de 1988. Noutro vértice, legalidade material há quando se obedece a preceitos contidos na Constituição Federal e em Tratados Internacionais sobre Direitos Humanos.

A legalidade formal gera lei vigente, enquanto a legalidade material gera lei válida.

Nas palavras de Rogério Grecco:10

 

Incontestável a conquista obtida por meio da exigência da legalidade. Contudo, hoje em dia, não se sustenta um conceito de legalidade de cunho meramente formal, sendo necessário, outrossim, investigar a respeito de sua compatibilidade material com o texto que lhe é superior, vale dizer, a Constituição. Não basta que o legislador ordinário tenha tomado as cautelas necessárias no sentido de observar o procedimento legislativo correto, a fim de permitir a vigência do diploma legal por ele editado. Deverá, outrossim, verificar o conteúdo do objeto, a matéria objeto da legislação penal não contradiz os princípios expressos ou implícitos constantes de nossa Lei Maior.

 

 

 

 

 

3 NORMAS PENAIS EM BRANCO

 

As normas penais em branco são conceituadas como sendo normas incompletas, dependentes de um complemento normativo.

Para Guilherme de Souza Nucci, as normas penais em branco conceituam-se como sendo “aquelas cujo preceito primário é indeterminado quanto a seu conteúdo, mas o preceito sancionador é determinado”. 11

Esclarecedor é Rogério Grecco ao preceituar sobre tais normas:12

 

A partir do momento que tivermos de nos fazer essa pergunta, ou seja, a partir do instante que necessitamos buscar um complemento em outro diploma para que possamos saber o exato alcance daquela norma que almejamos interpretar, estaremos diante de uma norma penal em branco.

 

De forma sucinta, as normas penais em branco são infrações penais existentes que dependem de complementação para sua eficácia e se dividem em normas penais em branco em homogêneas/impróprias/amplas e normas penais em branco heterogêneas/próprias/estritas.

Diz-se norma penal em branco heterogênea/própria/estrita quando o complemento normativo advier de fonte diversa daquela que a deu luz ao mundo jurídico. Exemplo esclarecedor é o caso da “Lei de Drogas”, onde o poder legislativo federal inovou a ordem jurídica através da Lei 11.343/2006, porém tal lei - especificamente no seu artigo 1°, parágrafo único - é complementada por uma portaria da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, pertencente ao Poder Executivo, que preceitua o que é substância entorpecente, para fins de criminalização.

Diz-se norma penal em branco homogênea/imprópria/ampla quando o complemento normativo advier da mesma fonte que deu luz à norma no mundo jurídico. Elas se subdividem, ainda, em normas penais em branco homogêneas homólogas e heterólogas. Homólogas quando o complemento advier da mesma fonte legislativa. É uma lei penal complementada por outra lei penal, exemplo: conceito de funcionário público disposto no artigo 327 do Código Penal. Heterólogas quando o complemento advier de instância legislativa diversa. É uma lei penal complementada por uma lei cível, exemplo: o artigo 236 do Código Penal remete a impedimentos do casamento, sendo estes impedimentos a que se refere complementado pelo Código Civil em seu artigo 1.521.

 

4 AS NORMAS PENAIS EM BRANCO E A RESERVA LEGAL

 

Passada a fase conceitual dos institutos das normas penais em branco e do princípio da legalidade, resta saber se há compatibilidade entre elas.

Primeiramente, em relação às normas penais em branco homogêneas, não se vislumbra incompatibilidades entre estas e o princípio da legalidade, pois o complemento normativo advindo de tais normas passa regularmente pelo processo legislativo, em que representantes eleitos do povo debatem sobre tais normas, sendo analisadas pelas comissões, sujeitas à votação como, também, ao controle de freios e contrapesos exercido pelo executivo ao sanciona-lás e promulga-lás.

 A título de exemplo, como já mencionado, o artigo 236 do Código Penal estabelece que “Contrair casamento, induzindo em erro essencial o outro contraente, ou ocultando-lhe impedimento que não seja casamento anterior: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Nesse caso, o que irá definir os impedimentos previstos no núcleo do tipo é o Código Civil, em seu artigo 1.521. Nesse mesmo contexto pode-se citar o artigo 327 do Código Penal, que dispõe, para efeitos desse código, que são funcionários públicos, embora transitoriamente e sem remuneração, aquele que exerce cargo, emprego ou função pública.

Por outro lado, questão debatida e relevante é a compatibilidade do princípio da legalidade com as normas penais em branco heterogêneas, cujo complemento normativo não advém do legislador e sim de órgãos do Poder Executivo.

Doutrinadores eminentes disparam seus argumentos de ambos os lados ao defenderam suas teses quanto ao tema.

De início, transcrever-se-á a posição doutrinária que se tem prevalecido, após a que é defendida no presente trabalho.

 

 

 

4.1 Não ofensa à legalidade pelas normas penais em branco heterogêneas

 

Alguns doutrinadores defendem a compatibilidade das normas penais em branco heterogêneas em relação ao princípio da legalidade, pois, segundo eles, o legislador já teria criado a infração penal com todos seus requisitos básicos, limitando-se a autoridade administrativa explicitar esses requisitos.

Nesse sentido Capez descreve:13

 

Não há ofensa à reserva legal, pois a estrutura básica do tipo está prevista em lei. A determinação do conteúdo, em muitos casos, é feita pela doutrina e pela jurisprudência, não havendo maiores problemas em deixar que sua complementação seja feita por ato infralegal. O que importa é que a descrição básica esteja prevista em lei.

 

No mesmo paradigma, Masson enuncia:14

 

Por esse motivo, é perfeitamente compatível com as leis penais em branco, com os tipos penais em aberto e com crimes culposos. A Constituição Federal e o Código Penal não impõe ao tipo penal a definição de todos os elementos da conduta criminosa, mas apenas dos mais relevantes, podendo os demais ser transferidos a outras leis, a tos administrativos, ou, finalmente, à interpretação do magistrado.

 

São as lições de Carbonell Mateu, parafraseado por Grecco:15

 

A técnica das leis penais em branco pode ser indesejável, mas não se pode ignorar que é absolutamente necessária em nossos dias. A amplitude das regulamentações jurídicas que dizem respeito sobre as mais diversas matérias, sobre as que podem e deve pronunciar-se o Direito Penal, impossibilita manter o grau de exigência de legalidade que se podia contemplar no século passado ou inclusive a princípio do presente. Hoje, cabe dizer que desgraçada, mas necessariamente, temos de nos conformar com que a lei contemple o núcleo essencial da conduta.

 

Nucci também se posiciona neste sentido:16

 

As normas penais em branco não ofendem a legalidade, porque se pode encontrar o complemento da lei penal em outra fonte legislativa, previamente determinada e conhecida. É preciso, no entanto, que se diga que o complemento da norma em branco é, via de regra, de natureza intermitente, feito para durar apenas por determinado período.

 

4.2 Ofensa à legalidade pelas normas penais em branco heterogêneas

 

Apesar de sedutores os argumentos utilizados pelos defensores da primeira corrente, na prática, o que se vê é que as normas penais em branco heterogêneas atuam não como complemento de tipos penais, mas sim como próprias leis penais, de maneira indireta - pois não contidas no núcleo do tipo penal e não submetidas ao crivo do Congresso Nacional.

Diz-se, ainda, que a lei penal em branco heterogênea fere o princípio democrático da lei penal, pois os tipos penais devem ser elaborados em instâncias legislativas, não delegados ao executivo.

 

4.2.1 Ofensa ao fundamento democrático

 

Conforme explanado anteriormente, o fundamento democrático do princípio da legalidade consiste na elaboração de tipos penais por quem de direito a constituição atribuiu esta função.

O artigo 22, inciso I da Constituição Federal é claro ao estabelecer que cabe privativamente a União legislar sobre Direito Penal, não podendo se delegar tal tarefa de inovação da ordem jurídica a outro poder. Ocorre que as normas penais em branco heterogêneas, por sua própria essência, são editadas por fonte diversa daquela que lhe deu origem.

Com efeito, tome-se a título de exemplo a lei antidrogas, lei 11.343/06, que em seu artigo 1°, parágrafo único enuncia que: “Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União”, cujo complemento adveio de uma autarquia federal – ANVISA.

O Poder Legislativo ao fazer essa delegação camuflada ao Poder Executivo de complementar núcleos de tipos penais vazios, “casulos de leis”, está contrariando competência legislativa penal constitucionalmente prevista, que é da União, artigo 22, inciso I da Constituição Federal.

Diga-se camuflada porque o dito “complemento do núcleo essencial do tipo” torna-se, na verdade, o próprio tipo penal, ou melhor, a essência errante de uma norma penal inválida em seu conteúdo.

Não bastasse a delegação inválida que é feita, burla-se todo o processo legislativo de discussão e debates pelo Poder Legislativo, que é o responsável por tal, visto que “crime” nada mais é do que um processo político, que deve ser observado a qualquer custo, sob pena de se retroceder a tempos remotos, em que se imperava a “lei” da vontade de uma oligarquia sem legitimação popular.

Ressalte-se, ainda, que um órgão governamental não constituído do poder legiferante pode, a qualquer momento, alterar o famigerado complemento normativo das normas penais em branco heterogêneas por simples ato administrativo.

É o que ocorre pelas portarias emanadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que detém, conforme alínea a do inciso I do art. 14 do Decreto n° 5.912/06, competência para dizer o que é substância ou produto capaz de causar dependência, que será o “complemento” (na verdade será muito mais que o próprio tipo penal) da norma penal em branco do artigo 1°, parágrafo único da Lei 11.343/2006.

Nesse sentido, um dos maiores defensores da ilegalidade das normas penais em branco heterogêneas, Rogério Grecco, de maneira plausível e coerente, explicou de forma brilhante onde reside a ofensa ao princípio da legalidade:17

 

Como o complemento da norma penal em branco heterogênea pode ser oriundo de outra fonte que não a lei em sentido estrito, esta espécie de norma ofenderia o princípio da legalidade? Entendemos que sim, visto que o conteúdo da norma penal poderá ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei são submetidos à apreciação de ambas as Casas do Congresso Nacional, sendo levada a consideração e vontade do povo, representados pelos deputados, bem como a dos Estados, representados pelos seu senadores, além do necessários controle pelo Poder Executivo, que exercita o sistema de freios e contrapesos.

 

Continuando, Grecco adentra ao tema da lei antidrogas:18

                                                                            

Imagine-se o que acontece com a seleção das substâncias ou produtos capazes de causar dependência, previstos no artigo 28 da Lei nº 11.343/06. Fará parte desse rol, ou mesmo será excluída dele aquela substância que assim entender a cúpula de direção da ANVISA, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde que detém esse poder, conforme se verifica pela alínea a do inciso I do art. 14 do decreto n° 5.912 de 27 de setembro de 2006, que regulamentou a Lei n° 11.343/06, de 23 de agosto de 2006, tratando das políticas públicas sobre drogas e da instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD)... O que na verdade estamos querendo esclarecer é que não haverá, seja na inclusão de novas substâncias (criminalização), seja mesmo na exclusão daquelas já existentes (descriminalização), qualquer discussão por parte do Poder competente para legislar em matéria penal, que é a União, nos termos do art. 22, I da Constituição Federal.

 

Nesse contexto, destaque merece a lição de Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar, quando asseveram:19

 

Não é simples demonstrar que a lei penal em branco não configura uma delegação legislativa constitucionalmente proibida. Argumenta-se que há delegação legislativa indevida quando a norma complementar provém de um órgão sem a autoridade constitucionalmente legiferante penal, ao passo que quando tanto a lei penal em branco quanto sua complementação emergem de fonte geradora constitucionalmente legítima não se faz outra coisa senão respeitar a distribuição da potestade legislativa estabelecida nas normas fundamentais. O argumento é válido, mas não resolve o problema. Quando assim se teorizou, as leis penais em branco eram escassas e insignificantes: hoje, sua presença é considerável e tende a superar as demais leis penais, como fruto de uma banalização e administrativização da lei penal. A massificação provoca uma mudança qualitativa: através das leis penais em branco o legislador penal está renunciando à sua função programadora de criminalização primária, assim transferida a funcionários e órgãos do poder executivo, e incorrendo, ao mesmo tempo, na abdicação da cláusula da ultima ratio, própria do estado de direito.

 

Diante os argumentos acima expostos, no Brasil, em uma última análise, quem legisla sobre o que é “tráfico ilícito de entorpecentes” é o Poder Executivo, por fazê-lo de forma atípica, que, data vênia, o faz de maneira clandestina aos olhos de uma constituição democrática.

Mostra-se que o Poder Executivo exerce uma função atípica indireta de legislar sobre Direito Penal, quando lhe é dado à incumbência de definir núcleos do tipo penal.

Nesse contexto, o Direito Penal não pode servir-se de complementos a tipos penais vindouros de uma autarquia do Poder Executivo, desplante à capa de uma legalidade maculada, esdrúxula.

 

4.2.1 Ofensa à taxatividade

 

Conforme já delineado no presente trabalho, a taxatividade complementa o princípio da legalidade por ser ela um de seus requisitos essenciais e indispensáveis no campo da validade.

Tendo em vista o garantismo penal, que assegura a todos os cidadãos respeito a seus direitos individuais frente ao arbítrio estatal, a legalidade estrita é seu maior aliado, por não permitir que o Estado viole direitos fundamentalmente garantidos sem passar por trâmites legislativos, que, em regra, são feitos por representantes do povo. Há de se ressaltar a observância tanto da legalidade formal quanto à material no tecer de uma norma.

Os representantes do povo, eleitos em um sistema democrático, por uma democracia semidireta, ao elaborarem infrações penais, devem precisar ao máximo a norma legal incriminadora, ou seja, devem ser precisos ao elaborarem o conteúdo, evitando-se remeter a outro diploma ou de permitir interpretações duais.

Nesse ponto, Manuel Cavaleiro de Ferreira discorre sobre a taxatividade:20

 

A norma legal incriminadora tem de ser certa, isto é, tem de determina com suficiente precisão o fato criminoso. A ação ou omissão em que o fato consiste não pode ser inferido da lei; tem de ser definido pela lei. Não é norma incriminadora constitucionalmente válida aquela cujo teor se apaga numa cláusula geral que remeta o seu preenchimento para o arbítrio do julgador”.

 

De antemão, combate-se os defensores da corrente que defendem que a norma penal em branco heterogênea não fere à taxatividade, pois somente se complementaria o núcleo do tipo.

Mais uma vez tendo como exemplo o artigo 1°, parágrafo único da lei antidrogas, o “apenas” complementar o núcleo do tipo nada mais é do que criar conceitos inseguros para a população, pois podem ser modificados a qualquer momento pelos atos da cúpula ANVISA, sem qualquer discussão e sem qualquer tipo de controle. Ora, em verdade o que fez o legislativo foi delegar sua função ao executivo, quedando-se inerte ao estabelecer em um rol quais são as substâncias que podem causar dependência física e psíquica.

A legalidade ao lado do garantismo penal requer leis certas e taxativas, sem necessitar de ir se buscar “núcleos de tipos” em atos administrativos emanados de outros poderes. Nesse caso, o Estado está utilizando-se do Direito Penal como instrumento para cometer abusos, trazendo grave insegurança jurídica à população, que se vê a margem dos dizeres da ANVISA, preceituando o que é e o que não é substância entorpecente.

Veja-se o que dispõe o culto Celso Delmanto em sua obra, ao comentar o complemento feito à Lei 11.343/06 relativo às normas penais em branco heterogêneas que ali habitam:21

 

Por meio das leis penais em branco em sentido estrito se abandona, por vezes, a regulamentação da materia penal ao Poder Executivo, o que pode implicar uma clara infração do princípio da legalidade, posto que a reserva absoluta de Lei impede remissão normativa, sendo em princípio contrario à Constituição. Buscando contornar o perigo que essa técnica legislativa implica, mediante eventuais arbitrariedades das autoridades administrativas, defende que a norma complementadora somente se encarregue de indicar condições, circunstâncias, limites e outros aspectos claramente complementários, mas nunca defina o que é proibido (desvalor da conduta) sob pena da garantia constitucional de que não há crime sem lei anterior que o defina restar clara e abertamente violada.

 

Extrai-se do trecho acima que as normas penais em branco heterogêneas, no caso da Lei antidrogas, ferem o princípio da legalidade, porque a técnica legislativa de transportar à ANVISA - autarquia vinculada ao Poder Executivo – o complemento do que vem a ser substância entorpecente é nada mais do que um definir do que é proibido, ou seja, o desvalor da conduta e não uma simples complementação secundária.

Diante o exposto, mostra-se clarevidente a ofensa à legalidade estrita e absoluta em um Estado democrático de direito, que se pauta pelo garantismo penal.

 

CONCLUSÃO

 

As normas penais em branco homogêneas – aquelas cujo complemento normativo surge de outra lei - compatibilizam-se com o sistema do Direito Penal e do princípio da legalidade, à luz do garantismo penal, porque tais normas além de realmente só complementarem tipo penais, passam regularmente por um trâmite legislativo, em que há debates e discussões pelos representantes do povo.

Já as normas penais em branco heterogêneas, cujo complemento normativo advém de fonte normativa adversa de lei, ferem o princípio da legalidade, que deve ser entendido em seu sentido estrito, ou da reserva legal.

Infere-se, após análise criteriosa, que o princípio da legalidade em direito penal requer, para que tenha validade, preenchimento de alguns requisitos procedimentais e principiológicos como forma de garantia do cidadão frente aos poderes do Estado. Procedimentais porque as normas penais em branco heterogêneas não obedecem a um trâmite legislativo constitucionalmente previsto, ocorrendo, por sua essência de norma heterogênea, em verdade, uma delegação legislativa ao Poder Executivo, na maior parte das vezes, para que este complemente o núcleo de tipos penais, exemplo a do que ocorre na lei antidrogas, lei 11.343/06, na qual a ANVISA, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, publica, através de portarias, lista de substâncias que causam dependência e, consequentemente são tipificadas como infrações penais.

Principiológicos porque as normas penais em branco heterogêneas ferem a taxatividade da lei penal, ao deixar ao livre arbítrio de outro ente sua complementação de núcleo, causando grande insegurança jurídica à população.

Dessa forma, pelos argumentos trazidos no decorrer do presente trabalho, resta claro que as normas penais em branco heterogêneas são incompatíveis com o princípio da legalidade, principalmente se considerarmos o caso da Lei 11.343/06, lei antidrogas, sendo que seu uso acarreta grave insegurança jurídica à população, que se vê a margem do arbítrio do Poder Executivo através de sua autarquia, ANVISA, que, neste caso, no “apagar das luzes” estará, na verdade, incriminando condutas e não apenas complementando núcleo de tipos penais.

                                                                                       

REFERÊNCIAS

 

AMARAL, Cláudio do Prado. Princípios Penais: da Legalidade à culpabilidade. Revista do IBCCRIM, São Paulo, v. 24, 2003.

 

BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA,Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003.

 

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: RT, 1999.

 

BRASIL. Código Penal. 6. ed. São Paulo: Ridel, 2007.

 

______. Código Penal; Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2005

 

_____. Lei nº 11343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – SISNAD; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 24 de agosto de 2006.

 

BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

 

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

 

DELMANTO, Celso; DELMANTO, Roberto; DELMANTO JUNIOR, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Código penal comentado: acompanhado de comentários, jurisprudência, súmulas em matéria penal e legislação complementar. 5.ed. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010.

 

FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Lições de direito penal: parte geral. Lisboa, 1992.

 

GRECCO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.

 

_____. Direito penal do equilíbrio. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2009.

 

MASSON, Cleber. Direito penal esquematizado: parte geral. 2 ed. São Paulo: Método, 2010.

 

NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

 
 

 


* [email protected] . Acadêmico do 10º período da Faculdade de Direito do Instituto Machadense  de Ensino Superior  (IMES) mantido pela da Fundação Machadense de Ensino Superior e Comunicação (FUMESC)– Machado – MG.

Download do artigo
Autor: Floriano Batista Neto


Artigos Relacionados


Justa Causa Como Condição Da Ação Penal

Sequestro E Adoção

Princípio Da Legalidade No Direito Penal

Resumo De Direito Penal Parte Geral

A Aplicabilidade Do PrincÍpio Da InsignificÂncia...

O Princípio Da Legalidade No Direito Penal

Princípio Da Insignificância Ou Da Bagatela: Minima Non Curat Praetor