Mas...



 

MAS...

Luiz Fernando de Moraes

 

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Resumo

 

Segundo a gramática, o verbete "mas", é a principal das conjunções adversativas. Relaciona pensamentos contrastantes, opositivos ou

restritivos

. Vejam só, com a palavra em grifo já começamos mal. Então está combinado. Daqui para diante, a cada citação de minha autoria, o vocábulo "mas" será protegido por aspas duplas, com intuito de chamar a atenção do leitor.

Este artigo pretende analisar a forma com que o escritor Machado de Assis, através de seus personagens, tratava a questão das deficiências e dos problemas humanos. Alguns o chamaram de intelectual elitista e absolutamente descompromissado com as dores sociais comuns de sua época. Chegaram até mesmo a acusá-lo de antiético e frustrado, em virtude da falta de caráter do Bentinho de Don Casmurro, por exemplo. Seria parte da imagem que o escritor possuía, como um sujeito mal-humorado, de mal com a vida, ácido? Ou tratava-se de um embaraço, uma dificuldade do autor em lidar com a epilepsia, da qual nem aos amigos falava? Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra objeto deste artigo, ao falar do sofrimento de uma personagem cujo amante morre, ele diz: "Não digo que se carpisse; não digo que se deixasse rolar pelo chão, epiléptica...". Nas edições posteriores a frase foi substituída por: "Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão, convulsa...". Segundo biógrafos, Machado de Assis, devido às convulsões, vez por outra mordia a língua e por isto, tinha dificuldades na fala, o que atribuía à ulcerações gástricas, as famosas "aftas".

 

 

 

Palavras Chave

: Machado de Assis; deficiência; preconceito.

Introdução

 

Machado de Assis

 

Joaquim Maria Machado de Assis, jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro-RJ, em 21 de junho de 1839. É o fundador da Cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o

nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis. Filho do operário Francisco José Machado de Assis e de Leopoldina Machado de Assis, perdeu a mãe muito cedo, pouco mais se conhecendo de sua infância e início da adolescência.

Sem meios para cursos regulares, estudou como pôde e, em 1855, com 16 anos incompletos, publicou o primeiro trabalho literário, o poema "Ela", na Marmota Fluminense, jornal de Francisco de Paula Brito, número datado de 12 de janeiro de 1855. Seu primeiro livro de poesias, Crisálidas, saiu em 1864. Em 1867, foi nomeado ajudante do diretor de publicação do Diário Oficial. Em agosto de 69, menos de três meses depois (12 de novembro de 1869), Machado de Assis se casou com a irmã do amigo Faustino Xavier de Novais, Carolina Augusta Xavier de Novais. Foi companheira perfeita durante 35 anos, tendo-lhe revelado os clássicos portugueses e vários autores de língua inglesa. O primeiro romance de Machado, Ressurreição, saiu em 1872. Pouco depois, o escritor foi nomeado primeiro oficial da Secretaria de Estado do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, iniciando assim a carreira de burocrata que lhe seria até o fim o meio principal de sobrevivência. Em 1874, começou a publicar em O Globo o romance A mão e a luva. No ano de 1881 saiu o livro que daria uma nova direção à carreira literária de Machado de Assis –

Memórias póstumas de Brás Cubas

que ele publicara em folhetins na Revista Brasileira de 15 de março de 1879 a 15 de dezembro de 1880. Do grupo de intelectuais que se reunia na Redação da Revista, e principalmente de Lúcio de Mendonça, partiu a idéia da criação da Academia Brasileira de Letras, projeto que Machado de Assis apoiou desde o início. Comparecia às reuniões preparatórias e, no dia 28 de janeiro de 1879, quando se instalou a Academia, foi eleito presidente da instituição, a qual ele se devotou até o fim da vida.

A obra de Machado de Assis abrange, praticamente, todos os gêneros literários. Na poesia, inicia com o romantismo de Crisálidas (1864) e Falenas (1870), passando pelo Indianismo em Americanas (1875), e o parnasianismo em Ocidentais (1897-1880). Paralelamente, apareciam as coletâneas de Contos fluminenses (1870) e Histórias da meia-noite(1873); os romances Ressurreição (1872), A mão e a luva(1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), considerados como pertencentes ao seu período romântico. A partir daí, Machado de Assis entrou na grande fase das obras-primas, que fogem a qualquer denominação de escola literária e que o tornaram o escritor maior das letras brasileiras e um dos maiores autores da literatura de língua portuguesa. Em 1975, a Comissão Machado de Assis, instituída pelo Ministério da Educação e Cultura e encabeçada pelo presidente da

 

Academia Brasileira de Letras, organizou e publicou, também pela Civilização Brasileira, as edições críticas de obras de Machado de Assis, em 15 volumes, reunindo contos, romances e poesias desse escritor máximo da literatura brasileira.

 

Machado de Assis faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908.1

 

 

1 Texto extraído do site

 

http://www.lendo.org/machado-de-assis/

 

 

Resumo da obra

 

O romance publicado em 1881 marca o início do realismo no Brasil. Naquela época, escritores preferiam tramas repletas de emoção e suspense. Machado de Assis utiliza irreverência e ironia para narrar os privilégios da elite daquela época e a história de um defunto autor. Fez questão aliás de dizer que Brás Cubas era um defunto autor e não um autor defunto, isto é, não foi um grande escritor que morreu e sim um defunto que era capaz de escrever. Assim sendo, começa por sua morte, descrevendo o próprio enterro, delírios e o retorno à infância, com interrupções para comentários digressivos do narrador. Dizem que foi a forma encontrada pelo mesmo para contar suas memórias como melhor lhe aprouvesse, já que com tal procedimento ficou além do julgamento terreno.

 

Brás Cubas

 

A infância de Brás Cubas foi marcada por privilégios patrocinados pelos pais, fabricantes de cubas, tendo como pano de fundo uma burguesia sedenta de espaço social, abandonando valores éticos e morais. Justifica suas malvadezas infantis, a falta de juízo na adolescência e na fase adulta, pelos exemplos recebidos. O símbolo dos caprichos atendia por Prudêncio, negro e espécie de brinquedinho, que servia de montaria, como nossos cavalinhos de pau mais contemporâneos. Seu fiel escudeiro de traquinagens era Quincas Borba. Quanto ao lado afetivo, inicialmente envolveu-se com Marcela, luxuosa prostituta que adorava o dinheiro e os prazeres carnais. A importância da relação pode ser resumida na célebre frase a respeito da moça:

"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis"( Cap. 17, p.26).

Após releituras e análise aprofundada, percebe-se ironia e eufemismo como forma de facilitar o entendimento do leitor, escancarando a forte relação menos afetiva e muito mais monetária. Seu pai, diante de gastos espetaculares com presentes e orgias, decide como toda a burguesia da época. Bacharelado em Direito, Coimbra, Europa. Contrariado, vai, "mas" triste sem a despedida da pretensa amada Marcela. Diplomado e sem vocação para trabalhar,

retorna ao Brasil. Após a morte da mãe, o próprio pai arrumou uma forma de retirá-lo da apatia.

 

Partiu para aventura extra-conjugal com Virgília, parente de ministro da corte, a quem jamais levou a sério. Na verdade, nem ela, mesmo que houvesse amor entre ambos, superado por interesses

 

 

.

O projeto político do pai era uma candidatura a deputado, destruído pelo sepultamento da relação. Morre o pai, decepcionado com a vida do filho.

Profissionalmente, foi um desastre. Usufruiu dos prazeres concedidos pela riqueza familiar sem precisar do suor. "Desnudam-se as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima; e buscam-se para ambas causas naturais (raça, clima, temperamento) ou culturais (meio, educação) que eles reduzem de muito a área de liberdade" (Bosi, 1970). "Mas" teve a coragem de mostrar ao longo da obra, pensamentos aprovados pela sociedade e outros nem tanto, conflituando relações. Quincas Borba propôs trabalho oriundo de muitos estudos. A felicidade pela supressão da dor através de doutrina que chamaram de Humanitismo. Ao visitar uma antiga amiga da família, Dona Eusébia, conhece Eugênia, a quem chamava de "flor da moita", pois a mesma era fruto de um relacionamento ilícito de Dona Eusébia com o Dr. Vilaça. "Mas" por este ser o tema principal desse artigo, adiante falarei mais sobre a personagem. No último capítulo o defunto só fala de não realizações. Não se casou, o emplasto milagroso que havia criado não vingou, foi medíocre deputado e não deixou herdeiros.

 

 

 

Eugênia, a coxa

 

Segundo o autor personagem, Eugênia, mocinha morena, 16 anos, quieta, impassível.

"Idéias claras, maneiras chãs, certa graça natural, um ar de senhora e não sei se alguma outra coisa; sim, a boca, exatamente a boca da mãe"

(Cap.32, p.45). Era coxa, triste e melancólica. Vítima de seu próprio preconceito.

 

 

Análise interpretativa

 

"

 

Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear: - Não, senhor, sou coxa de nascença. Mandei-me a todos os diabos; chamei-me desastrado, grosseirão. Com efeito, a simples possibilidade de ser coxa era bastante para lhe não perguntar nada. Então lembrou-me que da primeira vez que a vi - na véspera - a moça chegara-se lentamente à cadeira da mãe, e que naquele dia, já a achei à mesa de jantar. Talvez fosse para encobrir o defeito

;

mas porque razão o confessava agora? Olhei para ela e reparei que ia triste. Tratei de apagar os vestígios de meu desazo; não me foi difícil, porque a mãe era, segundo confessara, uma velha patusca, e prontamente travou de conversa comigo. Vimos toda a chácara, árvores, flores, tanque de patos, tanque de lavar, uma infinidade de coisas, que ela me ia mostrando, e comentando, ao passo que eu, de soslaio, perscrutava os olhos de Eugênia... Palavra que o

 

 

olhar de Eugênia não era coxo, mas direito, perfeitamente são

; vinha de uns olhos pretos e tranqüilos. Creio que duas ou três vezes baixaram eles à terra, um pouco turvados; mas duas ou três somente; em geral fitavam-me com franqueza, sem temeridade, nem biocos (Cap.32, p.45, grifos meus).

 

Sabemos que ao longo da história da humanidade, muitos consideravam que pessoas com anomalias ou deficiências deveriam ser eliminadas. Machado de Assis, através de seu personagem Brás Cubas, descreveu Eugênia com ares de ironia. Além da similaridade da grafia, existe na literatura uma associação do nome próprio Eugênia com o termo eugenia, criado por Francis Galton, que significa "o estudo dos agentes sob controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente". Segundo Schwarcz (2005), o termo eugenia começou a ser utilizado no Brasil por ocasião da implantação das faculdades de medicinas. Para os médicos do século XIX, "o cruzamento racial" era o grande mal da sociedade brasileira, e por isso deveria ser sanado com a escolha dos pares "perfeitos" para a melhoria da raça. Diante destes dados, podemos compreender melhor a condição social em que Eugênia é apresentada. Michel Foucault (1997) entendia que esse discurso do movimento eugenista em prol do melhoramento racial brasileiro, deveria ser interpretado num contexto mais amplo, em que os ideais políticos nacionais de controle sobre a vida da população emergiam como preocupação central, num momento em que as políticas nacionalistas se transformaram em biopolítica, e o povo em espécie, em raça. Em especial no mundo ocidental, muitos foram os países que propuseram políticas higienizadoras e profiláticas sociais, como clara e evidente forma de impedir o avanço das raças portadoras de doenças incapacitantes, físicas ou mentais. O jurista espanhol Jiménez de Asúa (1942), polêmico por suas posturas anti-sociais, além de defensor ferrenho da eutanásia, chegou até mesmo a propor que a eugenia ocupasse três grandes grupos de problemas:

- a obtenção de uma descendência saudável (profilaxia);

- a consecução de matrimônios eugênicos (realização) e;

- a paternidade e maternidade consciente (perfeição).

A profilaxia seria obtida através de ações tais como: combate às doenças venéreas, prostituição e pela caracterização do delito de contágio venéreo. A realização ocorreria através da casais eugênicos e do reconhecimento médico pré-matrimonial. A perfeição proporia meios para que fosse possível a limitação da natalidade, os meios anticoncepcionais, a esterilização, o aborto e a eutanásia.

Não vou aqui dizer nada de novo. "Mas" o fato é que vivemos em um mundo cujas diferenças ainda são "estranhas", "incomuns". Até eu mesmo, parte de uma minoria de portadores de deficiência física, acabo de escrever palavras entre aspas para caracterizar tal população. O autor-narrador irrita-se consigo mesmo apenas por ter perguntado sobre o defeito de Eugênia. Qual o problema em perguntar a razão de seu caminhar manco? Ou teria passado ao largo o defeito da moça? Tendo notado e não questionado talvez seja até mais agressivo. Não somos iguais e o tentar que sejamos, me parece forma errada de pensar. Nem mesmo naquela época seria possível aceitar que a deformidade de Eugênia representaria danos à raça humana, caso houvesse a união com Brás Cubas. Segundo Schwarcz (2005), a eugenia permitia prever a perfeição, o que valida uma suposta melhoria da raça. Certamente foi por esta razão que Dona Eusébia, mãe de Eugênia, calou-se quando questionada por Brás Cubas sobre o andar manquitolante da filha. O autor-personagem seduziu a menina, ainda que jamais pudesse levá-la ao altar, afinal, aí sim, ele seria execrado pela sociedade por não contribuir com a tal melhoria da raça humana com "filhos saudáveis". Vejam só, cá estou utilizando o sinal gráfico das aspas para destacar um texto discriminatório...

 

O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspeitar que a natureza é às vezes um imenso escárnio. Por que bonita, se coxa? por que coxa, se bonita? Tal era a pergunta que eu vinha fazendo a mim mesmo ao voltar para casa, de noite, e não atinava com a solução do enigma.

 

 

O melhor que há, quando se não resolve um enigma, é sacudí- lo pela janela fora; foi o que eu fiz; lancei mão de uma toalha e enxotei essa outra borboleta preta, que me adejava no cérebro. Fiquei aliviado e fui dormir. Mas o sonho, que é uma fresta do espírito, deixou novamente entrar o bichinho, e ai fiquei eu a noite toda a cavar o mistério, sem explicá-lo...Manhãs bonitas, frescas, convidativas; lá embaixo a família a chamar-me, e a noiva, e o parlamento, e eu sem acudir a coisa nenhuma, enlevado ao pé da minha Vênus Manca. Enlevado é uma maneira de realçar o estilo; não havia enlevo, mas gosto, uma certa satisfação física e moral. Queria-lhe, é verdade; ao pé dessa criatura tão singela, filha espúria e coxa, feita de amor e desprezo

, ao pé dela sentia-me bem, e ela creio que ainda se

sentia melhor, ao pé de mim... Se tu soubesses que idéias me vagavam pela mente fora naquela ocasião! Tu, trêmula de comoção, com os braços nos meus ombros, a contemplar em mim o teu bem-vindo esposo, e eu com os olhos em 1814, na moita, no Vilaça, e a suspeitar que não podias mentir ao teu sangue,

 

à tua origem

...(Cap.33, p.46, grifos meus).

 

O narrador descreve a personagem Eugênia com alguma seriedade. Nota-se quando Dona Eusébia, sua mãe, a descreve como moça educada e respeitada. Por outro lado, a escolha do nome do personagem provavelmente tenha relação contraditória e debochada com o significado do nome Eugênia: bem nascida. "Mas" como, Eugênia não é a flor da moita, oriunda de um caso? Brás Cubas associa a tristeza e a timidez da menina ao defeito físico. No capítulo 32, em "

Uns olhos tão lúcidos, uma boca tão fresca, uma compostura tão senhoril; e coxa!," o narrador, através da adjetivação dos substantivos com a adjetivação "tão", combinado com a conjunção "e", faz distinção entre perfeição e imperfeição, como se a perfeição física determinasse o padrão social adequado. Mais adiante, Brás Cubas refere-se à Vênus Manca. Da mitologia grega, aprendemos que Vênus é a deusa do amor. Foi-se a pureza de Eugênia. O último capítulo, o das negações, na verdade começa aqui, pois Brás Cubas afirma que Eusébia, mãe de Eugênia, significa religiosa. Então vamos lá, traduzir os significados dos vocábulos. Nobre família é filha de religiosa a partir de romance com homem casado. Aliás, diz-se que o Realismo/Naturalismo defendia a tese que o ser humano sofria influências da raça, do social e do meio. A superação do limite ocorre no excerto "a natureza é um imenso escárnio"(Cap. 33, p.46, grifos meus). [...] Essa voz saía de mim mesmo, e tinha duas origens: a piedade, que me desarmava ante a candura da pequena, e o terror de vir a amar deveras, e desposá-la

(Cap. 35, p.47, grifos meus).

No que se refere à caracterização do personagem Eugênia, nota-se no texto um tormento do narrador-personagem pelo defeito físico da moça. Além disso, é flagrante o relacionamento do termo "morena" com a mistura de raças. Ao final do capítulo dedicado à Eugênia, Brás Cubas diz que a mesma "continua coxa e triste", comprovando serem estas as mais marcantes características na opinião do narrador. Segundo Schwarz (2000, p.103): "na verdade, Eugênia é a única figura estimável do livro: tem compreensão nítida das relações sociais, gosto de viver e firmeza moral". Em único momento ao longo de toda a obra, Brás Cubas refere-se ao personagem Eugênia salientando a beleza da moça.

 

A professora e psicóloga paulista Ligia Assumpção Amaral analisa possíveis formas de reação a situações de enfrentamento das diferenças. Para a presente discussão, examinemos apenas a compensação que pode ser traduzida por frases do tipo: É deficiente físico mas é tão

 

inteligente; é autista mas memoriza melhor que uma pessoa normal. A conjunção adversativa "mas" serve para atenuar a primeira afirmação, compensando-a pela segunda. De outro modo, poderíamos dizer a mesma frase, colocando um e no lugar do mas: Ele é deficiente físico e muito inteligente.

 

 

 

2

 

2 Texto extraído do artigo Sobre Crocodilos e Avestruzes, escrito pela psicóloga Ligia Assumpção Amaral.

 

"Não pôde Eugênia encobrir a satisfação que sentia com esta minha palavra, mas emendou-se logo, e ficou como dantes, erecta, fria e muda. Em verdade, parecia ainda mais mulher do que era; seria uma criança nos seus folgares de moça; mas assim quieta, impassível, tinha a compostura da mulher casada. Talvez essa circunstância lhe diminuía um pouco da graça virginal. Depressa nos familiarizamos; a mãe fazia-lhe grandes elogios, eu escutava-os de boa sombra, e ela sorria, com os olhos fúlgidos, como se lá dentro do cérebro lhe estivesse a voar uma borboletinha de asas de ouro e olhos de diamante... "(Cap. 30, p.43).

 

Detalhe: o momento acima descrito deu-se antes que o narrador-personagem soubesse do defeito físico de Eugênia

Acabemos de uma vez com esta flor da moita (Cap.34, P.47),

encerra o fascínio de Brás Cubas por Eugênia. "Mas" a moça, em que pese os preconceitos estabelecidos pela sociedade, sobrevive sem problemas, aliás, como nós deficientes ainda hoje sobrevivemos. E de maneira nobre, honrando o significado de seu nome.

 

 

Considerações Finais

 

O preconceito nada mais é que uma atitude favorável ou desfavorável, positiva ou negativa, anterior a qualquer conhecimento. O estereótipo é a concretização de um julgamento qualitativo, baseado nesse preconceito – podendo ser igualmente anterior à experiência pessoal. Num equacionamento simplificado, numa "regra de três", diríamos que as atitudes estão para os comportamentos assim como os preconceitos estão para os estereótipos. Exemplificando, a propósito da deficiência: o preconceito pode ser aversão ao diferente, ao mutilado, ao deficiente... Os estereótipos seriam: o deficiente é vítima, é sofredor, é prisioneiro... Generalização da condição de deficiência para a totalidade da pessoa: fala-se aos berros com o cego, trata-se o paraplégico como cego, a criança com atraso no desenvolvimento mental como deficiente físico... Utilização desmesurada da expectativa de compensação (expressa pela idéia de super-competência); impossibilidade drástica de lidar com esse mesmo mecanismo de compensação (expressa pela idéia de imprestabilidade). "Condenação" ao isolamento, à solidão ou à busca de pares para uma coexistência possível.

Expectativa de desempenho de papéis rígidos: do ridículo ao exótico, passando pelo burlesco...3

3 Texto extraído do artigo Sociedade X Deficiência, escrito pela psicóloga Ligia Assumpção Amaral, Revista Integração MEC/SEF Abr./ Mai./ Jun./ 1992 - ano 4 nº9.

Machado de Assis era menino pobre, mulato, oriundo de escravos, filho de um pintor de paredes e de uma lavadeira. Estudioso e com péssima caligrafia. De frágil saúde, era epilético e gago. Ôpa, deficiente? Não, não caro leitor. Seria um tranco ilegal no personagem-defunto, que aliás, nem aqui está para se defender, assim como o autor da obra. De forma politicamente correta, muito em moda, eu digo que o festejado autor sofria de disfemia, algo como uma desordem de fluência da fala, que possui como consequências a repetição de sílabas das palavras, em especial a primeira, prolongamento dos sons e algumas vezes, bloqueio, obrigando o reinício da fala por parte do gago, quero dizer, disfêmico, tartamudo. Óbvio que não estou neste artigo contestando o talento internacionalmente reconhecido de Machado de Assis. "Mas" pesquisando, lendo, pesquisando, lendo, acabei por descobrir em alguns artefatos culturais do autor, senão racismo e preconceitos puros, pelo menos um tangenciamento em tais questões. A coxa Eugênia, o negro Prudêncio, por Brás Cubas, João Fulo e Maria Gorda, de Don Casmurro, narrados por Bentinho, são exemplos de personagens do autor. Críticos da época queixavam-se de Machado de Assis como um negro "embranquecido" e preconceituoso. A galhofa e a fala grosseira são comuns em sua obra, quando fala de personagens secundários, escravos. "Mas" como? Ele não foi defensor da causa abolicionista? Foi, "mas" (olha o "mas" aí novamente) criticou a forma com que foi feita. Machado de Assis adquiriu na sociedade da época, invejável posição social, tornando-se o maior e mais influente escritor brasileiro. Sem críticas nem defesas, minha pretensão é apenas abrir uma provocação para que possamos discutir questões relativas aos preconceitos. O narrador-personagem não seria espelho do escritor? Machado de Assis foi brilhante, porém, todavia, entretanto, contudo, preconceituoso.

AMARAL, Ligia Assumpção, Sobre Crocodilos e Avestruzes, falando de diferenças físicas, preconceitos e superações.

AMARAL, Ligia Assumpção, Sociedade X Deficiência, Revista Integração MEC/SEF Abr./ Mai./ Jun./ 1992 - ano 4 nº9.

BOSI, Alfredo, 1970. História Concisa da literatura Brasileira, 45º edição, São Paulo, Cultrix.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade- vol. I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997.

JIMÉNES DE ASÚA L. Libertad para amar y derecho a morir. Buenos Aires: Losada, 1942:25-45, Letras, 2005.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das

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