Considerações acerca do estudo da moral



        Considerações Acerca do  Estudo da Moral

    Aristides Ribas de Andrade Filho[1]

 

Resumo: O artigo desenvolve considerações acerca dos aspectos estruturais e superestruturais da Moral, sob o ponto de vista dialético, abordando seus aspectos historicamente constitutivos. Procurar-se-á demonstrar a historicidade do tema, suas dimensões pública e privada.

 Palavras-chave: Moral, História, Filosofia, Antropologia Cultural.

             Conta a Bíblia que no princípio Deus criou o céu e a terra[2]. Ela explica  ainda que o projeto divino previa uma criação da qual o homem usufruísse tudo sob a única condição de que se subordinasse a Ele, dentro de uma proposta de vida e fraternidade.[3] Como justificar então o efeito civilizatório perverso ao longo da história da humanidade?

            Sob o ponto de vista metafísico, “a auto-suficiência é a mãe de todos os males, que são apenas conseqüência dela. Deus é o Senhor absoluto e seu projeto de vida é liberdade para todos, no clima de fraternidade e partilha[4].

            Todavia, na óptica histórica, as maneiras como os homens produziram e reproduziram suas relações materiais de existência ao longo do tempo, as relações sociais que estabeleceram independentes de suas vontades em função disso, com suas conseqüências sociais – ideológicas, culturais, políticas etc. – que resultaram na sociedade de classes explicam o rompimento com o projeto divino e a necessidade de concertos, (atenção revisão: é concerto com “c” mesmo. Leia isto e apague do texto) a exemplo dos “10 Mandamentos”.  A esses concertos dá-se o nome de Moral.

           Daí suas características normativas, postulantes. Em princípio, a moral vem para resolver problemas concretos que impedem a socialização básica, os quais, quando sem solução, tornam o homem “lobo do próprio homem”, como quis Hobbes, no Leviatham:

            (...) "Em tal situação não há lugar para a indústria, pois seu fruto é incerto; conseqüentemente, não há cultivo da terra, nem navegação, nem uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; nem construções confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de grande força; não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo do tempo, nem artes, nem letras; não há a sociedade; e o que é pior do tudo, um constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta”[5]

             De fato, esse grande acordo salvaguardava a integridade física, a propriedade, o respeito aos contratos, à família, mas, sobretudo, o respeito mutuo e a confiança,

            Pairando sobre esse universo, a figura do Estado Absoluto, legislando e normatizando o mais significativo, deixando o restante ao sabor dos costumes, ou seja, do Direito Consuetudinário.

            A importância do tempo na consolidação superestrutural homologou os concertos sob o ponto de vista ideológico, político e cultural, submetendo-o a uma dinâmica lenta através da História, tornando-o aparentemente natural, criando as éticas subseqüentes[6].

            As diferentes correntes filosóficas bem como os estudiosos da Antropologia Cultural, ao longo do tempo, perceberam que as coisas não eram, todavia, tão simples.

           Com efeito, desde a sua origem, o homem, para se tornar homem – porque ele não nasce homem, mas se faz homem – produziu e reproduziu suas condições materiais de existência humanizando a Natureza, percebendo que esse trabalho, se realizado em grupo, se tornava menos penoso. A partir desse instante, no processo de humanização da Natureza e das circunstâncias, travou relações sociais definidas. Superou sua Natureza “natural” e adquiriu Natureza “social”. A necessidade de regulamentação para a vida coletiva, dos indivíduos entre si, e desses com a comunidade criou certa consciência, uma noção de pertencimento e a necessidade de ajustar comportamentos a essa vida coletiva. Provocou o aparecimento do bom, do mau, do bem e do mal, do útil, e do inútil.

            Estabeleceu-se assim uma tábua de deveres e obrigações. Para sobreviver, todos eram obrigados a trabalhar e lutar diante das dificuldades, dos inimigos da tribo. Desenvolveram-se Assim qualidades como bravura, agressividade em combate, solidariedade, disciplina, ajuda mútua, amor aos filhos da mesma tribo. Ao contrário, a covardia passava a significar um vício horrível porque atentava contra os interesses vitais da comunidade.

            Evidentemente, de acordo com as relações sociais travadas no processo de produção e reprodução e suas condições materiais de vida, o homem criou a valoração do belo e do feio, do mal e do bem, do mau e do bom.  Tomemos, por exemplo, o trabalho. Valor moral inconcebível na Idade Média, no universo palaciano, tornou-se uma aquisição da cultura moderna, face às características do Capitalismo, para o qual a categoria trabalho passa a possuir valor quase ontológico.

            Desde esse “estado de Natureza”, o homem construiu modelos de concepções, variando entre  o desejado e o indesejado, o que se deve preservar e o que se deve desprezar, baseado em suas circunstâncias objetivas, ou seja, seu universo de referências, na forma como mantém suas relações sociais permanentes para produzir e reproduzir suas condições materiais de vida. É natural, portanto, a partir da instituição da sociedade de classes, o aparecimento de circunstâncias diferentes, portanto, de ideologias diferentes, porque constituídas de valores diferentes a se preservar, no mínimo uma ideologia do dominante e outra do dominado.

            Ora, a cultura é um fenômeno ideológico e superestrutural. Assim, a estética. Índios botocudos, no Brasil Central, aumentam os lábios com discos de madeira e consideram estético. Negras africanas esticam o pescoço com anéis, chinesas atrofiavam os pés, mulheres engordam em determinadas ilhas da Oceania, tudo em nome da beleza.

            No chamado mundo moderno, todos sabemos, esses valores estéticos são divulgados pela mídia, portanto, pela cultura forte. Negar a dimensão exclusivamente cultural da estética é no mínimo desconhecer que o homem trabalha com ferramentas diferenciadas face às realidades concretas diferenciadas.

            Apesar desse alcance, a determinação do moral e do imoral ou do amoral permanece relativa no tempo e no espaço,  demonstrando que tudo o que é sólido se desmancha no ar, ou seja, que toda verdade contém em si o germe da própria negação.

           Tomemos, por exemplo, o assassinato de César. Quando Brutus o matou agiu ele moralmente? Alguns antigos diziam que sim, na medida em que ele agiu em função de valores supremos de liberdade então comuns à República romana. Outros, ao contrário, entenderam que não, acusando-o de ingratidão com o pai adotivo. Passados mais de 2 000 anos, como podemos interpretar esse dilema?

          Depende. Se considerarmos a moralidade pública de Roma o faremos com mais argumentos. Entretanto, sob a óptica da vida privada nada poderemos afirmar posto pouco conhecermos da intimidade de ambos. Criador e criatura, tanto César poderia haver lhe ensinado que a moralidade pública se impõe sobre a cumplicidade como que confiança mútua é prioritária.  Matéria controversa cabe-nos suspender o juízo.

         Além do mais, lembram os behavioristas. Como George Mead, que relações intimas também se expõe a terceiros havendo entre os pronomes pessoais uma espécie de fratura entre o uso do eu e tu e o uso ele, já que esta ultima palavra aponta alguém que está por uns tempos fora do diálogo, razão pela qual as crianças apreender a generalizar o outro[7]. Assim, o uso normal da linguagem implica outros em um espaço público, prestando-se a uma comunidade de falantes da mesma língua.

        O fato é que sempre existem várias morais, vários sistemas éticos, as éticas profissionais, grupais etc. Cada uma coloca seus problemas particulares podendo uma ação confrontar-se com normas diferentes. Nesse momento há que se perceber como a ética da intimidade com as outras éticas.

        Examinemos o caso da eutanásia. O código aceito pelo Conselho Nacional de Medicina a condena. No entanto, sabemos que entre médico e paciente pode existir mutua confiança já em nível de intimidade. Imaginemos que o paciente queira livrar-se de um quadro de dor insuportável. Claro que o médico será passível de punição por parte de seus colegas organizados, por parte do Estado. Não obstante, pode-se perguntar: existe critério moral intimo para julgar a ação?

        Imaginemos o inverso. Um pentecostal que, esvaindo-se em sangue, entreem um Pronto Socorro.Recusando-se o ferido à transfusão, o que deve o médico fazer? Faze-lo assinar um termo de responsabilidade? Essa medida, com efeito, o livrará das implicações legais, mas e das morais? Cumpriu o médico com o juramento de Hipocrates? O doente estaria em condições de responsabilizar-se pela própria morte? E se ele chegasse inconsciente ou fosse seu amigo? Particularmente, acredito que o médico deva fazer a transfusão à força.

        Na verdade, o que se tenta com esses exemplos é demonstrar a importância da ética da intimidade, a qual não é a única nem fundamento para as demais, contudo um ferramental importante para entendermos a dinâmica da moral pública e particular na sociedade. O razoável é que nem voltemos ao tempo em que o publico oprimia a vida privada, nem deixarmos que a vida privada tiranize o publico.

        Com efeito, existem muitas formas de moralidade, cada grupo social ou profissional tem a sua identidade assegurada por normas acordadas entre si cuja infração provoca, em síntese, riso, censura, ou até mesmo exclusão do grupo. Essas normas buscam basicamente o respeito mutuo possível.

        Resta saber se nos tempos de hoje, palco de um individualismo possessivo, onde a ética do lucro exclui a da fraternidade[8], onde as regras de Cristo e do Capital se repelem,  ainda são válidos os princípios de mutualismo respeitador. Desejado por uma moral, talvez em crise, onde a res privata é sempre a minha e a res publica a ela se submete, o que provocaria, nos homens de bem, a dor do desencanto e a incerteza do futuro.

 REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE Fº, Aristides Ribas (1994)

Dialogando com Hobbes”, DCP, FAFICH, Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG – BH, MG, p.6

 SHKLAR, John (1996)

Men and Citizens: a Study  of Rousseau’s Social Theory, Cambridge: Camabridge University Press , pp. 39-42

 

[1] Aristides Ribas de Andrade Filho, Filósofo e Cientista Político, é professor de Ética e Filosofia do Direito na Faculdade de Direito Varginha - FADIVA

[2] - Gen. 1:1-31

[3] - Gen. 2: 8-17

[4] - Gen 3:1-24

[5] - Leviatham,  cap. XIII, pp. 75-76

 [6] - O estudo da ética  não é objeto deste artigo.

[7] - Apud SHKLAR

[8] - Com efeito, a ética da fraternidade exige o cuidado com o outro e a incorporação deste em si.


Autor: Aristides Ribas De Andrade Filho


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