Bruna, uma paixão



BRUNA, UMA PAIXÃO

(transcrição do desabafo angustiado de minha esposa)

Rio de Janeiro, setembro de 2005.

Não, decididamente, criar cães, nunca mais. Talvez um centenário jabuti, arrastando-se silencioso pela casa. Ou peixes ornamentais, num aquário de médio porte. Gatos não me são simpáticos. Pássaros, prefiro vê-los livres pelo espaço, gaiolas me horrorizam. E cães, decididamente, nunca mais, repito-o.

Talvez pela lembrança de meu vira-lata Lampião, favorito dentre os que habitavam a fazenda de meu pai no Pantanal, nos anos 50. Corajoso, avançou sobre um tamanduá, que, impiedoso, ergueu-se sobre as patas traseiras, rasgou-lhe o dorso com suas unhas de navalha, num abraço fatal – mas também morreu imediatamente, abatido pelos tiros do revólver de meu pai. Ah, até hoje choro por Lampião.

Ou talvez pelos relatos tristonhos de meu marido, sobre os cães que teve – o primeiro Tupy, lulu branco, atropelado à mesma época de meu Lampião; a Fox-paulistinha Dolly, malhada de marrom e branco, valente, estourava bombas de São João na boca, mas teve de ser doada, pelo barulho que fazia no apartamento; o segundo Tupy, lulu inteiramente negro, lindo, também doado por ter crescido demais, passando a incomodar a vizinhança; e a Flika, nascida no quartel onde ele servia, criada entre os Soldados, até que o Comandante implicou com ela e um Sargento a levou, rebatizando-a de Vandeca...

Bem, esses foram nossos cães quando ambos éramos solteiros. Depois de casados, houve o Bobi, vira-latas criado em nossa casa de praia – ela foi vendida, Bobi foi junto. E o Caribe – ah, um fila brasileiro com pedigree! Não era nosso, mas daquele mesmo quartel, quando, anos depois, meu marido o comandou. Pobre Caribe, viveu poucos meses, uma pavovirose o levou.

Não, decididamente, criar cães, nunca mais.

Mas... quem bate à porta? Surpresa! Nossa filha e o marido, trazendo um filhote fêmea de pastor alemão. Estão chegando do canil e nos apresentam:

- “Olha, Bruna! Vovô e vovó!”

Bem, nossa filha é sagitariana, e, como li num livro de Linda Goodman, afamada astróloga norte-americana, ela tem a mesma paixão por animais de seu colega de signo Frank Sinatra...

Sem nos pedir opinião (afinal, ela já casou, que fazer?), comprou Bruna. Vejam o nome que ela escolheu – Bruna! Pode, isso?

E meu marido e eu nos apaixonamos por aquela coisinha preta e marrom, de orelhas empinadas, no instante em que saiu correndo por nosso apartamento, urinou no tapete, mordeu e arranhou nossos braços e mãos, latiu, lambeu-nos, fez cocô no hall social... e nós morremos de rir...

Ah, Bruna... Bruna, uma paixão...Descubro que nasceu em 25 de agosto de 2005. É virginiana, como meu marido! Tem um mês de vida. E depois de muito saracotear, vai para sua nova casa, o apartamento de nossa filha em Laranjeiras. Até quando?

Teresópolis, 2006

Duraram pouco as aventuras de Bruna em Laranjeiras. Cresceu rápido, precisava de espaço, tinha de sair dali. E lá se foi para a casa que minha filha e o marido tinham em Teresópolis. Preocupamo-nos. Eles só iam lá de vez em quando, ela ficaria sozinha. É verdade que o caseiro, que residia relativamente perto, passava por ali duas vezes ao dia, e, dentre outros afazeres, alimentava-a, trocava a água, dava-lhe banho... Mas à noite, Bruna ficava só...

A casa não era de condomínio, e sim na beira da estrada que leva a Friburgo. Ficava na encosta de um pequeno morro. Além do portão havia uma ladeira, de inclinação bem acentuada, em curva de ângulo fechado, que terminava num pátio retangular, bem largo, cimentado, que servia também de garagem. À direita do pátio, a casa, voltada para a estrada e debruçando-se sobre um gramado quase vertical que descia até a entrada; à esquerda, um grande alpendre, com a churrasqueira, bancada, pia, mesas e uma escada, de acesso limitado por pequeno portão de madeira, que, beirando a encosta do morro, levava a novo patamar, onde haviam sido construídas a piscina e a sauna. Arquitetura admirável, sem dúvida.

O terreno era bastante arborizado, e Bruna logo “delimitou seu território” – um trecho era o seu “banheiro”, outro era a “despensa” onde enterrava os ossos que ganhava... E assim por diante.

Atlética, era capaz de subir e descer rapidamente o tal “gramado quase vertical”. Não sei como se capacitara a tal façanha. Corajosa, investia contra cães, gatos e roedores que volta e meia “invadiam seus domínios” pela ladeira de acesso ou o muro. Enfim, era a soberana da casa...

Mas Bruna tinha um receio, até hoje não explicado. Era a piscina. Por mais que a chamássemos, quando lá estávamos, não havia quem a fizesse subir a escada. Vi-a correr até lá apenas uma vez: foi quando esteve conosco, na casa, a filha de uma empregada, menina bem franzina, de seus sete para oito anos, que se apaixonou por Bruna e vice-versa; ah, como se entenderam bem! Acostumada a nadar, a guria pulou na água. Bruna, por seu DNA de cão de guarda, “vigiava-a” de perto, vendo nela, talvez, um “filhote de gente”. Finalmente subiu até lá e ficou na borda, correndo de um lado para o outro, como que protegendo a garota. Pensamos que ela houvesse perdido o medo, mas não. Nunca mais se aventurou por ali, exceto... daqui a pouco lhes conto.  

Teresópolis, 2007 - 2010

Meu marido e eu passamos a viver na expectativa dos convites para fins de semana em Teresópolis. Isto é, convites para ver Bruna. Quando ocorriam, eram como música em nossos ouvidos. E lá íamos, os “avós” postiços, direto ao açougue, para comprar carne fresca e ossos para ela; e ao supermercado, onde adquiríamos os “tira-gostos” – os tais “bifinhos” industrializados que ela tanto apreciava. Para não falar nos brinquedos, como o frango e o porquinho de borracha – o primeiro foi destroçado; o segundo, acarinhado como um filhote...

E assim foram se sucedendo as “gracinhas” de Bruna conosco, que, comprovando o princípio dos reflexos condicionados de Pavlov, repetiam-se idêntica e indefinidamente...

Ao anunciarmos nossa chegada pelo interfone, alguém da casa a prendia na pequena área gradeada atrás da cozinha – seu canil, com a casinha, potes de comida e água, panos e outros apetrechos – para que não fosse atropelada pelo automóvel que subia. Depois de estacionarmos, ela era solta e corria diretamente ao porta-malas, pressentindo, pelo apuradíssimo olfato, que ali estavam suas guloseimas. E pulava à nossa volta, corria, latia, deitava de barriga para cima, lambia-nos, mordia-nos de leve... Que felicidade...

Um ritual era “exigido” por ela – seguia-me até a cozinha, deitava-se no chão a meu lado e dali não arredava pé enquanto eu não fizesse seu “bifinho” de chã-de-dentro (às vezes, meu marido, apaixonado por ela, comprava contrafilé...), quase sem sal, num pouquinho de azeite... Cortava-o em pedaços pequenos, que colocava num prato e entregava a meu marido. Ele se sentava no alpendre e ia dando os pedaços na boca de Bruna... Às vezes comia um, também...

Bruna adorava sorvete de creme e queijo de minas. Inesquecível o dia em que lambeu todo o sorvete que havíamos colocado numa tigela de plástico, e, ao terminar, correu em direção a meu marido, com a pequena vasilha na boca, a pedir mais...

Mas o “pai” dela tinha lá suas cismas, não queria que lhe déssemos certos petiscos, por medo de fazerem mal. Naturalmente, respeitamos as ordens do dono da casa. Durante algum tempo, levei para ela uma receita própria para cães, com arroz, cenoura, carne moída e outros ingredientes, mas Bruna logo enjoou daquilo. Gostava mesmo era de churrasco...

Descobrimos uma pet-shop perto de nossa casa que vendia sorvete especial para cachorros, com sabores curiosíssimos, como... bacon!  Levamos alguns, ela adorou...

Uma das coisas que mais nos chocava era o olhar de Bruna. Dizíamos que era “humano”. Além disso, era muito inteligente e até... como direi... “sensitiva”? Pois é... De certa feita, meu marido ia ser submetido a um exame de saúde sério, invasivo, e estava preocupado com isso. Num sábado, antevéspera do exame, estivemos em Teresópolis, para um churrasco. Bruna, ao que tudo indica, pressentiu que ele estava tristonho, macambúzio, calado... e passou o dia quieta, enroscada nos pés dele, como a consolá-lo, o que impressionou muito a todos nós. Os dois eram muito ligados!

A casa tinha uma pequena horta, onde colhíamos principalmente couves. Bastava eu dizer – “Bruna, vem à horta com a vovó!” – e lá ia ela, direto ao local indicado, acompanhando-me...

Em algumas ocasiões, minha filha e o marido convidavam amigos, além de nós, para churrascos de fim-de-semana. Quando eram todos adultos, Bruna ficava solta, participando ativamente de tudo, sem avançar em ninguém, muito comportada. Quando havia crianças, por precaução, nosso genro costumava mantê-la na coleira ou no canil – e inevitavelmente meu marido ia para lá ficar com ela... Isso porque, certa vez em que estava solta, ela veio para perto da filha de um casal amigo, que deveria ter seus dois ou três anos de idade, e, carinhosamente, lambeu-a no rosto - gesto comum de cães de guarda com crianças. Mas a menina se assustou e começou a chorar, o que criou uma situação constrangedora para todos... e lá foi Bruna para o canil...

Mas não há bem que sempre dure. Por uma série de motivos, quase todos de ordem profissional, as idas de minha filha e do marido a Teresópolis começaram a escassear, e, conseqüentemente... as nossas também!

Bruna passou a sofrer mais ainda de solidão, amenizada apenas pelas idas do caseiro, acompanhado dos filhos pequenos, grandes amigos dela. Soubemos depois que ela também “fizera amizade” com um cachorro vizinho, mas o muro impedia que “namorassem”...

O tempo foi passando, as saudades de Bruna aumentando... e o único paliativo era a colocação de fotos dela nas telas dos computadores, no Facebook, no Orkut e em quantos sites mais meu marido e eu freqüentássemos. Fora as conversas sobre ela, que sempre acabavam em choramingos ou num silêncio acabrunhado.

Teresópolis, 2011    

Foi só em agosto, depois de longa e desanimadora espera, que recebemos o convite para rever Bruna. Num domingo, dia 7, dezoito dias antes que ela completasse seis anos de vida – correspondentes a 42 humanos, dizem os cinófilos.

Um forte resfriado me acometia, mas não podia perder aquela oportunidade. Quando ela voltaria a se repetir? Lembrava-me dos dizeres da raposa ao Pequeno Príncipe, sobre a alegria que vai aumentando à medida que se aproxima a hora de rever o ser amado...

Com muito júbilo, repetimos o velho ritual – acordar cedo, correr ao açougue para comprar carne, e ao supermercado para os “tira-gostos”. Embalar tudo, arrumar o carro... Pé na estrada, a velha parada na Casa dos Queijos para degustar pastéis de carne, outra no Hortifruti do alto da serra, porque os donos da casa, como sempre, telefonaram pedindo que levássemos algo que haviam esquecido... e enfim... Bruna, depois de umas três horas de viagem! Ah, como valeu a espera! Ela estava linda, crescida, forte, o pelo lustroso...

Foi maravilhoso, o churrasco daquele domingo, 7 de agosto de 2011, só nós quatro e Bruna.

Não poderíamos saber que aquela seria a última vez em que a veríamos.

Rio de janeiro, sábado, 15 de outubro de 2011

Almoçávamos numa churrascaria. Toca o celular de meu marido, era nossa filha. Queria saber onde estávamos, o que fazíamos. Ele lhe disse, passou-me o telefone, conversamos rapidamente, ela ficou de ligar mais tarde para nossa casa.

Cerca das dezoito horas ela ligou. Atendi. E o que ouvi – que ela não quis nos dizer no almoço - me fez entrar em choro convulsivo. Desliguei o telefone bruscamente e gritei por meu marido, aos prantos. Ele assistia à TV em outro cômodo, correu assustado até onde eu estava, só consegui balbuciar:

- “Bruna morreu!”

Vi a perplexidade tomar conta de meu marido. Não sei se ele disse algo, ou se calou, com o choque. Pedi-lhe que ligasse para nossa filha, o que fez imediatamente. Também não sei o que os dois conversaram. Ele a ouviu atentamente, desligou o aparelho... e caímos nos braços um do outro, chorando sem parar, por horas seguidas.

Não sabemos o que houve. O caseiro, ao chegar, na manhã daquele sábado, não viu Bruna. Assustou-se, chamou-a, procurou-a, nada... Até que se lembrou de subir à área da piscina, embora o portão estivesse fechado e Bruna tivesse pavor daquele local.

E foi exatamente na tão temida piscina que ele encontrou o corpo dela, flutuando. Pêlos por toda a água, sangue no nariz e na boca. No chão, algo esbranquiçado, como uma espuma que ela houvesse regurgitado.

Não havia mais o que fazer por ela. Restou-lhe avisar a meu genro e sepultá-la condignamente, em local próximo, onde outros cães já haviam sido enterrados.

Avaliamos que ela tenha sido envenenada – carne com chumbinho, ou um dos sapos peçonhentos que circulavam por ali, ou alguma planta... jamais saberemos. Mas ela deve ter sentido uma queimação estomacal profunda, o que a levou a subir, desesperada, a encosta do morro que margeava a área da piscina – e ali se atirou, imaginando talvez que a água mitigaria o fogo que a consumia por dentro. Que sofrimento!

Meu marido revoltou-se:

“Por que Deus permitiu isso? Um animal puro, inocente, só tinha amor para dar! Que morte sofrida! Com tantos malfeitores no mundo! Logo a Bruna foi morrer assim! Por quê?”

Dizem que o tempo cura todas as feridas. Tenho dúvidas. Faz quase três meses que Bruna subiu ao céu. Meu marido e eu ainda somos tomados pelo choro, ao nos lembrarmos dela, quando vemos cães pastores, ao vivo ou na televisão. Será impossível esquecê-la.

Só duas idéias nos acalmam um pouco. Primeiro, a de que seres que vivem pouco e sofrem muito são, em geral, anjos enviados por Deus, com missões específicas, de transmitir mensagens profundas aos que os cercam; estamos seguros de que Bruna, que morreu virgem, era um desses anjos. Segundo, a de que, quando deixarmos este mundo, o primeiro “anjo” a nos receber e conduzir ao Paraíso – se merecermos ir para lá – será Bruna, que só pode estar junto de Deus.

Até esse dia, querida Bruna! A você, nossa eterna gratidão por toda a felicidade que nos proporcionou nos seis anos em que passou pela Terra.

Com amor,

Seus “avós” postiços e apaixonados.  Teresópolis, 2009, Bruna e eu


Autor: Gil Ferreira


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