Política subliminar



Resumo: Ivete Sangalo no réveillon de Fortaleza. Nem cultura, nem filantropia. Freud explica.

Política subliminar

A Prefeitura de Fortaleza contratou o show de Ivete Sangalo, que se apresentará logo mais no réveillon da Praia de Iracema.  

A minha curiosidade acerta de incidir sobre como serão contabilizados os custos da noitada.

Imaginando-me  contador da Prefeitura, e orientado pelo critério da natureza do bem adquirido, rascunhei este lançamento:

Fortaleza (CE), 31.12.2011

INCENTIVO A CULTURA

a CAIXA

PAGO a Dona Ivete Sangalo pelo fornecimento de energias cósmicas - vulgarmente chamadas de cultura – à população de Fortaleza, no réveillon da Praia de Iracema.

Aí eu me lembrei do que diz Hannah Arendt a respeito de cultura: “um objeto é cultural na medida em que sobrevive a qualquer uso que possa ter orientado sua criação”.  Lembrei e mudei de ideia. Em tempo, adverti que o show de Ivete Sangalo jamais poderia ser classificado como evento cultural, pela simples razão de que mais cedo ou mais tarde sucumbirá ao desgaste e desaparecerá do mundo dos fenômenos.

A segunda proposta de lançamento levou em conta não mais a natureza do show, mas a sua função na estrutura das aplicações dos recursos municipais. Vi que o show foi comprado para satisfazer necessidades  que tanto podiam ser sociais quanto políticas.

Como necessidade social o show foi comprado para minimizar a ansiedade das multidões, para distraí-las, para evitar a qualquer custo que se conscientizem da inexorabilidade do tempo, fiquem tristes, e  parem de consumir.   

Daí a concepção deste segundo lançamento:

Fortaleza (CE), 31 de dezembro de 2011.

ENCARGOS FILANTRÓPICOS

a CAIXA

PAGO  a Dona Ivete Sangalo por manter  em níveis convenientes ao consumo a excitação popular, e evitar a consciência da vacuidade existencial.

Durou pouco a validade teórica deste segundo lançamento.   Bastou refletir um pouquinho mais para perceber que as multidões não estão nem aí para esse luxo de vacuidade existencial. Item, emergiu a compreensão de que a Prefeitura não precisa gastar um tostão do contribuinte para mantê-lo excitado e sequioso. A própria sociedade de consumo  se encarrega disso, e o faz com perfeição.

Resta agora propor o lançamento que dará feições definitivas aos gastos da Prefeitura com o show de Ivete Sangalo na noite do réveillon

À vista do até aqui exposto, o lançamento terá forçosamente de fundamentar-se na ideia de que o show foi comprado para satisfazer uma necessidade política.

Uma necessidade política subliminar, é claro.

Mais que uma cantora, mais que uma mulher bonita e charmosa a Prefeitura sabe que Ivete Sangalo é uma “celebridade”. Sabe também a Prefeitura  que “celebridade”  significa aclamação popular, íntimo relacionamento com as massas, prestígio, fascínio. Ora, nada mais conveniente à manutenção do poder  político que associar-se a uma “celebridade”. Digamos, portanto, aproveitando a lição psicanalítica, que a compra do show de Ivete Sangalo seja o efeito distorcido de impulsos inconscientes da Prefeitura ou, que ao comprar o show a Prefeitura na verdade apropriou-se da imagem de Ivete, para dela extrair dividendos políticos. A isso, se não me engano, Freud chamaria  “transferência.”

Segue-se daí que o lançamento adequado à verdadeira função das verbas pagas a Ivete Sangalo não poderá ser outro senão este:

Fortaleza(CE), 31 de dezembro de 2011.

GASTOS DE CAMPANHA – Eleições 2012

a CAIXA

PAGO a Ivete Sangalo por sua participação no comício do réveillon de 2012, na Praia de Iracema.                              

Agora, se me dão licença, já é quase meia-noite, vou ligar a TV para assistir ao show de Ivete Sangalo na Praia de Iracema. A curiosidade continua. Quero experimentar o contraste do meu sarcasmo com a ingenuidade do povo e a inocência de Ivete, sempre linda e maravilhosa.   

 


Autor: Osorio De Vasconcellos


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