Teoria das competências de phillip perrenoud e prática docente no ensino superior em uma instituição pública: elementos para estudo de caso.



Teoria das Competências de Phillip Perrenoud e Prática Docente no Ensino Superior em uma Instituição Pública: Elementos para estudo de caso.

Maria Tereza Gomes do Nascimento[1]

 

INTRODUÇÃO

Esse trabalho foi construído a partir das discussões e debates ocorridos durante os seminários temáticos apresentados para a disciplina de Didática do Ensino Superior, ministrada no Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco. Sua natureza é justificada, entre outras coisas, pela necessidade de contribuir para outros estudos que venham a se interessar por temas sobre a prática docente e atender parte dos requisitos da própria disciplina.

Nesse sentido, o texto ora apresentado traz análises qualitativas e preliminares de observações das práticas docentes inseridas em uma instituição pública de ensino superior.

Em princípio, o objetivo foi observar em que medida alguns elementos da Teoria das Competências de Phillip Perrenoud emergiam nas práticas de sala de aula desses professores, uma vez que os eixos norteadores do ensino no campo investigado não estão fundamentados sob a égide da referida teoria.

Convém esclarecer que não se trata de analisar aproximações ou distanciamentos entre o que faz o professor no exercício da docência e a Teoria das Competências. Isso redundaria em uma análise simplória e reducionista daquilo que já é reconhecido como um objeto complexo para investigações: a prática docente.

Portanto, reconhecendo a complexidade do referido objeto, os olhares sobre as práticas dos professores aqui apresentados foram orientados, sobretudo pela busca de tentar compreender quais os elementos da teoria das competências que ora permeiam, ora se alternam nas práticas daqueles profissionais. Neste sentido, e para fins de delimitação, buscamos analisar até que ponto emergem da prática docente do Ensino Superior os seguintes elementos que ora norteiam o ensino por competência: 1. considerar os conhecimentos como recursos a serem mobilizados; 2. trabalhar regularmente por problemas; 3. criar ou utilizar outros meios de ensino; 4 praticar uma avaliação formadora; 5 dirigir-se para uma menor compartimentação disciplina. Ratifica-se, dessa forma, o que dizem Pimenta e Anastasiou (2002: p. 48) quando discutem a problemática da construção da identidade dos docentes do ensino superior no que se refere à profissão e ao exercício profissional:

“O ensino, fenômeno complexo, enquanto prática social realizada por seres humanos com seres humanos, é modificado pela ação e relação desses sujeitos – professores e alunos – historicamente situados, que são, por sua vez, modificados nesse processo.”

Dessa forma, nesse trabalho concorda-se com o que dizem as autoras supracitadas quando afirmam que é 

“mais interessante compreender o fenômenos do ensino como uma situação em movimento e diversa conforme os sujeitos, lugares e os contextos onde ocorre. Dessa forma, não é possível dissecá-lo, para identificar suas regularidades,e com base nisso pretender a criação de regras, técnicas e modos únicos de operá-lo. Essa foi a pretensão comeniana que marcou a didática normativa.” (Ibid, p:48)

Não obstante, admite-se aqui que um olhar analítico sobre a prática docente exige, da mesma forma, considerações sobre o cenário social, político e histórico no qual essa atividade se insere. Assim, a primeira etapa desse trabalho compreende: a) um esboço da configuração assumida pela didática nesse cenário; b) o papel do professor e do aluno no contexto do ensino superior.

Na segunda parte do trabalho estão situadas a Teoria das Competências de Perrenoud; o conceito de competência e as características de um ensino por competências segundo esse teórico. Já na terceira etapa, são tecidas algumas considerações acerca dos aspectos da Teoria das Competências na prática docente do ensino superior. Essas considerações integram os aportes teóricos que, articulados aos objetivos do trabalho apresentados na introdução, servem de base para análise dos dados coletados durante as observações, entrevistas com os professores, dos questionários aplicados aos discentes.

Em face dos resultados das análises dos dados coletados, outras questões de pesquisas serão apresentadas nas considerações finais.

 

DIDÁTICA...o que é? Breve reflexão sobre o conceito

 

Enquanto alunos, no decurso de nossa vida escolar, são inúmeras as vezes que nos pegamos a dizer ou a ouvir que determinado professor demonstra ter bastante conhecimento, mas não  tem didática. Por esse âmbito,  atribuía-se   à didática  o sentido do saber ensinar, do saber passar o conteúdo, o conhecimento de ou sobre algo. Contanto, de acordo com Anastasiou (2002), compreender a didática por esse prisma é contraditório, porque, de um lado,  revela que os alunos  esperam  que a Didática lhes forneça as técnicas a serem aplicadas em toda e qualquer situação para que o ensino de fato se efetive e,  por outro,  mostra,  também,  que há um reconhecimento de que para saber ensinar, apenas a  experiência e os conhecimentos específicos não são satisfatórios, mas  se fazem necessários, também,  os saberes pedagógicos e didáticos que, na história da formação de professores, têm sido trabalhados de maneira distinta e desarticulada. Nesse sentido, nos adverte Anastaisou (2002, p.71)

 

“...  é preciso considerar a importância dos saberes das áreas de conhecimento (ninguém ensina o que não sabe), dos saberes pedagógicos (pois o ensino é uma prática educativa que tem diferentes e diversas direções de sentido na formação do humano), dos saberes didáticos (que tratam da articulação da teoria da educação e da teoria de ensino pra ensinar nas situações contextualizadas), dos saberes da experiência do sujeito professor (que dizem do modo como nos apropriamos do ser professor em nossa vida).”

           

           Por essa ótica, é perceptível compreender o ensino como fenômeno complexo que, como prática social, é realizado por e com seres humanos, mas modificado pela ação e relação dos sujeitos envolvidos, professor e aluno. E isto nos aponta para um distanciamento da compreensão da didática, originalmente vista dentro do âmbito normativo, tal como  propunha Comênio[2][i],  sob o prisma da prescrição de métodos e técnica de ensinar que, ainda hoje,  aparece  arraigada na mente de muitos professores. Nesse sentido, se nos assinala uma ressignificação da didática, a que traz para o bojo da discussão a prática docente como base para a constituição de novos saberes em didática.

            Ainda segundo a referida autora, são as demandas das práticas que vão dar a configuração dos saberes acima assinalados, uma vez que o ensino ocorre em contextos sociais específicos, como as aulas, as escolas, os sistemas de ensino e, nesse caso

 

“...a tarefa da Didática é a de compreender o funcionamento do ensino em situação, suas funções sociais, suas implicações estruturais; realizar uma ação auto-reflexiva como componente do fenômeno que estuda, porque é parte integrante da trama  do ensinar (e não uma perspectiva externa que analisa e propõe prática de ensinar); pôr-se em relação e diálogo com outros campos de conhecimentos construídos e em construção, numa perspectiva múlti e interdisciplinar, porque o ensino não se resolve com um único olhar; proceder a constantes balanços críticos do conhecimento produzido no seu campo (as técnicas, os métodos, as teorias), para  dele se apropriar, e criar novos diante das novas necessidades que as situações de ensinar produzem.” (ANASTASIOU, 2002, p.49)

 

            Se por um lado este prisma apresentado pela autora nos amplia o sentido da didática que, distanciando-se da falsa idéia de ter como norte a “criação de técnicas e métodos válidos que possam se aplicar a qualquer situação de ensino” (Idem, ibidem, p.) por outro lado nos aproxima da compreensão de que as ações que a atividade de ensinar exige  com base nos saberes acumulados constitui-se seu verdadeiro objeto de estudo.

            Diante do exposto pela autora, a nova configuração assumida pela Didática tem se refletido nos vários níveis de ensino. No Nível Superior, observa-se uma tendência de uma prática acompanhada por reflexões, a qual ganha relevância não apenas porque serve como lente para enxergar alguns problemas sobre essa prática, mas também porque se compromete com uma formação docente que valoriza a diversidade de saberes adquiridos no campo teórico e na prática, num processo de ação / reflexão / ação.

 

A PRÁTICA DOCENTE NO ENSINO SUPERIOR:

A realidade educacional tem mostrado o quanto é preciso rever a função e o papel do professor no Ensino Superior, diante dos grandes desafios que a contemporaneidade nos traz e da necessidade prática de solucionar velhos e novos problemas relacionados à educação escolar. Assim, o que se exige são docentes que tenham dentro da sua experiência denominada saber, saberes ligados à prática, ao conteúdo e à organização. Em outras palavras, saberes que impliquem, em linhas gerais, valorizar o aluno como sujeito ativo do seu processo de aprendizagem; desfragmentar o saber; ancorar as aprendizagens nas experiências cotidianas e em situações-problemas; valorizar a autonomia; investir no desenvolvimento global; aprender a lidar com a diversidade e a respeitá-la; implementar novos contratos didáticos e vivenciar uma avaliação formadora, contínua e diversificada. Dessa forma, além de compreende o(s) objeto(s) que constituem as ações que a atividade de ensinar exige, o professor terá que saber também quais os conteúdos / saberes são relevantes e pertinentes para o desenvolvimento de competências e de aprendizagens dos seus alunos e como deverá constituir essas ações a fim de que seus alunos aprendam.

Esse novo oficio exigido da prática docente, para autores como Zeichner, se constitui a partir de um profissional prático e reflexivo que aprendem a ensinar ensinando e que tenham e desenvolvam competência[3] de organizar e avaliar projetos, lidar e criar situações-problemas, realizar com autonomia e responsabilidade ações intelectuais em situações complexas. E os diversos saberes necessários e mobilizados pelo professor são construídos através do paradigma do professor reflexivo, ou seja, a situação problema é a origem da reflexão e do conhecimento contextualizado. Nesta perspectiva, acredita-se numa postura inteligente e flexível, teórica e prática, cuidadosa e criativa do professor que reflete e dialoga com a própria realidade.

A didática do Ensino Superior deve preparar o professor a confrontar seus conhecimentos com as situações dentro da sala de aula (situações práticas) e a interiorizarem a maneira como ensinam (ZEICHNER, 19__, p.17).

 “a atenção do professor está tanto virada para dentro, para sua própria prática, como para fora, para as condições sociais nas quais se situa essa prática. (...)O seu compromisso com a reflexão enquanto prática social”.

 

Portanto, uma postura pratico-reflexiva deve ser uma competência essencial nesse novo profissional, capaz de auto-avaliar-se, auto-observar-se e auto-regular-se.

“ Uma maneira de pensar na prática reflexiva é encara-la como a vinda à superfície das teorias práticas do professor para análise crítica e discussão. Expondo e examinando as suas teorias práticas, para si próprio e para os seus colegas, o professor tem mais hipótese de se aperceber das suas falhas” (ZEICHNER, 19___, p.21).

 

COMPETÊNCIA: UM CONCEITO POLISSÊMICO

            O conceito de competência recebe diferentes significados, às vezes contraditórios e confusos, nem sempre suficientemente claros. Por isso, acaba sendo usado de forma imprecisa e polissêmica, gerando diferentes interpretações. Esses diversos significados que o termo competência carrega podem estar atrelados aos seguintes aspectos: aos diversos estudos acadêmicos sobre o tema; a própria visão de senso comum; as representações dos professores e a própria configuração assumida pelo termo no contexto da profissionalização.

            Para Manfredi (1998, p.01), “a noção de competência é multidimensional, envolvendo facetas que vão do individual ao sociocultural, situacional (contextual-organizacional) e processual”. Porém a plasticidade dessa noção pode representar um perigo, pois, “ao ser associada aos mais diversos discursos, acaba por ser aceita sem maiores restrições, como uma opção válida para qualquer concepção.” (COSTA, 2005, p. 61).

            Muitos estudos, como os de Ropé e Tanguy (2002 apud COSTA, 2005, p. 57)), mostram a dificuldade que se encontra na tentativa de melhor precisar a competência, bem como delimitar os universos em que a mesma é utilizada. No entanto, como “é a construção dos conceitos científicos que fundamenta a execução das ações de forma competente, criativa e inovadora” (FIRMINO; CUNHA, 2005, p. 76), tentaremos, neste capítulo, colocar em evidência as várias definições encontradas sobre competência, tanto na área educacional como na profissional. Para tanto, faremos um breve histórico do surgimento da noção de competência.

De acordo com Deluiz (2001), a noção de competência começou a ser utilizada na Europa a partir dos anos 1980. Para a autora, ela

origina-se das Ciências da Organização e surge no quadro de crise do modelo de organização taylorista/fordista, de mundialização da economia, de exacerbação da competição nos mercados e de demandas de melhoria da qualidade dos produtos e de flexibilização dos processos de produção e de trabalho (DELUIZ, 2001, p. 12).

             Para Ropé e Tanguy (1997), a competência aparece se contrapondo à noção de qualificação profissional, sob o argumento de que esta teria se tornado incapaz de dar conta da nova realidade, caracterizada pelo trabalho flexível.

            Como podemos observar, a noção de competência tem uma longa história. Segundo Manfredi (1998), no Brasil,

apesar de já ser conhecida no âmbito das ciências humanas (notadamente no campo das ciências da cognição e da lingüística) desde os anos 70, passa a ser incorporada nos discursos dos empresários, dos técnicos dos órgãos públicos que lidam com o trabalho e por alguns cientistas sociais, como se fosse uma decorrência natural e imanente ao processo de transformação na base material do trabalho (MANFREDI, 1998, p. 08).

           De posse de algumas informações acerca do surgimento da noção de competência, passaremos agora às concepções que esse termo vem assumindo de acordo com as várias áreas de conhecimento e os vários autores que o estudam. Mas faremos isso com cautela, pois, como afirmam Firmino e Cunha (2005), a noção de competência é muito complexa e exige a mobilização de vários saberes numa situação adversa.

            Segundo Costa (2005, p. 60), é possível considerar a noção de competência “como um grande ‘guarda-chuva’ conceitual, que pode abrigar elementos objetivos e subjetivos das mais diversas ordens e naturezas. Seria um ‘guarda-chuva’ heterogêneo, formado por um repertório de recursos composto por conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidades relacionais e afetivas”. Esse “guarda-chuva conceitual heterogêneo” é, de acordo com Manfredi (1998, p. 08), usado de forma generalizada e empregado, “indistintamente, nos campos educacionais e do trabalho como se fosse portador de uma concepção universal”. Daí a necessidade de esclarecer que a competência pode ser tomada sob as visões profissional e educacional, mas que essas visões, apesar de serem consideradas distintas, estão interligadas se levarmos em consideração que, quando concebida pedagogicamente, a competência está na educação para o trabalho.

            A literatura corrente sobre a noção de competência assinala, segundo Deluiz (2001, p. 13), em termos gerais, “que a competência profissional é a capacidade de articular e mobilizar conhecimentos, habilidades e atitudes, colocando-os em ação para resolver problemas e enfrentar situações de imprevisibilidade em uma dada situação concreta de trabalho e em um determinado contexto cultural”. Zarifian (1999 apud DELUIZ, 2001, p. 13) contribui afirmando que “a competência exprime uma mudança essencial nas organizações, configurando uma nova forma de atuação do trabalhador diante destas transformações e, ao mesmo tempo, um novo modelo e gestão da força de trabalho”. Para ele, "as competências referem-se às modificações dos conteúdos profissionais e dos ofícios” (Idem, ibidem).

Firmino e Cunha (2005, p. 71) concebem competência como “a capacidade de articular, mobilizar e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”. Assim também pensam Dias e Lopes (2003, p. 1155) quando afirmam que a competência profissional é “a capacidade de mobilizar múltiplos recursos, entre os quais os conhecimentos teóricos e experiências da vida profissional e pessoal, para responder às diferentes demandas das situações de trabalho”.

Para Meghnagi (1992), o conceito de competência profissional adquire uma conotação multifacetada e multidisciplinar. Segundo o autor, esse conceito “englobaria, entre outras dimensões, uma de ordem individual de caráter cognitivo, relativa ao processo de aquisição e produção de conhecimento que é definida como sendo um processo de construção ativo, referendado em teorias de aprendizagem” (MEGHNAGI, 1992 apud MANFREDI, 1998, p. 16). Abarcaria também uma outra dimensão não menos importante: a de ser uma construção balizada por parâmetros socioculturais e históricos.

Privilegiando, agora, a dimensão pedagógica do termo competência (apesar de ser sutil a diferença entre esta dimensão e a profissional), autores como Tardif (2000, p. 4-5 apud THERRIEN; LOIOLA, 2001, p. 154) o entendem como “modalidades práticas de utilização de conhecimentos aplicados em situações apropriadas, através de comportamentos e de atitudes típicas em relação às finalidades da tarefa”. Para ele, “ser competente é ser capaz de utilizar e de aplicar procedimentos práticos apropriados em uma situação de trabalho concreta” (Idem, ibidem). Para Machado (2002 apud COSTA, 2005, p. 33), “competência é a virtualização de uma ação, a capacidade de recorrer ao que se sabe para realizar o que se deseja, o que se projeta”. Setzer (1999, p. 06), por sua vez, concebe a competência como “uma habilidade de produzir algo em uma certa área de conhecimento”, concepção que é complementada por Stroobants (2002 apud COSTA, 2005, p. 59), que afirma ser a competência definida em função do seguinte trio: “saberes, saber-fazer e saber-ser” de/em uma determinada área.

            Lima (????), ao estudar as distintas abordagens e aplicações das competências na formação de profissionais, esclarece que, na literatura educacional, é possível verificar três relevantes abordagens conceituais de competência:

uma considera competência como sendo uma coleção de atributos pessoais; outra vincula o conceito aos resultados observados/ obtidos (tarefas realizadas) e uma terceira propões a noção de competência dialógica, originada na combinação de atributos pessoais para a realização de ações, em contextos específicos, visando atingir determinados resultados (LIMA, ????, p. 02).

             Segundo a autora, a concepção de competência dialógica trabalha com “o desenvolvimento de capacidades ou atributos (cognitivos, psicomotores e afetivos) que, combinados, conformam distintas maneiras de realizar, com sucesso, as ações essenciais e características de uma determinada prática (...)” (Idem, ibidem). Para Lima, essa abordagem, considerada holística, deve ser construída no diálogo entre a formação e o mundo do trabalho, onde as práticas profissionais são desenvolvidas.

Em face dessas discussões sobre o conceito de competência, trazemos também para o cerne desse debate o que sinaliza Perrenoud sobre esse referido tema, já que é sobre a teoria desse autor que o presente trabalho segue fundamentado.

 

A teoria das Competências de Philippe Perrenoud

 

Perrenoud (1999) em sua obra Construir as Competências desde a Escola, levanta o questionamento: “Vai-se à escola para adquirir conhecimentos, ou para desenvolver competências?” (p.7) Segundo o autor, uma coisa não invalida a outra, pois ele define competência como uma capacidade de agir com eficiência em uma determinada situação problema e isto requer que o sujeito acione seus recursos cognitivos, ou seja, seus conhecimentos que foram sendo construídos durante sua formação e experiência; mobilizando-os no momento certo, com discernimento a serviço de uma determinada  ação. Para Perrenoud, essa é uma discussão que perpassa por uma reflexão crítica sobre a escola, sobre os profissionais que estamos formando, sobre os currículos e programas, enfim sobre as políticas educacionais. Seguindo esta linha de raciocínio Macedo[4] expressa:

A escola de hoje não pode mais se pensar isolada, seletiva, apartada da vida “lá fora”, pois seu “aqui dentro” e o “lá fora” são partes de um mesmo contínuo e expressam o jogo de posições e o colorido do que podemos ser na diversidade dos tempos e lugares da nossa existência. (2001, vi)

 

Assim sendo, o ensino por competências não dá as costas aos conhecimentos eruditos, aos saberes científicos ou do senso comum, mas possibilita compreender sua aplicação.  As reflexões tomadas no âmbito dessa teoria , compartilham com o pensamento de Le Boterf:

A competência não reside nos recursos (conhecimentos, capacidades...) a serem mobilizados, mas na própria mobilização desses recursos. A competência pertence à ordem do “saber mobilizar”. Para haver competência, é preciso que esteja em jogo um repertório de recursos (conhecimentos, capacidades cognitivas, capacidades relacionais...). ( Le Boterf, 1994, citado por PERRENOUD, 2001, p.21).

 

Segundo Perrenoud, aceitar uma abordagem por competências não é tarefa fácil, pois exige da ação docente uma mudança e até mesmo uma ruptura com as rotinas pedagógicas tradicionais, com o modo de gerir as transposições didáticas, com o planejamento, com os contratos didáticos e as formas de avaliar os alunos. Muitas vezes a escola nega-se a experimentar uma nova pedagogia, porque uma abordagem clássica de transmissão de conhecimentos é o que ela melhor domina.

O desafio posto, segundo Perrenoud é que as cientificidades tradicionais não conseguem dar conta da educação na atualidade. E o desenvolvimento de competências no sistema educacional, em qualquer nível e modalidade de ensino é uma condição necessária, que nos permite enfrentar a complexidade do mundo e nossas contradições. (2001 p. 14). Trabalhar essa complexidade faz parte do ofício da docência, uma vez que, no exercício de uma prática reflexiva o professor materializa-a a partir de um trabalho pedagógico contextual, respeitando as singularidades e diversidades. A profissionalidade docente neste contexto é permeada de um esforço contínuo e permanente e muitas vezes de luta se inteirar ou romper com as contradições educacionais, que geram a confluência entre o velho e o novo, as clausuras cognitivas, o conflito de valores, de métodos, de posturas, das relações do professor com o saber perante a sua formação, suas concepções, seus desejos, sua identidade e ideologia.

Ao afirmar explicitamente que as competências são capacidades de ação, Perrenoud (2001), salienta que manifestar competências profissionais diante de uma situação complexa é ser capaz: de identificar os obstáculos e problemas a serem superados; de considerar estratégias realistas em termos do tempo e dos recursos; de planejar e implementar estratégias adotadas, procedendo por etapas, atendendo as necessidades, mobilizando atores e reavaliando a situação; de respeitar princípios legais e éticos; de controlar as emoções, os humores e valores; de cooperar com outros profissionais e de extrair todos os ensinamentos durante e após a ação.(PERRENOUD, 2001, PP. 139,140).

De acordo com  Perrenoud, o funcionamento destas competências ultrapassam os saberes, sejam eles eruditos, teóricos, do senso comum, procedimentais, atitudinais, individuais ou compartilhados (2001, p.141). Pois para ele a competência se estabelece numa dimensão situada, onde os conhecimentos são mobilizados para a ação, ou seja, para agir e tomar decisões concretas, integrando os saberes em todas as dimensões do ser. Partindo dessas reflexões, Perrenoud acrescenta que formar em competências exige “... uma considerável transformação da relação dos professores com o saber, de sua maneira de” dar aula” e, afinal de contas, de sua identidade,e de suas próprias competências profissionais” (1999, p.53).

Ao se eleger uma abordagem por competências, segundo Perrenoud, situa-se uma  (re)organização  do ofício da docência, uma vez que tal abordagem convida os educadores a : utilizarem uma pedagogia diferenciada;  trabalhar em equipe, considerar os conhecimentos como ferramentas a serem mobilizados conforme as necessidades,  ter o foco no aluno, administrando a progressão de suas aprendizagens;  informar e envolver os pais e a comunidade escolar na construção dos saberes, administrar a heterogeneidade da turma,  atualizar e criar procedimentos didáticos que favoreçam uma aprendizagem significativa para os alunos,  realizar uma avaliação formativa, adotar um planejamento flexível e envolver os alunos em atividades de pesquisa, em projetos de conhecimento. (PERRENOUD, 1999,2000) que não condizem com um ensino tradicional, mas desenha-se num cenário que seja oportunizado uma prática reflexiva dos professores, a mobilização dos diversos recursos cognitivos, o trabalho com situações problemas, o enfoque dos conhecimentos na ação, o investimento nos conhecimentos prévios dos alunos, as condições favoráveis ao aprendizado dos alunos, a flexibilidade no planejamento, uma avaliação formativa e a formação global do aluno.(PERRENOUD, 1999).

Por essa razão, assume-se cada vez mais que o professor é um construtivista, que gera conhecimentos práticos, aceita a incompletude, oportuniza os alunos a investir nos seus conhecimentos prévios, criam situações problemas mobilizadoras e orientadas para aprendizados específicos, negocia e conduz projetos com os alunos e estabelece de forma compartilhada um contrato didático com os alunos.[5]

Em função das questões levantadas, do referencial teórico exposto, Perrenoud acredita  na existência de uma evolução das concepções sobre educação, visto que os conhecimentos acumulados não são mais suficientes para dar sentido à escola, pois hoje a meta é antes fazer aprender do que ensinar. Por este ângulo, o autor mencionado defende uma adesão à abordagem por competências beneficiará prioritariamente os alunos, pois estes terão uma formação mais global, a qual não terá como base apenas o acúmulo de conhecimentos eruditos e científicos, estimulando a memorização e a mera apresentação de resultados. Orientando-se por essa idéia, o referido autor convida ao professor a seguir rumo a um “oficio novo” (MEIRIEU, 1990 apud PERRENOUD,1999, p.53) trabalhando de forma a:

  • “Considerar os conhecimentos como recursos a serem mobilizados;
  • Trabalhar regularmente por problemas;
  • Criar e utilizar outros meios de ensino;
  • Negociar e conduzir projetos com seus alunos;
  • Adotar um planejamento flexível e indicativo e improvisar;
  • Implementar e explicar um novo contrato didático;
  • Praticar uma avaliação formadora em situação de trabalho;
  • Dirigir-se para uma menor compartimentação disciplinar.” (PERRENOUD, 1999, p.53)

 

Dessa forma, dos aspectos acima citados foram elencados cinco para subsidiar nosso olhar sobre as práticas docentes dos professores do Ensino Superior, objetivando:

  1. identificar em que medida esses aspectos emergem nas práticas desses professores;
  2. analisar quais aspectos norteadores do trabalho docente por competência são contemplados na fala desses professores acerca da sua própria prática;
  3. identificar quais os aspectos da teoria das competências são apontados pelos alunos na prática dos professores das disciplinas observadas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BÉLAIR, L. A Formação para a Complexidade do Ofício de Professor. In:PAQUAY,L.. et. al (Organizadores). Formando Professores Profissionais. Quais estratégias? Quais competêcias?. 2. ed. Porto Alegre:: Artmed Editora, 2001.

 

FREITAS, A. S. A questão da experiência na formação profissional dos professores. In: FERREIRA, A. B. et.al. (Orgs) Formação Continuada de Professores: questão para reflexão.Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

 

PIAGET, J. Biologia e Conhecimento. Petrópolis, Vozes, 1973.

 

________.”Aprendizagem e Conhecimento”. In: PIAGET, J. & GRÉCO, P. (org.). Aprendizagem e Conhecimento. Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1974.

PERRENOUD,P.Construir as  competências desde a escola.Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.

________. Dez Novas Competências para Ensinar. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.

_______. Ensinar: agir na urgência, decidir na incerteza. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

 

SANTIAGO, E. Perfil do Educador/ educadora para a atualidade. In: NETO, J. B. e  SANTIAGO, E. (Orgs). Formação de Professores e Prática Pedagógica.Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Ed. Massangana,2006.

 


[1] Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco

[2] João Amós Comênio (1571-1635) escreve, entre 1627 e 1657, a obra Didática MagnaTratado da arte universal de ensinar tudo a todos.  Conforme Anastasiou (2002) a referida obra caracterizava-se por ser pautada em ideais ético-religiosos  e compreendia um método único para ensinar tudo a todos.

 

[3] No sentido compreendido / construído por Perrenoud: “Capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles”. (1999, p.).

[4] Lino de Macedo - Vice-diretor do Instituto de Psicologia da USP.Elaborou o prefácio da obra: PERRENOUD, P. Ensinar na urgência, decidir na incerteza. 2001.

[5] O ensino por competências, portanto, aproxima-se mais da teoria construtivista, pois esta defende o princípio de que os alunos ao chegarem à escola trazem uma bagagem de conhecimentos, eles não partem do zero. Os indivíduos têm conhecimentos prévios construídos que devem ser valorizados, ou seja, deve-se a partir deles, criar pontes para as novas aprendizagens.


 

Download do artigo
Autor: Maria Tereza Gomes Do Nascimento


Artigos Relacionados


Como Os Estudos Da DidÁtica E CurrÍculo Podem Colaborar Com O Trabalho Docente No CenÁrio De Complexidade Da ''escola''?

O Dilema Da Constituição Identitária Do Educador Na Eja

A AnÁlise Das ContradiÇÕes E Conflitos Presentes Na PrÁtica Docente: ReflexÃo TeÓrico – PrÁtica

Competência E Mercado De Trabalho

Ação Docente Em Ambientes Virtuais De Aprendizagem

A Importância Da Didática Para A Formação Do Professor E Sua Contribuição Para A Efetivação Da Prática Pedagógica

Saberes Ou Sabores Da Docência?