Vô Miguel: um juiz de paz autodidata que sabia fazer justiça



O meu avô Miguel foi juiz de paz na Comarca de Mantenópolis por mais de quarenta anos. Ele chegou à região quando tudo era mata fechada. No exercício de seu múnus muita coisa aconteceu, umas engraçadas e outras nem tanto. O juiz de paz é hoje conhecido apenas como aquele que funciona nos casamentos. Numa terra onde não tinha juiz de direito e o delegado era qualquer um nomeado pelo governador, o juiz de paz também intermediava conflitos e era respeitado por todos, inclusive pela policia. Coisa corriqueira era chegar à casa do vô Miguel e encontra-lo conversando com as partes. As questões que mais exigia a presença do juiz de paz se relacionavam aos direitos e deveres do matrimonio. O meu avô recebia o querelante e mandava uma cartinha para o querelado, marcando o dia da reunião em sua casa. Passava uma descompostura nos pombinhos e os mandavam embora, desejando paz até a próxima briga. Quando não tinha solução, para evitar coisa pior, o Miguel Briti comparecia na casa do casal para funcionar como uma espécie de arbitro. As tralhas de casa e os panos de bunda ficam com a mulher. O homem fica com o cavalo, o cabrito e a porca com cinco leitões. As galinhas vamos dividir meio a meio. Como tudo não poderia correr as mil maravilhas, a solução poderia ficar pendente por causa de uma colheita de milho, uma galinha carijó, etc. Certa ocasião vô Miguel pelejou para que um homem comparecesse na cidade para dar satisfação sobre os reclames de sua esposa. Cartas, recados e nada. A mulher ia até a casa do vovô e dizia que o homem estava bêbado de cair. Não tinha um dia em que o marido violento não bebia a sua caninha. O juiz de paz perdeu a paciência e chamou o sargento da policia para lhe ajudar. Pediu que um policial fosse buscar o homem para finalmente poder conversar. O soldado chegou com o dito cujo e o apresentou ao Miguel Briti. O moço estava trocando as pernas de tão embriagado. Não sabia nem para onde o nariz apontava. O juiz de paz pediu ao militar que trancasse o bêbado no cubículo até que os efeitos da cachaça passassem. Depois de três dias na tranca o homem saiu novinho em folha e já dizia coisa com coisa. A questão foi solucionada e mais uma separação efetivada, embora o casal gabasse que casaram nas duas leis. Tinha chegado o juiz de direito na Comarca e alguém dedurou o vô Miguel, acusando-o de abuso de autoridade, pois manteve no cárcere um ser humano por três dias. Agora era a vez de vovô receber o seu sermão. O juiz de toga apontou o dedo para o nariz do Miguel Brite e disse: Quem falou que o senhor tem autoridade para mandar prender alguém? Aqui quem pode mandar prender ou deixar de prender sou eu, juiz de direito. O juiz de paz contra argumentou afirmando que não tinha mandado prender nenhum homem, mas sim um bêbado. Eu não prendi, eu só pedi a policia que o deixasse no cubículo até passar a cachaça. Tem muito tendo que eu estava tentando conversar com ele e não tinha jeito, a noticia era sempre a mesma: Ele não vem por que tá mais bêbado do que uma porca. O juiz de direito falou para vovô que daquela vez iria passar, porém, quem tinha que resolver os problemas da cidade era ele, o juiz. Todos que bateram na porta do juiz de paz foram devidamente encaminhados para o fórum, a fim de serem atendidos pelo magistrado. Passados alguns dias o homem da toga preta manda chamar o vô Miguel ao fórum. Senhor Miguel, eu não sei como é que o senhor aguenta essa gente. Deus me livre! Vamos fazer o seguinte: o senhor resolve os problemas pequenos lá mesmo e manda para mim apenas as grandes questões. Meu avô era um homem autodidata. Foi sempre justo. Com bom senso e a equidade é possível fazer justiça sem ter passado por uma faculdade.


Autor: Creumir Guerra


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