Da nona sinfonia ao horroshow: uma reflexão sobre a violência presente no filme Laranja Mecânica



DA NONA SINFONIA AO HORROSHOW: UMA REFLEXÃO SOBRE A VIOLÊNCIA PRESENTE NO FILME LARANJA MECÂNICA
Ailton da Costa Silva Júnior

RESUMO
O artigo a seguir foi solicitado pelas professoras Ruth Vasconcelos e Fátima Albuquerque, como instrumento avaliativo da disciplina Violência, Poder e Subjetividade. A pesquisa apresenta uma abordagem psicossocial a cerca da violência presente no longa-metragem britânico Laranja Mecânica (A Clockwork Orange) de 1971, do diretor Stanley Kubrick. Considerado um clássico da filmografia mundial sendo baseado no livro homônimo do escritor inglês Anthony Burgess lançado em 1962. A película de Kubrick tem como temática a violência na sociedade e as tentativas do Estado de coibi-la por meio de programas de acompanhamento psiquiátrico. Serão utilizados como arcabouço teórico científico alguns periódicos de autores como Sigmund Freud, Zygmunt Bauman, Michel Foucault e Paulo Sérgio Rouanet. Neste contexto, reflete-se sobre a necessidade de manutenção da ordem social que contraria a agressividade do indivíduo e toda a sua complexidade.
Palavras-chave: Psicologia. Violência. Estado.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As reflexões aqui propostas têm como finalidade uma abordagem psicológica e social do filme Laranja Mecânica baseado na obra literal de Anthony Burgess intitulada “A Clockwork Orange”  , que tem como significado “Laranja com Mecanismo de Relógio”.  A direção do filme ficou por conta do cineasta Stanley Kubrick e ganhou o nome de “Laranja Mecânica” no Brasil, sendo lançado em 1971, está película apresenta a história de Alexander DeLarge um sociopata, líder de uma gangue de arruaceiros, acompanhamos em três momentos a trama que começa com um mergulho no submundo libertário do protagonista, a segunda parte é marcada por sua prisão e início do processo de reabilitação, o qual é feito por meio de um método psiquiátrico inovador, na parte final observamos como se dá o processo de readaptação a sociedade.
A primeira parte do filme segue em ritmo acelerado, cenas de agressão e estupro são vistas na primeira sequência, como uma espécie de previa do que estaria por vir no desenrolar de toda a história.
Proibido no Brasil e em outros países, o filme Laranja Mecânica casou impacto em suas primeiras exibições por conta de seu teor violento e, sobretudo por conta da crueldade com a qual os algozes tratam suas vítimas. Este artigo pretende analisar algumas passagens do roteiro de Stanley Kubrick sob o ponto de vista de autores que apresentam temáticas voltadas para a psicologia e a sociologia.
Será feita inicialmente nesta pesquisa uma reflexão sobre a essência existente no filme Laranja Mecânica e sua receptividade ao redor do mundo. Quais elementos se voltam para a violência, como os mesmos podem ser percebidos durante o longa-metragem, e como está violência desenfreada é trabalhada pelo cineasta Stanley Kubrick no decorrer de sua obra. Entrevistas e depoimentos de críticos de cinema serão inseridos neste capítulo com o propósito de entender o universo da película e os porquês de sua censura.
No segundo capítulo será feita uma reflexão sobre o personagem central Alexander DeLargue, que aparece como protagonista da trama e é interpretado pelo ator Malcolm McDowell. Traços de sua personalidade serão analisados, desde os porquês de sua necessidade de aplicar a violência, até a sua ida para a prisão e os métodos psiquiátricos utilizados pelo Estado para reeducá-lo e reinseri-lo na sociedade.
Sobre a ótica de Freud será analisado o sentido da privação existente na figura do personagem e sua personalidade violenta, nesse ponto será utilizada a obra Mal-Estar na Civilização escrita na década de 1930, que abre espaço para um debate a cerca do sofrimento e a luta entre a moral e a nossa necessidade de atender nossos desejos mediante a quebra das regras de conduta social, também abriremos espaço para um debate a cerca de alguns conceitos existentes na obras de Paulo Sergio Rouanet, intitulada Mal-Estar na Modernidade e Mal-Estar na Pós-Modernidade de Zygmunt Bauman.
O Estado e as práticas de conduta e afirmação do poder e da ordem serão trabalhados no último capítulo, para esse fim faremos uso de algumas obras de Michel Foucault que tem como tema central o Estado e seus meios de manutenção da ordem, obras como Microfisica do Poder e Vigiar e Punir serviram de base conceitual no decorrer da pesquisa.     
1.    A ESSÊNCIA DO FILME LARANJA MECÂNICA
A complexidade existente no filme Laranja Mecânica já foi tema de diversas discussões, tanto no campo da filmografia, em se tratando de ambientes de cena, figurino e fotografia, quanto no meio da psicologia, nos debates sobre violência e agressividade.
O escritor britânico Anthony Burgess inseriu em seu livro Clockwork Orange (Laranja Mecânica) que teve lançamento em 1962, elementos provenientes de seu “mal-estar” frente à delinqüência juvenil que assolava a Europa na década de 1960, e em particular de um acontecimento envolvendo uma de suas ex-esposas, o qual é mencionado pelo escritor Alexander Walker no documentário O Tempo Não Pára: O Retorno de Laranja Mecânica (Still Tickin: The return of Clocwork Orange): “Anthony Burguess teve uma atitude peculiar com Laranja Mecânica. Ele o escreveu baseado nele mesmo e em um incidente muito desagradável que havia ocorrido com uma de suas ex-esposas que envolvia um estupro”.   Em entrevista a uma rede de televisão o escritor Anthony Burgess teceu a seguinte afirmação sobre seu livro: “Não é um livro típico. É um livro que trata de violência, especialmente violência juvenil e é absolutamente descritivo. E foi transformado em filme por Stanley J. Kubrick.”  
O Livro foi dividido em três partes, apresentando sete capítulos em cada parte, sendo lançado no ano de 1962. O filme foi lançado em 1971 e teve como diretor o norte-americano Stanley Kubrick, que havia alcançado sucesso em 1968 com seu filme de ficção científica 2001: Uma Odisséia no Espaço. A polêmica em torno do lançamento do filme na época fez com que o diretor e a produtora retirassem o filme das exibições na Grã-Bretanha, tendo retornado ao mercado audiovisual em 1999, depois da morte de Kubrick.
O roteiro foi elaborado por Kubrick seguindo fielmente a diversos elementos da obra literal, e, principalmente na linguagem dos personagens que fazem parte do bando de Alex. Anthony Burguess havia criado um tipo de linguagem característica para o líder Alex e seus comparsas Georgie, Pete e Dim, os quais são chamados ”Druguis” (do russo “drug”: amigo) a linguagem foi criada da mistura do russo com o inglês britânico que é falado no decorrer do filme, como uma espécie de código que não é decifrado pelas pessoas ao redor do grupo. Palavras como: “Devochka” que quer dizer garota, “rozzer” é polícia, “chavalco” é homem, “moloko” é leite, “iarbos” é testículos, entre outros utilizados pela gangue.
O espaço onde se desenvolve a trama do filme apresenta uma ambientação cronologicamente indefinida, pode ser descrito como uma “Inglaterra futurística”. Na primeira parte do filme somos conduzidos pelo narrador/protagonista Alex (pseudônimo irônico que pode ser traduzido do latim como “a-lex”: contrário a lei) através de um mundo de agressões, roubos, estupros e todo tipo de violência gratuita. Uma característica peculiar do personagem Alex é o seu gosto pela música clássica e principalmente pela nona sinfonia de Ludwig van Beethoven, a qual é ouvida em seus momentos de relaxamento, após suas noites de crime e violência.
“Tinha sido uma noite maravilhosa e eu só precisava, para concluí-la com perfeição de um pouco do velho Ludwig van... Ó deleite! Deleite e paraíso! Era a formosura e a formosidade feitas carne. Era como um pássaro de metal raro e celestial ou como vinho prateado flutuando numa espaçonave, a gravidade deixada para trás. Enquanto eu esluchava (escutava), via imagens tão adoráveis.”
A liberdade de Alex na primeira parte do filme é interrompida pela prisão, após cometer um assassinato o líder é traído por sua gangue em uma emboscada e levado pela polícia para um presídio.
O ambiente que presenciamos na segunda metade do filme é de extrema claustrofobia, a disciplina no cárcere é exercida até as ultimas conseqüências por seus representantes. O pseudônimo Alex dá lugar a um número de registro da prisão, a ordem e a disciplina são refletidas desde a indumentária dos guardas até os hinos que são cantados obrigatoriamente pelos detentos do complexo.
A parte final do filme é onde analisamos até onde são levados os conceitos de ordem e disciplina do Estado. Alex é escolhido para ser cobaia em um programa psiquiátrico desenvolvido pelo Estado chamado de “Método Ludovico”, o experimento tem como objetivo fazer com que o detento perca o interesse pela violência e necessidade de agredir outros indivíduos. Após uma série de sessões, Alex é considerado curado e apto para retornar ao convívio social.
Neste momento o antigo Alex, bandido e assassino covarde, dá lugar a uma figura apática e sem forças para lidar com problemas corriqueiros simples, nos momentos finais da trama observamos o protagonista ser espancado e humilhado pelos antigos membros de sua gangue e algumas vítimas de suas agressões no início da história. Os conflitos e insatisfação com sua existência levam Alex a tentar suicídio, sem sucesso ele permanece internado em um hospital quando recebe a visita do ministro do interior que o manipula para apresentá-lo a opinião pública como sendo o principal ponto positivo do projeto de reabilitação social do governo.


2.    A PERSONALIDADE VIOLENTA DE ALEX VERSUS A RENÚNCIA DO INSTINTO
A idéia de sociedade só pode ser plausível depois que o homem reconheceu a figura do outro, a partir daí o homem pode compreender a importância da renuncia de seus instintos. A civilização só foi possível depois do frear das paixões de cunho primitivo existente na mente humana, “A civilização se constrói sobre a renúncia do instinto”   como cita Zigmun Bauman em sua obra O Mal-Estar da Pós-Modernidade, onde o autor discute o ponto de vista de Freud sobre a conduta humana e a complexidade das renuncias em prol da existência da sociedade.
O personagem Alex do filme Laranja Mecânica apresenta uma personalidade extremamente forte, o seu desprezo pela sociedade beira a total sociopatia. Agressões, sarcasmo, violência sexual dentre outras humilhações são constantemente utilizadas no ataque as suas vítimas.
No decorrer das cenas fortes de luta entre gangues, de ponta pés que são dados em um mendigo em dado momento, ou mesmo a cena de estupro, não podemos deixar de analisar a necessidade que Alex tem de satisfazer suas necessidades instintivas, as quais são constantemente vilipendiadas pelo “protocolo social” de manutenção da ordem. Na primeira sequência do filme que se passa na leiteria, temos a abertura do filme através da narração do protagonista Alex:
“Éramos eu, ou seja, Alex, e meus três drugues, ou seja, Pete, Georgie e Dim. Nós estávamos na Leiteria Korova tentando rassudocar (pensar) o que faríamos naquela noite. A Korova servia leite com velocete, sintemesque ou drecrom, que era o que bebíamos, ele aguça os sentidos e deixa você pronto para um pouco da velha ultraviolência.”  

A “ultraviolência” que é citada por Alex junto com seus drugues (amigos), é o produto da liberação dos seus desejos impossíveis de ser controlados. O sentido da felicidade é totalmente subjetivo, não se pode descrever especificamente os porquês dos risos de um carrasco ao torturar sua vítima, a qual ele nunca viu, ou mesmo o desejo carnal que leva um homem a estuprar e matar uma mulher. Sobre o conceito de civilização citou Freud em sua obra Mal-Estar na Civilização:


“Basta-nos então repetir que a palavra “civilização” designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si. ”  (FREUD, 2010, p. 48-49)


O conceito de sociedade não existiria sem a existência das instituições, o processo evolutivo da ordem nos agraciou com certa tranquilidade de se viver em grupo, abdicamos de nossos desejos mais profundos em prol dessa organização e troca de favores mútuos. Mantemos nossos desejos trancados dentro de nós e observamos a reflexão dessa decisão nos acontecimentos em nossas vidas, com certa apatia, dirigimos nossa análise para entender esse propósito.
Alex aparece dentro da trama como sendo o resultado da soma de todos os nossos desejos, o homem sem ligação com a humanidade, totalmente instintivo. É através de sua narração que somos apresentados ao seu mundo no decorrer do filme, um mundo onde não existem regras ou impossibilidades. A paixão é o que comanda suas ações, é a partir desse total desprendimento da moral e da ética que nos deparamos com o demônio dentro de nós, acorrentado e inerte. Sobre a empatia existente entre o público de Laranja Mecânica para com seu protagonista sociopata, mencionou Mary Harron diretora do filme Psicopata Americano:
“A narração é um recurso engraçado porque ela simplesmente atraí o público, ela o torna parte do filme, ela o torna cúmplice. Ele está falando com você, você é seu amigo. Então é uma forma de instigar o público um pouco. Você os confunde um pouco pois, você torna o público íntimo dessa pessoa terrível”
Em um mundo que nos força a ficar indiferente diante da violência apreciamos uma figura que abraçou a desordem em prol de seu desejo de liberdade total. O momento de lançamento do filme na Grã-Bretanha era delicado, problemas de cunho econômico e policial agravaram-se chegando a atingir certo grau de normalidade entre a população.  Muitos delinquentes que eram presos nesse período diziam na mídia que haviam causado problemas por conta da inspiração trazida pelo longa-metragem.
Tornando-se mais do que um simples personagem de um filme, a figura de Alex transformou-se no alterego de muitos que desejavam justificar suas explosões de raiva diante de alguma situação. “É pouco provável que mediante alguma influência possamos levar o homem a transformar sua natureza na de uma térmite; ele sempre defenderá sua exigência de liberdade individual contra a vontade do grupo.”   Nesse ponto Freud afirma que a humanidade trava uma batalha entre a liberdade individual e o espírito de organização do grupo.
Educar o indivíduo e torná-lo ciente da existência de um código de moral mantenedor da ordem foi à principal meta na evolução do que chamamos de civilização, segundo Paulo Sérgio Rouanet:
“É por isso que a sociedade tenta domesticar o indivíduo, seja dobrando-o à autoridade externa, seja instalando-se dentro dele, sob a forma de uma consciência moral que força o indivíduo a abster-se do ato de violência e que se alimenta com a energia agressiva reprimida”  (ROUANET, 1993, p. 107)
As pulsões acumulam-se dentro do homem, a liberação dos atos pulsionais desestruturam o grupo mostrando-nos o poder proveniente de nossa hesitação. Em uma das cenas mais marcantes do filme Laranja Mecânica vemos Alex e seus drugues encontrando um velho mendigo bêbado, cantando em um beco escuro, depois de aplaudir ironicamente a cantoria, o líder do bando pressiona violentamente o abdômen do ancião com sua bengala, então o velho homem exclama: “Vamos lá! Acabem comigo, covardes desgraçados! Eu não quero viver mesmo! Não neste mundo fedorento!”, após isso perguntou Alex: “O que há de tão fedorento nele?”, então respondeu o velho:
“É fedorento porque a lei e a ordem não existem mais! É fedorento porque deixa que os jovens batam nos velhos como vocês estão fazendo! Não é um mundo onde um velho possa viver. Que tipo de mundo é afinal? Homens na lua, homens girando ao redor da terra e ninguém mais presta atenção na lei e na ordem terrestres!”  
Este fragmento do roteiro original também está presente na obra literal e evidencia a necessidade existente no decorrer da trama de mostrar a necessidade de alguns personagens de mostrar o quão à lei e a ordem são importantes para se manter o bem estar dos indivíduos e da sociedade como um todo.
Depois de proferir o comentário quase político, o velho é espancado impiedosamente por Alex e seu bando, mais uma vez a obscuridade animalesca venceu a racionalidade. Alex, que age como um representante dos instintos é figurativamente um agente do caos enquanto que o homem que sofre a agressão representa a racionalidade e o espírito de preservação da moral e da ética.
A segunda parte do longa-metragem retrata o período de Alex na prisão, depois de ter cometido um assassinato, nesse momento acompanhamos a debilidade da fúria frente à força do sistema carcerário. A liberdade é amputada violentamente dando lugar apenas aos débeis pensamentos de escapatória que esbarram nas grades do complexo penitenciário.
3.    VIOLÊNCIA PELA VIOLÊNCIA: O ESTADO E SUA NECESSIDADE DE FREAR AS PAIXÕES DA MASSA
Este capítulo pretende realizar uma reflexão sobre os meios encontrados pelo Estado para manter a ordem e as leis atuantes. A segunda parte do filme Laranja Mecânica servirá de arcabouço nesse ponto, trechos do roteiro que tratam, sobretudo da necessidade de se valorizar a disciplina serão expostos sobre a luz de algumas obras do pensador Michel Foucault. O percurso seguido pelo personagem central da trama, desde a sua entrada na prisão até o início de seu tratamento psiquiátrico também serviram de elementos do debate.
Começarei este capítulo analisando um depoimento do escritor Alexander Walker, quando questionado sobre a essência do filme ele respondeu:
 “Laranja Mecânica é um filme sobre o conflito entre o livre arbítrio do indivíduo e o controle do estado. E, para mim, isso é o que permite a violência que o filme contém. É uma mensagem moral sobre os perigos de o estado adotar a violência e não apenas os valentões que estão nas ruas.”  
    Questionamentos sobre o poder do Estado e suas instituições é completamente normal, a coerção é aceita pela maioria e encarada como benéfica no processo de manutenção da ordem. Foi o medo do caos que nos fez refletir sobre a criação de um agente catalisador. Sobre a necessidade da repressão e quais as consequências advindas desse processo, que consiste em combater a violência com a violência, respondeu Michel Foucault: “Uma primeira resposta que se encontra em várias análises atuais consiste em dizer: o poder é essencialmente repressivo. O poder é o que reprime a natureza, os indivíduos, os instintos, uma classe.”   
E muito mais do que apenas reprimir ele monta um jogo estratégico que se estende não apenas através da indumentária padrão dos guardas de prontidão em grandes muralhas, mas ele traduz toda a sua imponência mediante a arquitetura da vigilância. É gerando a paranóia dentro do detento que se vão coibir suas ações e mau comportamento.
“O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único olhar tudo ver permanentemente. Um ponto central seria ao mesmo tempo fonte de luz que iluminasse todas as coisas, e lugar de convergência para tudo o que deve ser sabido: olho perfeito a que nada escapa e centro em direção ao qual todos os olhares convergem” (FOUCAULT, 1979, p. 175)
Nesse ponto Foucault faz menção ao Panóptico de Jeremy Bentham o qual é analisado no capítulo sobre o panoptismo de Vigiar e Punir. Um dispositivo de observação perfeito dentro do ambiente prisional. A essência do Estado é repressiva, todo o seu maquinário de poder deve apresentar uma face amedrontadora, impactante, a polícia com seus símbolos, vestes e postura exemplifica esse poder. O filme de Stanley Kubrick apresenta a prisão com um aspecto claustrofóbico, as grades adornam todos os espaços visíveis, as fardas imponentes dos guardas e carcereiros misturam-se com a estética do ambiente trazendo consigo o sentimento de aprisionamento total. O sofrimento de Alex é visivelmente percebido em sua narração antes da chegada ao cárcere:
“Aqui começa a parte realmente chorosa e trágica da história meus irmãos e únicos amigos. Depois de um julgamento com juízes e um júri, onde todos foram duros com seu amigo e humilde narrador, fui sentenciado a 14 anos na Prisesta número 84-F, entre pervertidos malcheirosos e prestúpniques embrutecidos. O trauma fez meu papai erguer seus rúqueres crovados contra o injusto Bog em seu trono celeste. E minha mamãe choramingou, em seu materno pesar pelo seu único filho, fruto do seu ventre que decepcionou todo mundo de forma bem horrorshow.”
Os sentimentos expressos na interessante narrativa de Alex, a qual é cheia de elementos gramaticais provenientes da linguagem criada por Anthony Burguess em seu livro, são de perda total.
A perda de sua liberdade e o fato de ter sido jogado em meio a escoria da sociedade, entre marginais, assassinos e ladrões é bem expressa nesse ponto. A tristeza de seus pais em ver seu “único filho, fruto do seu ventre” sendo levado para a prisão também tornaram-se muito visíveis aqui.
É importante ressaltar que o que nos impede de realizar atos contra a moral e a ética é descrito na psicologia como sendo o medo da perda do carinho e da atenção de indivíduos próximos a nós, os quais podem fazer parte do ambiente familiar como nossos pais, irmãs e irmãos. Alex havia decepcionado seus pais de uma forma “bem horrorshow” como é descrita por ele mesmo. A vida na penitenciária é repleta de sanções de toda natureza, a educação do corpo e da mente é inegável.
“O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo...tudo isso conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio.” (FOUCAULT, 1979, p. 146)
Destituído de sua liberdade e entregue a sorte do sistema os únicos momentos de relaxamento são proporcionados pela leitura na biblioteca do pavilhão e de sua imaginação.  Dominar primeiro para adestrar depois, é sobre esse sentido que está fundamentada a citação de Foucault. Anthony Burgess chegou a explicar o porquê da escolha do título “A Clockwork Orange” para seu livro, sendo apresentado no Brasil como Laranja Mecânica. A explicação oferecida está ligada aos acontecimentos da Inglaterra do início da década de 1960, a violência exercida por gangues e a fluente repercussão em jornais fizeram com que o escritor retratasse isso em sua obra.
  “Eu ouvia falar nos anos 60 da possibilidade de se pegar jovens assassinos e não prendê-los. A cadeia era só para criminosos profissionais, mas colocá-los em um curso de condicionamento. Transformá-los, na verdade, em laranjas mecânicas. Não mais organismos cheios de doçura e cor e luminosidade como laranjas, mas máquinas.”  
Tornar o indivíduo dócil é o objetivo do sistema carcerário, uma nova forma de falar, um novo jeito de agir são os objetivos do remodelar do caráter. Só após esse lapidar, o qual é exercido dentro de um período de tempo, e estipulado por uma pena, é que o indivíduo pode ser inserido mais uma vez dentro do convívio social.
O filme nos oferece um interessante exemplo de um processo de reabilitação, na trama o Estado faz um acordo com o agora detento Alex, com o propósito de demonstrar a população que é possível modificar a forma de agir de um criminoso fazendo-lhe compreender que o prazer pela violência é um sintoma que pode ser apagado da mente.
A experiência corretiva é chamada de “Método Ludovico” a técnica utilizada pela equipe médica consistia em amarrar o paciente em uma cadeira e manter seus olhos abertos por meio de metais fixados em suas pálpebras, em sua frente um telão exibiria diversas cenas de estupro e agressões contra diferentes pessoas, no decorrer das sessões seria administrado um soro que causaria a náusea e consequente ânsia de vômito, dessa forma o detento perderia aos poucos a sua necessidade pela violência por meio do pensamento condicionado, sempre que houvesse uma situação que enveredasse para a agressividade teríamos rapidamente a náusea retornando a mente, causando-lhe total desconforto.
No decorrer do tratamento de Alex em meio às tantas imagens e vídeos violentos, é inserida, inusitadamente, a nona sinfonia de Beethoven, que era sua música favorita. Nesse ponto a trama oferece um pequeno regresso ao início do filme onde presenciamos um momento de pausa na agressividade do protagonista que dá lugar a beleza da música. Aqui ouvimos mais uma vez durante a experiência, só que dessa vez sendo posta pela equipe médica que representa o Estado. Está junção na história fílmica foi colocada ironicamente pelo diretor a fim de comparar a violência que era exercida pelo sociopata e a violência “legal” desencadeada pelo poder estatal.
Após o ‘tratamento” de Alex com o método psiquiátrico, ele é mais uma vez inserido na sociedade. A figura que vimos no início da trama deu lugar um ser frágil e letárgico. O que presenciamos daqui em diante é um personagem extremamente apático, incapaz de se defender diante de uma situação conflitante. A sequência que encerra o filme é marcada pela repulsa de seus pais, o espancamento sofrido pelas mãos dos antigos integrantes de sua gangue e a mal sucedida tentativa de suicídio.
Os problemas da tentativa de se corrigir o caráter foram expressas nesse capítulo a partir da ficção existente no filme Laranja Mecânica, considerado por alguns como uma verdadeira “ode a violência”. O filme de Stanley Kubrick nos convida a refletir sobre a violência, não para afirmá-la exaltando-a, mas para discutir os porquês existentes em sua essência com o intuito de conhecer quem a prática e por que.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa teve como objeto de estudo o longa-metragem Laranja Mecânica. Foram feitas diversas reflexões a partir de elementos específicos de sua trama, com o auxilio de pensadores como Sigmund Freud, Zygmunt Bauman, Michel Foucault e Paulo Sérgio Rouanet, foi possível traçar uma linha de análise que se estendeu desde os estudos comportamentais advindos da psicologia, até os que se propõem a entender o poder exercido pelo Estado e suas instituições. A utilização de entrevistas, provenientes de documentários também coagiram no processo de compreensão da critica cinematográfica da época de lançamento do filme.
A polêmica gerada em torno do filme Laranja Mecânica foi analisada no primeiro capítulo, os porquês que vieram a fazer com que sua exibição e distribuição fossem interrompidas também foram discutidos. Um filme extremamente violento, repleto de cenas agressivas fez com que a censura impedisse seu lançamento não apenas na Grã-Bretanha, mas em diversos outros países.
Para o debate sobre a moral e a consciência utilizamos como objeto de comparação a personalidade do protagonista/narrador da trama. O sentimento libertino de Alex e suas ações agressivas serviram como ponto de partida no estudo sobre a necessidade humana que se apega ao desejo primitivo, e a importância de negá-la em função da existência da sociedade.
Sobre o ambiente prisional o qual se encontrava o protagonista foi realizado um estudo a partir das obras de Michel Foucault, os métodos disciplinares, o sistema carcerário e estrutura arquitetônica de vigilância, que é discutida com o exemplo do Panóptico de Bentham também foram exemplificadas no decorrer da pesquisa.
Encerrando este artigo discutimos sobre o poder do Estado e a importância da manutenção da ordem para o bem estar da sociedade. A método psiquiátrico fictício ao qual é submetido o personagem central foram alvo da discussão que pós em cheque o verdadeiro poder das instituições de repressão e até que ponto ele pode ser exercido sem que venha a ferir a própria ética e moral com a qual ele veio a ser edificado.

REFERÊNCIAS


BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2004.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder; organização e tradução de Roberto Machado.  Rio de Janeiro: Graal, 1979.


___________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. (Título Original: Surveiller et punir. Traduzido por Raquel Ramalhete). 37. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferencias introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução Paulo César de Souza – São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

LARANJA Mecânica [A clockwork orange]. Los Angeles: Warner Bros., 1971. 1 DVD.

O TEMPO NÃO PÁRA: O Retorno de Laranja Mecânica [Still Tickin: The return of Clocwork Orange]. Channel Four Televison Corporation. 2000, 1 DVD.

ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Autor: Ailton Da Costa Silva Júnior


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