Do mundo modal ao tonal



 

 

Do mundo tonal ao mundo modal

  Cleverson Alves[1]

 

Resumo: A música como fenômeno investigativo mostra-se como um elemento presente desde os primórdios da humanidade, e ao mesmo tempo por revelar traços específicos das diferentes sociedades. A musica esta ligada a contextos específicos das vivências e pensamento humano. Nisso o trabalho pretende abordar como o elemento musical foi ganhando forma em cada contexto, e como ele é revelador das constituições da compreensão de tempo presentes em  tais sociedades.

 

Introdução

 Desde as primeiras manifestações humanas à música foi herdado um significado em cada contexto e cultura. O exemplo das sociedades arcaicas onde a música se associa com a religião tem utilidade enquanto serviço aos ritualismos típico nessas sociedades. A  música neste contexto é configurada como algo basilar que auxilia o coletivo a entrar naquilo que se denomina de tempo sagrado. Em contextos mais próximos o elemento musical agrega valores de mensuração tematizando  a racionalização expresso dado pela ideia da metrificação presente na sonoridade onde o próprio artista passa  a hierarquizar-la. É com o intuito de investigar o papel da musica presente em cada contexto como explicitação de características de formas de vivencia  assumidas em dois momentos da historia, a saber, nas sociedades arcaicas e na modernidade é que este trabalho se divide em duas partes. A primeira procura tematizar a musica configurada no mundo modal, e a segunda ligada ao mundo tonal

 

 1 A musica  no mundo tonal

Nas sociedades arcaicas a ideia de tempo é coordenada por um modelo de pensamento circular onde é demonstrada  a visão de mundo compreendida  pela unidade entre o homem, o mundo e o cosmos. Esta ligada à ideia de tempo, o recomeçar, repetir. Nestas culturas a visão de mundo que predomina é  aquela que prima pelo ritual da repetição como base para a salvação. Aqui entra o papel do ritual como meio onde o homem pode ter acesso ao “ato primordial”, ao momento de quando tudo foi criado. No fundo é a necessidade que o homem tem de se eternizar e recomeçar e, para tal é necessário mergulhar  no “tempo sagrado”.

O homem arcaico sempre teve a busca pela eternização, e nisso se coloca a importância do afastamento do  “tempo profano”, caracterizado como o lugar da ação dos homens, espaço dos infortúnios como a morte, sofrimento. Deve então o homem assumir o “tempo ritualístico” a fim de transcender sua realidade. Ao transcender a realidade o homem como que se religa com o “ato primordial” é realizada por meio do ritual, elemento muito característico das sociedades arcaicas. “É da possibilidade de repetir o ato primordial por intermédio de um ritual que depende a legitimidade de toda a ontologia arcaica. O ato primordial existe porque pode ser atualizado por meio do ritual” (TROMBETTA, 2008, p.217).  No ritual o homem é projetado a uma época mítica, a um momento    imemorial em que os arquétipos foram revelados. No tempo  ritualístico se rompe com  o profano fazendo com que toda a coletividade mergulhe  no único tempo  que vale a pena que é o ritual. Este tempo convida a relembrar o tempo imemorial, o tempo em que Javé desceu para salvar. Isso faz com que o chefe da tribo, por exemplo, incorpore o divino. No final do ritual o tempo se fecha e o homem retorna ao tempo profano

O tempo místico é caracterizado por ser um tempo sem história, sem tempo; e também como o momento em que toda comunidade, o coletivo entra junto na ritualidade. No fundo é a tentativa do homem em  se afastar do   “tempo profano” -  como um espécie de tempo de desprazer, lugar de sofrimento – para vencer o efêmero. É o desejo humano em querer compreender sua natureza da qual essa não é  explicada por si, se não pelo sobrenatural. E o acesso a este só é possível pela atividade ritualística.

 É nesse contexto que entra a importância do elemento musical contribuindo para que o homem possa entrar em contato com o divino. A sonoridade assume sua importância como sendo necessário as sociedades arcaicas para a sua reversibilidade, explicita repetição, ao que denominamos de  mundo modal. Esse mundo é considerado o tempo musical predominante desde os primórdios da humanidade até o final da Idade Média. A música nesse tempo adquire características, como a explicitação do pulso, definido pelo caráter   das  estruturas rítmicas e melódico -  harmônicas. Assim o pulso aparece basicamente de três formas: (a) como pulso explicito, onde a pulsação é flexível, leva em conta a dinâmica da repetição, imitando o sistema físico do corpo; (b) como pequena melodia repetida ou marcada, onde o tempo não se perde e  (c) como uma tônica fixa por sobre o qual dança a melodia, onde  a musica fica presa ao som.

No mundo modal a música não tem valor em si mesmo. Ela ganha sentido por estar vinculada a presença forte da coletividade, uma vez que todo o ato ritualístico deve estar envolvidos pelo  grupo. O elemento musical presente no  mundo modal deve  contribuir com o seu papel de produzir por meio da repetição um estado alterado de consciência, para que o homem consiga alcançar o  “tempo sagrado”, sendo que o som assume aqui uma característica de culto.  Deste modo, a música tem o papel de excitar o corpo, uma vez que é por este que o humano tem acesso ao divino. Diferentemente da Idade Média que compreendia a dimensão corporal como lugar do pecado, a música nesse período caracteriza-se por ser livre de pulso, onde o que se pretende é a promoção da alma como meio de acesso ao sobrenatural. Ao contrário do transe que é caracterizado pelo movimento corpóreo, se pretende a elevação do espírito para o acesso ao divino. O canto gregoriano relevante no período medieval é decorrente desta tentativa de negação do pulso. Deste modo, a música nas sociedades arcaicas acaba por estar associadas ao modo de pensamento e vivências destas comunidades, onde é explicita a sua visão de mundo sem ruptura. Há uma simbiose como as culturas se expressam com a ideia de tempo que a cultura adota. Sociedades modais são sociedades cíclicas, fechadas, onde a sua organização política  é cíclica.

2 A musica no  mundo tonal

  Com o inicio da modernidade ocorre a passagem do feudalismo para o capitalismo. Nisso houve a ascensão da burguesia, e nesse período de transição para a modernidade as histórias de “pacto com o diabo” passa a aparecer com freqüência o que destacamos a literatura faustica. O termo diabo vem de diabulus, que quer dizer ruptura. A modernidade nasce com esta pretensão em oposição às sociedades arcaicas. Para a nova base econômica que se estava constituindo é necessário haver a ruptura para que esse possa se desenvolver.

Na Idade Média o diabulus era representado pela figura do trínoto, como significado da dissonância. As músicas sacras compostas para o ato litúrgico estavam sofrendo predominância das polifonias das vozes, onde ela estava contaminada pelas semibreves e mínimas e “pervertida” por melodias seculares, o que revelava a presença do trínoto (ruptura), no canto gregoriano. O diabulus in musica, jamais poderia ser parte integrante da musica litúrgica, uma vez que ele na cosmovisão medieval é visto como a figura do mal, da ruptura.

Porém, “a polifonia que se desenvolve na Idade Média entre os séculos IX e XV, marcada pela trama simultaneizada das vozes, desencadeará uma questão nuclear: como lidar com a dissonância?” (TROMBETTA, 2008, p.221) É o início de um novo período denominado de mundo tonal. Aqui o diabulus  ganhara relevância, baseado nas trocas entre tensão e resolução. Com o surgimento da modernidade e a racionalização do mundo, o homem assume uma postura onde tem seus medos diminuídos em relação ao sobrenatural. Ocorre o rompimento com o mundo modal e, consequentemente, com a ideia de visão de mundo cíclica.  Este novo contexto também incide sobre a arte. A música e som passam a ser racionalizados com a ideia da metrificação. O autor da musica passa a colocar nela os valores que pretende, e ao mesmo tempo hierarquizá-los, portanto, passa a controlar a própria musica.

Com o desenvolvimento do capitalismo e da ciência  moderna nasce o espírito do progresso   acompanhados pela dinâmica da tensão/resolução. A musica tonal passa também a incorporar esta dinâmica. Um exemplo, é a sonata como uma macroestrutura  constante de três   movimentos, guiados pela dialética de  repouso, estrutura e resolusão. Ou seja, no mundo tonal a cada vez mais um apelo ao diabólico, a dissonância, nesse movimento de ruptura e resolução.  Essa dinâmica instaurada  no mundo tonal, é a revelação da confiança do homem em si mesmo, dando a ideia de poder estar afastado do “tempo  sagrado” como resolução das suas angustias, no qual na modernidade pelo processo de desenvolvimento racional ele mesmo se vê capaz de resolver as rupturas. Contrária as culturas arcaicas ocorre a substituição do coletivo pelo individual. Para o homem não há mais sentido numa unidade primordial, uma vez que tudo torna-se muito subjetivo. A figura do burguês revela esta nova visão de mundo. Este tem em si o espírito do progresso e, portanto,  a necessidade da ruptura. É por ter consciência de que não há retorno no tempo é que o burguês deve  prover-se de terras para garantir o seu futuro. Sabe que deve investir no aqui e no agora tendo em mente a linearidade do tempo.

 

Conclusão

A música como explicitação das diferentes formas de vivencia humana adquiridas  revela o modo  de compreensão do mundo dado por cada sociedade num período especifico. Num primeiro momento a música adquire valor de culto servindo as atividades ritualísticas no momento em que ocorre o estado alterado de consciência. A necessidade dos rituais, elemento presente nas sociedades arcaicas, revela o desejo do humano em tentar compreender a própria natureza, sendo que esta não é explicada por si mesma se não pelo sobrenatural.  Com a ascensão da modernidade, a musica mostra o homem destituído da necessidade do “tempo sagrado”, pois com o desenvolvimento da ciência moderna, não precisa mais recorrer aos ritualismos como forma de compreender o natural, cabendo à ciência cumprir com esse papel. Nisto o homem passou a confiar mais em si mesmo, e a música nesse período passou a ser  explicitação dessa forma de compreensão racional das coisas.

 

REFERÊNCIAS

TROMBETTA, Gerson. O circulo e a flecha: representações do tempo no desenvolvimento da  música. História: Debates e tendências. Passo Fundo, v.8, n.1, p.215 -  225, publ. No 1º sem. 2009.

 


[1] Acadêmico de Filosofia, UPF; Professor de Filosofia e Sociologia;

 


Autor: Cleverson Alves


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