Viver e não ter a vergonha de ser feliz



Papai chegou em casa naquela tarde-noite feliz da vida; não era para menos, pois tinha comprado um novo aparelho de som. O ano era 1983, então “aparelho de som” daquela época significava um trambolho grande, com várias partes ou módulos separados (toca-discos, toca-fitas, rádio AM/FM, grandes caixas de som) que, com a ajuda de muitos e longos fios, uniam-se e trabalhavam juntos para nos dar o melhor da música (se vc está sentindo falta do módulo toca-cd’s esqueça... naquele tempo não havia nem o conceito de compact disc...)!! Bom, mas essa nova aquisição de meu pai era mais ou menos um dos top de linha que havia à época então, para protegê-la de agentes externos (leia-se os meninos curiosos que viviam naquela casa, portanto perambulavam perigosamente perto do local onde iria ser instalado a parafernália) ele teve uma maravilhosa idéia: construiu, com suas próprias mãos, uma fortaleza para guardar de maneira muito segura seu precioso bem. Era uma imensa caixa horizontal de madeira maciça, um baú, com compartimentos para os vários módulos e seus fios e com uma grande tampa igualmente firme que vinha com um gigantesco cadeado de ferro que, quando trancado, só com a única chave existente se abria. Quero aqui fazer um comentário: esse fato que eu estou narrando se passou, como o leitor já percebeu, há quase trinta anos; hoje o aparelho de som não existe mais, mas o imenso baú e seu cadeado assustador se encontram em minha casa, em um quarto, já sem os compartimentos originais e que hoje minha esposa usa para guardar roupas limpas que necessitam serem passadas (e cabe muuuita coisa). Voltando ao que interessa: a única, ou as únicas partes que ficavam de fora desse baú eram as caixas de som, porque, na mente de me pai “como os meninos poderiam danificar de alguma maneira conhecida meras caixas de som?” Não havia como!! Portanto tudo estava perfeitamente seguro.

Morávamos no bairro Bandeirantes, na Pampulha, à época um lugar muito longe, cheio de imensos vazios, muito mato, ou seja, quase ninguém morava por lá. Nossa casa era bem grande e possuía no meio da sala uma escada de ferro em espiral que levava a um mesanino; neste mesanino é que foi instalado o aparelho de som de papai. Não me pergunte como a imensa e pesada caixa de madeira (a partir de agora, denominado O Baú) foi parar lá em cima, porque, sinceramente eu não me lembro! Na casa tinham quatro quartos, sendo uma suíte (de meus pais), o quarto de meu irmão, um quarto onde dormíamos meu primo (que morava com a gente) e eu e, por fim, outro quarto onde ficava uma TV e outras bugigangas de minha mãe. Havia, claro, um banheiro para os meninos. Separando a parte íntima do resto da casa estava uma porta que era religiosamente trancada toda e toda noite.

A vida seguia como tinha que seguir, as crianças estudando, jogando bola, nadando, meu pai trabalhando o dia inteiro e minha mãe cursando psicologia na FUMEC e cuidando de todo o resto.

Uma bela noite de verão (não sei bem se estávamos no verão, mas me pareceu bonito começar o parágrafo com essa frase) fomos todos dormir e, como de costume, a “porta da sala” foi devidamente trancada. Já era tarde da noite, não me lembro exatamente a hora, quando de repente um som altíssimo começou a tocar, acordando todos na casa (e provavelmente teria acordado vizinhos, caso morasse mais alguém por perto). Meu pai começou a gritar com minha mãe: “Mariiiaaaa, que isso??? Olha o que esses meninos estão fazendo!!! Não é possível, a essa hora ouvir música nessa altura???” No meio desses gritos, pude ouvir com clareza (também, naqueles decibéis...) que o que tocava era “O que é o que é?”, música do saudoso Gonzaguinha, sucesso à época; alguns de vocês devem se lembrar dela: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar e cantar, na beleza de ser um eterno aprendiz...” muito bonita. Pois bem, acordamos assustados com o barulho e  fomos todos ver o que estava acontecendo; quando saímos de nossos quartos, meu pai percebeu que todos estávamos na parte íntima da casa, ou seja, não poderia haver ninguém “ouvindo música naquela altura àquela hora”!  Para piorar o já tão ruim e estranho acontecimento, quando meu pai foi verificar a situação, se deparou com a “porta da sala” trancada. Eu acho que no calor do momento (também conhecido como desespero), ele nem se deu conta desse fato; lá foi ele na frente e o resto atrás para ver o que estava acontecendo.

Chegando lá em cima (nunca vi ninguém subir a escada em espiral com tanta rapidez) e olhando para O Baú, meu pai viu que o mesmo estava trancado... e que ele, papai, não tinha levado a chave mestra. Sem pensar nesse muito estranho fato, ele foi buscá-la e voltou correndo; nesse meio tempo, a música continuava berrando em nossos ouvidos.

Mas lá estava papai com sua chave mestra para abrir O Baú e acabar com aquela barulhada ou “zoeira” como falávamos na época. Destrancado o cadeado, aberto a tampa, observamos que o rádio estava ligado; meu pai mais que depressa tratou de apertar o botão off  (lembrem-se: estávamos nos anos 80, portanto nada digital, nada de controle remoto...) e... nada aconteceu; Gonzaguinha continuava berrando à plenos pulmões como a vida é maravilhosa e boa de ser vivida. Queixos foram abaixo naquele instante e meu pai, muito “gentilmente”, começou a apertar off  sem parar, numa inútil tentativa de calar o filho de Luiz Gonzaga. O leitor pode imaginar como nós, crianças pré-adolescentes, nos sentíamos vendo (e principalmente ouvindo) aquilo tudo. Realmente estávamos, digamos... desconfortáveis. Minha mãe não aparentava estar com medo, simplesmente demonstrava certa impaciência com a atitude de papai. Depois de martirizar o botão off  do rádio por alguns segundos, ele teve uma ideia genial, que “vai acabar com isso de uma vez por todas!!! Hahahaha!!!” Foi até a parte de trás dO Baú e simplesmente desconectou aquilo que dava vida ao seu aparelho de som: desligou a tomada!! E... NADA; continuávamos a ouvir a bela voz de Gonzaga Filho “soltando o verbo”. Era como se o rádio tivesse vida própria e teimasse em continuar ligado... aquilo deixou a todos estarrecidos; não compreendíamos como podia estar acontecendo! Ficamos imóveis, petrificados, nesta altura já apavorados e alguns de nós roendo as unhas (menos minha mãe, que mantinha a calma e me pareceu, até se divertia com o episódio).

Meu pai estava impotente, não havia mais o que fazer, ele esgotara suas geniais ideias para terminar o martírio musical; ficou apenas ali, parado, olhando o fio da tomada em sua mão, depois de ter apertado o botão que desliga o rádio inúmeras vezes. De repente a música chegou ao seu final e então o rádio desligou. Silêncio. Completo e ensurdecedor Silêncio. Não, minto; não estava totalmente silencioso o local; dava para ouvir nossos corações disparados, que teimavam em sair pelas nossas bocas e nossas respirações entrecortadas, como se tivéssemos acabado de participar de uma partida de futebol no Chopana (nome de um clube em frente à casa de meus pais, que freqüentávamos). Eu olhava para meu irmão, que olhava para o nosso primo que por sua vez olhava para mim todos com rostos lívidos, olhos arregalados ao máximo, escancarando o medo que sentíamos; meu pai nada disse, minha mãe também não; aliás, como já disse mais acima, ela era a única que estava tranqüila. Ainda ficamos algum tempo no mesanino, tentando entender ou achar uma explicação para o ocorrido. Depois de termos certeza de que não iríamos chegar a lugar nenhum, descemos, um grupo coeso de meninos, nos espremendo uns nos outros para não sermos surpreendidos e fomos dormir... nós, crianças, no mesmo quarto com a luz acesa.

No outro dia, depois de estarmos um pouco mais calmos, mamãe nos revelou o porquê do bizarro acontecimento: seu tio, muito querido, que havia morrido alguns dias atrás e gostava daquela música, sabendo que mamãe também gostava, nos fez uma visita e, à sua maneira, mostrou o quanto gostava, ou melhor, o quanto gosta de sua sobrinha predileta...  

FIM


Autor: Luiz Gustavo Barbosa Teixeira


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