Saudosista, eu?



 

Saudosista, eu?

 

Ao terminar a faculdade de medicina em Santa Maria, mudei pra Porto Alegre, para cursar especialização em psiquiatria pela UFRGS e fazer residência na Clínica Pinel. Foi uma mudança radical em minha vida. Depois de viver 22 anos com meus pais e irmão, vim morar sozinha e enfrentar uma situação desconhecida.

Pensava com constância em minha cidade e as saudades faziam ninho nas lembranças, servindo de gatilho para abrir um baú de variadas sensações.

            Que saudade das ruas alagadas depois das chuvas e das árvores que balançavam movidas pelo Vento Norte, tão característico. Saudade do cheiro das borrachas, lápis e mesas de madeira do colégio Santana, onde estudei desde os quatro anos. Sem falar no aroma das comidas que exalavam antes mesmo de entrar em casa, feitas pela minha mãe no fogão a lenha, que me aguardavam.

            Recordo o passado porque gosto de lembrar a tranqüilidade que reinava na cidade do interior. Assaltos? Raros. Colegas, amigos e família, com a certeza de que eram meus. Assim também inesquecíveis os passeios após as aulas, desfilando na chamada primeira quadra, onde os rapazes nos esperavam para o flerte tradicional. Aproveitavam para olhar nossas pernas, descobertas pelo vento, que levantava as saias.

            À tardinha nos reuníamos no coreto da praça, onde uma banda se exibia parecendo tocar só para mim. Lá, as brincadeiras de esconde-esconde, de ciranda e tantas outras infanto-juvenis faziam a nossa alegria. A televisão chegou bem mais tarde do que na capital. Tempos pobres em tecnologia e informática, mas o lazer valorizado em relações pessoais, prática de esportes, e muita conversa nos encontros familiares.

            Aqui, alertada para os riscos de assalto, tendo isso ocorrido comigo na primeira semana de residência, saindo da clínica onde fazia plantões. Casas e edifícios gradeados e com altos muros. As famílias trancadas com medo dos roubos, enquanto em Santa Maria, as pessoas ficavam de porta aberta, sentadas em cadeiras nas calçadas, reunindo-se os vizinhos para debater pontos de vista, e mesmo para fofocas.

            Sinto uma emoção ao escrever sobre o ontem de uma cidade, de seus lugares, dos conhecidos e familiares que não estão mais lá. Perco-me no passado, como muitas vezes o faço no presente.

            Deixando-me levar pelo saudosismo, trocaria todo o progresso e o conforto de uma capital, pela vida simples de um passado, nem tão distante. O ato de escrever sobre ele significa recriar. É uma forma que encontro de ficar em paz com o que terei pela frente e o que ficou para trás.

Saudosismo, uma atitude permanente que considera que o passado melhor, havendo mais sinceridade entre as pessoas, maior criatividade e muito mais segurança que no presente, movido pela globalização e pela cibernética.

            Só mudei de cidade. Continuo a mesma saudosista de sempre. Procuro deixar para trás o que deve ser deixado, mas levo em mim, tudo e todos que estiveram comigo. A conscientização implica em perdas e reencontros que ocorrem tantas vezes em nossas vidas.

            Saudosista, eu? Saudosista foi Fernando Pessoa com tanta fé no sebastianismo, em pleno século XX.

 

 


Autor: Themis Groisman Lopes


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