A livre iniciativa e a livre concorrência enquanto princípios da atividade empresarial



 

A LIVRE INICIATIVA E A LIVRE CONCORRÊNCIA ENQUANTO PRINCÍPIOS DA ATIVIDADE EMPRESARIAL*

A legitimação da livre iniciativa e da livre concorrência pela Intervenção Estatal.

 

 

 

Ilane Jucá Foncêca**

Jusélia Quadros de Abreu ***

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1 Contexto do princípio da livre iniciativa na Constituição Federal de 1988; 2 Livre concorrência e sua relação com a livre iniciativa; 3 Intervenção estatal; 3.1 Lei n° 8.884 de 11 de junho de 1994; Conclusão; Referências.

 

 

RESUMO

Analise dos os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência no âmbito da Constituição Federal de 1988. Relacioná-los à atividade empresarial e ao princípio da dignidade humana, bem como entender de que forma a aparente contradição entre liberdade de concorrência e livre iniciativa podem ser legitimadas a partir da intervenção do Estado na economia e na atividade empresarial. Além de estudar a forma e os mecanismos de atuação do Estado na economia.

 

PALAVRAS-CHAVE

Livre iniciativa. Livre concorrência. Intervenção estatal. Dignidade da pessoa humana.

 

Introdução

O interesse pelo desenvolvimento deste tema – legitimação da livre iniciativa e da livre concorrência pela intervenção estatal – decorre da aparente contradição existente entre intervenção e liberdade da atividade empresarial.

De acordo com o professor Fábio Ulhoa (2006, p. 186), o perfil desenhado pela Constituição de 1988 para a ordem econômica brasileira é de natureza neoliberal. Em função da pluralidade de liberalismos ao longo da história, ele conceitua como neoliberal “o modelo econômico definido na constituição que se funda na livre iniciativa, mas consagra também outros valores com os quais aquela deve se compatibilizar.”

Os princípios elencados no art. 170 da CF, como definidores da ordem econômica, aliados à valorização do trabalho, tentam demonstrar que a livre iniciativa é apenas mais um elemento estrutural da economia. Ao delinear esse perfil da ordem econômica assegurando aos particulares o direito à livre iniciativa e à livre concorrência parece, ao mesmo tempo, contraditório limitar a exploração da atividade empresarial com a afirmação de valores ausentes no meio empresariado.

 

1 Contexto do princípio da livre iniciativa na Constituição Federal de 1988

A ordem econômica constitucional como a conhecemos hoje, é produto do confronto de ideais, interesses e ideologias. É produto histórico de lutas por privilégios e superação da antiga ordem, seja ela feudal ou mercantilista. A Carta Constitucional de 1988 tem acentuada ênfase no aspecto social, a fim de dar ao cidadão maior valorização e de ressaltar o novo papel desempenhado pelo Estado. Para garantir a todos existência digna conforme os ditames da justiça social, alguns direitos foram transformados em princípios dentro da Constituição. Faz-se aqui um estudo dos princípios da livre iniciativa, da livre concorrência e da dignidade da pessoa humana, porque as normas constitucionais devem ser analisadas em sua completude no conjunto de princípios encerrados na constituição.

“A dignidade da pessoa humana, enquanto princípio constitui, ao lado do direito à vida, o núcleo essencial dos direitos humanos. [...] Ela fundamenta e confere unidade não apenas aos direitos fundamentais [...] mas também à organização econômica.” (GRAU, 1997, p. 217.) Assim sendo, o princípio supracitado é o fundamento da República Federativa do Brasil e o fim da ordem econômica. Por isso, os princípios da livre iniciativa e livre concorrência devem ser analisados como instrumentos da atividade empresarial, mas que visam à realização da existência digna.

A Constituição Federal enuncia em seu artigo 1º, IV, o valor social da livre concorrência como fundamento da República Federativa do Brasil. Em seu artigo 170, caput, afirma que a ordem econômica deve estar fundada na livre iniciativa, e ainda no mesmo artigo, IV refere-se à livre iniciativa como um dos princípios da ordem econômica.

É importante ressaltar que a livre iniciativa não está restrita à liberdade econômica, pois sob outros aspectos pode-se visualizar o princípio como algo além da afirmação do capitalismo. Em sua perspectiva substancial, a liberdade é definida por Eros Grau (ob. cit., p. 223) como “sensibilidade e acessibilidade a alternativas de conduta e de resultado.” Sob a perspectiva institucional, o que determina a ordem jurídica é o seu caráter jurídico.

Segundo o entendimento de José Afonso da Silva (2005, p. 794):

 

A liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que ‘liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidade de submeter-se às limitações postas pelo mesmo.’ É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal.

 

Também o professor Eros Grau (1997, p. 224) insiste em que a liberdade de iniciativa econômica não se identifica apenas com a liberdade de empresa, pois, segundo ele, tal liberdade abrange todas as formas de produção individuais ou coletivas. E dentre as formas de iniciativa econômica destaca além da iniciativa privada, a iniciativa cooperativa, a iniciativa autogestionária e a iniciativa pública.

Percebe-se que além de remontar-se à liberdade de empresa, a livre iniciativa remontar à expressão do trabalho. Ela não se limita ao campo do empresário, mas também não está no rol dos direito fundamentais. Isso porque livre iniciativa é apenas um dos ramos da liberdade. É um ramo que valoriza o trabalho e a criatividade humana. Sobre o assunto, Tércio Sampaio Ferraz Júnior fez suas ponderações (apud GRAU, op.cit., p. 228) :

 

Nestes termos, o art. 170, ao proclamar a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como fundamentos da ordem econômica está nelas reconhecendo a sua base, aquilo sobre o que ela se constrói, ao mesmo tempo sua conditio per quam e conditio sine qua non, os fatores sem os quais a ordem reconhecida deixa de sê-lo, passa a ser outra, diferente, constitucionalmente inaceitável. Particularmente a afirmação da livre iniciativa, que mais de perto nos interessa neste passo, ao ser estabelecida como fundamento, aponta para uma ordem econômica reconhecida então como contingente. Afirmar a livre iniciativa como base é reconhecer na liberdade um dos fatores estruturais da ordem, é afirmar a autonomia empreendedora do homem na conformação da atividade econômica, aceitando a sua intrínseca contingência e fragilidade; é preferir, assim, uma ordem aberta ao fracasso a uma ‘estabilidade’ supostamente certa e eficiente. Afirma-se, pois, que a estrutura da ordem está centrada na atividade das pessoas e dos grupos e não na atividade do Estado. Isto não significa, porém, uma ordem do ‘laissez faire’, posto que a livre iniciativa se conjuga com a valorização do trabalho humano, mas a liberdade, como fundamento, pertence a ambos. Na iniciativa, em termos de liberdade negativa, da ausência de impedimentos e da expansão da própria criatividade. Na valorização do trabalho humano, em termos de liberdade positiva, de participação sem alienações na construção da riqueza econômica. Não há, pois, propriamente, um sentido absoluto e ilimitado na livre iniciativa, que por isso não exclui a atividade normativa e reguladora do Estado. Mas há ilimitação no sentido de principiar a atividade econômica, de espontaneidade humana na produção de algo novo, de começar algo que não estava antes. Esta espontaneidade, base da produção da riqueza, é o fator estrutural que não pode ser negado pelo Estado. Se, ao fazê-lo, o Estado a bloqueia e impede, não está intervindo, no sentido de normar e regular, mas está dirigindo e, com isso, substituindo-se a ela na estrutura fundamental do mercado.

 

 

2 A livre concorrência e sua relação com a livre iniciativa

Segundo João Bosco (2007, p. 128-129) a livre concorrência na Constituição brasileira representa a afirmação de uma opção pelo regime de economia de mercado. Uma vez que tal postura ideológica é assumida a Constituição adota como princípio “a mola básica que rege aquele tipo de organização da economia”. A liberdade de concorrência é garantida como forma de se chegar ao equilíbrio, “não mais aquele atomístico do liberalismo tradicional, mas um equilíbrio entre os grandes grupos e um direito de estar no mercado também para as pequenas empresas.”

O princípio da livre concorrência nada mais é que um complemento da livre iniciativa. A livre concorrência enquanto “livre jogo das forças de mercado, na disputa da clientela” supõe desigualdades ao final da competição, mas parte do pressuposto de igualdade jurídico formal. (GRAU, op. cit., p.230)

Nos dizeres de Miguel Reale Júnior (apud GRAU, op. cit., p. 231): “a desigualdade das empresas, dos agentes econômicos, é a característica de uma ordem econômica fundada na livre iniciativa e que se processa por meio da livre concorrência”; “a desigualdade é inafastável em um regime de livre iniciativa, e gera a rivalidade, a livre concorrência”; “A livre concorrência, portanto, só sobrevive em uma economia sem igualdades.”

A livre concorrência, segundo José Afonso da Silva, “é uma manifestação da liberdade de iniciativa, e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, a eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (Art. 173, §4°). A situação de abuso é definida quando o poder econômico passa a ser usado de forma a impedir a iniciativa dos outros (ação no campo econômico) ou quando é usada para o aumento arbitrário de lucros pelo detentor do poder.

Pelo exposto, pode-se deduzir que a livre concorrência enquanto desdobramento da livre iniciativa tem como fim a tutela do sistema de mercado e em âmbito geral assegurar a dignidade da pessoa humana. Tércio Sampaio Ferraz Júnior expõe diversos benefícios que a livre concorrência trás dentro da sociedade (apud GRAU, op. cit., p. 232.):

 

A livre concorrência de que fala a atual Constituição como um dos princípios da ordem econômica (art. 170, IV) não é a do mercado concorrencial oitocentista de estrutura atomística e fluida, isto é, exigência estrita de pluralidade de agentes e influência isolada e dominadora de um ou uns sobre outros. Trata-se, modernamente, de um processo comportamental competitivo que admite gradações tanto de pluralidade quanto de fluidez. É este elemento comportamental – a competitividade – que define a livre concorrência. A competitividade exige, por sua vez, descentralização de coordenação como base da formação dos preços, o que supõe livre iniciativa e apropriação privada dos bens de produção. Neste sentido, a livre concorrência é forma de tutela do consumidor, na medida em que a competitividade induz a uma distribuição de recursos a mais baixo preço. De um ponto de vista político, a livre concorrência é garantia de oportunidades iguais a todos os agentes, ou seja, é uma forma de desconcentração de poder. Por fim, de um ângulo social, a competitividade deve gerar extratos intermediários entre grandes e pequenos agentes econômicos, como garantia de uma sociedade mais equilibrada.

 

 

A fim de garantir a livre concorrência, partindo-se do pressuposto da livre iniciativa, e tutelar o sistema evitando desvios e proteger a dignidade da pessoa humana é que o Estado intervém na economia por meio da lei nacional antitruste: Lei nº 8884/94.

 

3 Intervenção Estatal

Em verdade não há contradição entre os princípios da livre iniciativa e livre concorrência e a intervenção do Estado brasileiro no domínio econômico, como nos fala o professor Eros Grau:

Deveras, não há oposição entre o principio da livre concorrência e aquele que se oculta sob a norma do §4° do art. 173 do texto Constitucional, principio latente, que se expressa como princípio da repressão dos abusos do poder econômico e, em verdade – porque dele é fragmento – compõe-se no primeiro. É que o poder econômico é a regra não a excessão.

 

A intervenção se dá na medida em que tais princípios são ameaçados. Ela é determinada pelos artigos 173 a 177 e 174 da Constituição Federal. José Afonso da Silva (2005, p. 807) faz uma distinção entre as duas modalidades de atuação: a participação e a intervenção. A primeira caracteriza o Estado administrador de atividades econômicas, limitando a exploração direta de atividade econômica, enquanto a outra o classifica como agente normativo e regulador cujas funções são: fiscalizar, incentivar e planejar.

A fim de expor a mudança de direcionamento no texto constitucional, João Bosco (2007, p.137) confronta os textos do art. 163 da Constituição de 1967/69 e do art. 173 da Constituição de 1988 que serão expostos aqui a título de apreciação:

Art. 163. São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada industria ou atividade mediante lei federal, quando indispensável por motivo de segurança nacional ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficácia um regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.

Art.173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

 

No primeiro caso havia uma faculdade aberta ao Estado. No texto constitucional vigente hoje existe uma proibição que permite exceções. De acordo com o art. 174 da CF, o Estado deve exercer sua atividade de agente normativo e regulador na forma da lei. No entanto, intervenções como a repressão ao poder do abuso econômico são feitas mediante ato administrativo (sempre no termos da lei). No caso do art. 173, §4°, o ato do Conselho Administrativo da Defesa Econômica (CADE) nos termos da Lei 8.884/94.

 

3.1 Lei n° 8884 de 11 de junho de 1994

 

Em seu artigo 1°, a lei define a amplitude de seu conteúdo, qual seja a preservação do modo de produção capitalista.

 

Art. 1°. Esta lei dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica, orientada pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico.

Parágrafo único. A coletividade á a titular dos bens jurídicos protegidos por esta lei.

 

As regras inseridas nessa lei conferem, segundo Eros Grau, concreção aos princípios nela inseridos, em coerência com a ideologia constitucional da Constituição de 1988. Tais princípios coexistem harmonicamente entre si adequando-se mutuamente. Por isso, Mário Luis Elia Júnior defende em sua peça O caráter instrumental da livre iniciativa e da livre concorrência, que a regulação da concorrência no Brasil (feita pelo antitruste) enquanto forma de proteção da livre iniciativa e da livre concorrência são instrumentos do Estado para garantir a dignidade da pessoa humana, conforme os ditames sociais da justiça social.

É importante relembrar que o Estado só intervirá na economia quando alguma prática empresarial infringir a ordem econômica, causando prejuízo à livre concorrência ou à livre iniciativa, no sentido de dominação de mercado, eliminação de concorrência ou aumento arbitrário de lucros.

A infração da ordem econômica está prevista no art. 20 da Lei nº 8.884/94, como atos de qualquer natureza que possam vir a limitar, falsear ou prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa.

 

Conclusão

 

O princípio da livre iniciativa, institucionalizado na Constituição Federal de 1988, assegura a todos o direito de livre participação em atividades empresariais. Ele é um incentivo à atividade criativa do ser humano, tendo como objetivo primeiro a valorização do trabalho, uma vez que vivemos em uma sociedade capitalista. A importância desse princípio se dá também fora do âmbito da atividade comercial: é uma forma de garantir a dignidade da pessoa humana.

A livre concorrência é um complemento do princípio da dignidade humana. Uma vez que todos têm o direito de exercer algum tipo de atividade, são livres para fazer concorrência, desde que não seja esta ilícita (concorrência desleal ou infração da ordem econômica). A concorrência saudável dinamiza o mercado e valoriza o consumidor.

Ao contrário da Constituição anterior, Carta Magna de 1988 não faculta a intervenção estatal na economia. Esta só poderá ser feita em caráter de exceção através de lei. O CADE tem liberdade para agir nos termos da lei antitruste apenas quando houver infração da ordem econômica. Assim sendo, a intervenção estatal se dá apenas para legitimar os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência a fim de garantir a dignidade da pessoa humana.

 

 

Referências

 

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 1. 10 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

ELIA JUNIOR, Mario Luiz. O caráter instrumental dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1183, 27 set. 2006. Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2008.

FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 5. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1998.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25 ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

 

 

 

 

* Paper apresentado à disciplina de Teoria do Direito Empresarial para obtenção da 2ª nota.

** Aluna do 3º período do curso de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB.

*** Aluna do 3º período de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco - UNDB. Graduada em Ciências Exatas com habilitação em Matemática pela Universidade Estadual do Maranhão - UEMA.


Autor: Jusélia Quadros De Abreu


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