Fissura do discurso feminista na literatura: uma breve reflexão



Fissura do discurso feminista na literatura

    Estando um pouco mais familiarizado com a crítica feminista, entendo que tal abordagem da literatura corre o sério risco de endossar o discurso que ela mesma condena. Esboço abaixo uma breve reflexão como tentativa de reforçar esse argumento.

   Compreendo o feminismo na literatura como o esforço consciente da autora ou autor de expor na obra literária as lutas da mulher por igualdade, aceitação como ser humano pleno, pelo resgate da opressão dos estereótipos de gênero. A proposta maior do feminismo na literatura, a meu ver, é tornar visível na ficção a repressão da mulher, olhando para as personagens femininas pelas lentes do discurso de igualdade de gêneros.

   É fato inconteste que a mulher tem sido subjugada de diversas maneiras no curso dos séculos, e são muitas as obras literárias que explicitamente mostram essa história de opressão. Contudo, o que o discurso feminista faz é tratar esse fato como se fosse um fenômeno isolado na sociedade, uma forma de desigualdade sem qualquer relação com as tantas outras formas de injustiça perpetuadas no mundo.  

   A opressão da mulher está completamente atrelada a fatores políticos, porém a crítica feminista parece ignorar tal relação e acaba dando ênfase a questões meramente pessoais relacionadas a personagens de uma trama. Se considerarmos, por exemplo, a leitura que Johanna M. Smith faz de Heart of Darkness, veremos que uma importância muito maior é dada à maneira como as mulheres são retratadas na história de Conrad do que às forças políticas atuantes na sociedade da época que certamente motivaram o autor a retratar as personagens daquela maneira.

   No meu ponto de vista, o que deve ser denunciado é a causa política da injustiça e não exemplos isolados desta. Não faz sentido mostrar como as mulheres são tratadas injustamente se as raízes desse tratamento permanecem intocadas. Penso que Johanna Smith abordou muito escassamente a brutalidade imperialista e patriarcal na história de Conrad e acabou focalizando sua atenção nos episódios do silenciamento da lavadeira e da traição sofrida pela Pretendida do Sr. Kurtz.    

   Uma crítica feminista que enfatiza conseqüências e não causas, com certeza, não acrescenta muito à luta pela igualdade de gêneros, tornando-se um esforço meramente expositivo e não revolucionário, o que, pelo menos a meu ver, constitui a grande fissura dessa crítica. Uma vez que a tirania contra a mulher está profundamente relacionada a poderes políticos, o debate feminista tem por obrigação denunciar, de forma clara, o sistema político perpetuador de injustiças e não apenas abordar o drama pessoal de personagens específicas de uma obra.

                                    Referência

 Smith, Johanna M. “ ‘Too Beautiful Altogether’: Patriarchal Ideology  in Heart of Darkness. ” In  Heart of Darkness: A Case Study in Contemporary Criticism, edited by Ross Murfin.New York:St. Martin’s Press, 1989.

 

Download do artigo
Autor: Osvando De Melo Marques


Artigos Relacionados


Uma Breve Reflexão Sobre Intenção, Ideologia E Psique Na Literatura

Politica De Gênero E Legislativo Pernambucano: Mulheres Na Política Pernambucana E A Incorporação De Gênero Nas Políticas Públicas De Esfera Local.

Literatura De Cordel E Suas Contribuições Para O Ensino De Leitura Na Escola

Uma Visão Ideológica Das Histórias Em Quadrinhos Através Da Análise Do Discurso

Cruzando História E Literatura

Disputas étnicas Nas Películas Fílmicas

A Identidade Em Questão Na Literatura De José Euclides Neto - A Enxada E A Mulher Que Venceu O Próprio Destino (1996)