Nas portas do bicentenário da visita do naturalista Auguste Saint-hilaire á Serra (ES)



NAS PORTAS DO BICENTENÁRIO DA VISITA DO NATURALISTA AUGUSTE SAINT-HILAIRE Á SERRA (ES): SEU LEGADO ESCRITO DO PATRIMÔNIO NATURAL E SÓCIO-CULTURAL (1818-2018)

Renato Andreão

RESUMO

Partindo do pressuposto do desenvolvimento da cidadania, destaca-se a importância do legado escrito do naturalista Auguste Saint-Hilaire de duzentos anos atrás para os tempos atuais, especificamente na cidade de Serra, no Espírito Santo. A descrição de toda a anatomia selvagem do município, seus atrativos naturais e culturais e, sobretudo, a realidade sócio-política da região. A relação de seus personagens; índios, jesuítas, capitães de vilarejos, luso-brasileiros. A contribuição geral de seus relatos para os tempos atuais na cidade.    

Palavras-chave: Município de Serra (ES) há duzentos anos; Escritos de Saint-Hilaire; Legado para a sociedade atual.  

 ABSTRACT

Assuming the development of citizenship, currently we give the necessary importance of the written legacy who was wrote by naturalist Auguste Saint-Hilaire about two hundred years ago, specifically for the Serra city in Espirito Santo State. The description of the entire wild anatomy, the natural and cultural attractions of the city, above all, the socio-political realities of the region in that time. The relationship of the city characters; Indians, Jesuits, captains of villages and Luso-Brazilians. The contribution of his scripts to the present days in the city.

Keywords: Serra City (ES) two hundred years ago, Writings of Saint-Hilaire; legacy for today's society.

 

INTRODUÇÃO

          Vasto e naturalmente atraente, o território brasileiro foi alvo de intensa exploração comercial desde o período colonial. Não apenas despertou a cobiça de europeus ávidos pelas riquezas naturais da região, mas também trouxe pesquisadores cujo legado escrito tem imensa importância acadêmica. Um deles é o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire (1779 – 1853).

          Tenaz, ele percorreu aproximadamente 17 mil quilômetros analisando a flora e aspectos sócio-culturais da população. Esse botânico cruzou o Espírito Santo há cerca de 200 anos e sua passagem pelo atual município de Serra gerou um dos escassos relatos sobre a população e a paisagem da cidade no inicio do século XIX.  

          Ricos em conteúdo, atentos a realidade da época, os textos de Saint-Hilaire sobre o município que hoje é o maior pólo industrial do Estado traz uma inegável contribuição. Sobretudo se pensarmos nesse conteúdo sob uma ótica educacional.

          As visitas técnicas necessitam desse tipo de fonte bibliográfica para fundamentar o argumento do professor e dar sentido do porque devemos conhecer e preservar lugares como a montanha de Mestre Álvaro e a região da igreja de Reis Magos em Nova Almeida.

          Esses dois cartões portais de Serra são e devem ser roteiro de visita técnica e necessitam ser de conhecimento público dos moradores. Missão essa que o facilitador deve se debruçar e fazer acontecer em sala de aula.

 

NAS PORTAS DO BICENTENÁRIO DA VISITA DO NATURALISTA AUGUSTE SAINT-HILAIRE Á SERRA (ES): SEU LEGADO ESCRITO DO PATRIMÔNIO NATURAL E SÓCIO-CULTURAL (1818-2018)

           Voltando dois séculos no tempo e o município de Serra era basicamente selvagem, mas já começava a ganhar fortes contornos agrícolas. Algumas casas de luso-brasileiros dividiam espaço com as choupanas dos índios nativos e o trabalho secular dos Jesuítas que vieram de Portugal catequizar essa população autóctone havia deixado seqüelas. Neste contexto, o naturalista francês Auguste Saint-Hilaire percorreu a cidade vindo de Vitória, atraído pela vigorosa montanha Mestre Álvaro, e na sequência descortinou todo o cenário da civilização que aqui vivia. Esses textos são de valiosa referência para o historiador moderno coordenar visitas técnicas nos patrimônios naturais e culturais serranos.      

          Sob um viés sócio-político, notamos nas linhas escritas pelo botânico, que a relação de antipatia e desconfiança dos populares em relação aos governantes dos dias atuais, não cabia naquele tempo. A palavra do então Ministro da Província, Tomás Antonio de Vila Nova e Portugal, produzia um efeito moral instantâneo.

          “Chegado a Freguesia da Serra, apresentei-me em casa de um dos seus principais moradores, que era capitão de milícia, e pedi-lhe pousada: recusou-na, dizendo não ter lugar para alojar-me, e enviou um escravo para indicar-me uma casa na vizinhança. Durante a ausência do emissário, ficamos a conversar e forcei uma oportunidade para exibir-lhe minha portaria. O respeito dos brasileiros por seus superiores era tal, então, que a simples vista da assinatura do Ministro de Estado Tomás Antônio de Vila Nova e Portugal produziu o efeito de uma palavra mágica. Aí, a casa me foi oferecida, estava ás minhas ordens; ele desejava hospedar-me definitivamente” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 53)  

            Inicialmente, seu desejo de conhecer a Serra era impulsionado pela visão da montanha Mestre Álvaro, hoje o principal cartão postal do município e a maior elevação litorânea da costa capixaba: 833 metros de altitude. Com aspecto majestoso, é um maciço granítico que serviu de base referencial para navegações e é citado em trabalhos cartográficos do século XVI. Devido a caça freqüente e excessiva desde os primeiros colonizadores, a presença da fauna se deteriorou. A ação do colonizador também modificou a anatomia de alguns trechos do Mestre Álvaro, especialmente a represa - ou a popular “piscina natural” - que construíram nas últimas décadas onde havia uma cascata. O naturalista destacou as duas situações quando subiu na montanha.

          “Subimos acompanhando a trilha de caçadores que têm o costume de percorrer esses lugares e chegamos ao pé de uma cascata, onde a água se precipitava..” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 54)

          Quem subir a montanha nos dias atuais perceberá a presença tímida da fauna. São escassos os animais que podem ser vistos com facilidade na região, seja nas trilhas ou até mesmo dentro de mata selvagem. O espetáculo da natureza animal no Mestre Álvaro se restringe aos pássaros. Todos os quadrúpedes foram praticamente extintos. O próprio Saint-Hilaire (1936) conta em seu diário que encontrou inúmeras armadilhas em solo para capturar mamíferos. Principalmente alçapões, que eram largamente utilizados. 

          A abundância e variedade vegetal existente na ocasião e narrada pelo botânico, sucumbiu diante da ação do homem. Hoje, segundo a Prefeitura Municipal da Serra (2011), o Mestre Álvaro preserva uma das últimas áreas de mata atlântica de altitude do País. Algo inimaginável aos olhos do francês, que reportou a seguinte descrição das trilhas:

          “..arvoredos entrelaçados, impediam a infiltração mais ampla de raios de sol e, por todos os cantos, eu encontrava, á sombra, regatos de águas cristalinas” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 54)

          Uma percepção que se distancia bastante da realidade atual, onde encontramos lixo jogado ao longo do caminho que conduz o visitante pelas trilhas. Há cancelas quebradas, sinais abrangentes de desmatamento, e ausência de placas que sinalizam e reforçam a idéia de preservação deste patrimônio natural.    

           Frequentemente ativistas culturais encontram vestígios de habitantes primitivos que viveram nos arredores do Mestre Álvaro em épocas remotas e até mesmo no período colonial. São ossos, jarros, utensílios de corte etc. Tudo isso é achado de maneira simples, sem nenhum trabalho técnico de arqueologia para escavar. Mesmo assim, é exatamente esse tipo de elemento encontrado no local que fundamenta e dá imenso respaldo ao historiador. Ele precisa transmitir a seus alunos as razões de se conhecer e proteger esse santuário ecológico de uma das cidades que mais cresceram economicamente no Estado do Espírito Santo nesta virada de século.

          Para além do aspecto natural, o botânico, então com 37 anos, deu sequência a sua viagem analisando a estrutura física e social que os habitantes viviam. Passando pela aldeia de Jacaraípe e chegando ao atual bairro de Nova Almeida, ele descreveu em detalhes a situação dos moradores da então “Vila Nova”, “Vila de Almeida” ou “Vila de Reis Magos” como era popularmente chamada.

           “..excetuando pequeno número de casas habitadas por portugueses, todas as outras são pequenas choupanas, sem argamassa, cobertas com palha de palmeira” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 55)

          Nota-se claramente que a situação de submissão que foi imposta aos índios gerou grande desigualdade na nova civilização que os lusitanos já estavam moldando. Um dos pontos que corroboram com isso é a intenção dos portugueses de se instalarem ao norte da embocadura do rio Reis Magos. Segundo narra Saint-Hilaire (1936), os luso-brasileiros sempre construíam suas aldeias na beira dos rios para aproveitar sua fertilidade, sempre com o cuidado de se afastar dos indígenas.

          Durante cerca de dois séculos, os Jesuítas tiveram total controle sobre os nativos, ensinando-lhes a religião cristã e também trabalhos manuais. Todos eles tinham liberdade de irem a Vila da Vitória para vender mercadorias ou adquirir objetos. Depois da queda dos Jesuítas, conta Saint-Hilaire (1936), os índios da região foram jogados a própria sorte. Longe do controle disciplinador dos Jesuítas, os indígenas de Vila de Almeida não trabalhavam com freqüência, viviam na mais profunda miséria e o governo da província do Espírito Santo covardemente retiravam vários deles de suas aldeias para trabalharem em construção de estradas e outros trabalhos pesados. Mal alimentados e submetidos as mais sub-humanas formas de trabalho, muitos não resistiam. Até hoje não se sabe quantos morreram.

          Os dados demográficos comprovam como essa população autóctone foi quase dizimada. Segundo o francês:

          “No tempo dos jesuítas, contavam-se 3.700 índios em Vila Nova e seus arredores, ao passo que hoje o território desta vila, em globo, tem 1.200 habitantes numa circunferência de 9 léguas” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 55).

          Uma estatística absurda que esclarece também o porque de hoje, no Espírito Santo, apenas o município de Aracruz ainda possuir reservas indígenas, que são os verdadeiros proprietários desta terra.

          Sob um ponto de vista puramente comportamental, Saint-Hilaire escreveu o que seus olhos captaram desses indígenas e suas atividades diárias.

          “Os indígenas que permaneceram na região pescam e cultivam a terra; mas, em geral, não plantam mais que o estritamente necessário a sua família. Entre os índios de Vila Nova, que colhem víveres além do necessário a seu gasto, uns vendem o excedente aos portugueses estabelecidos entre eles ou a comerciantes de fora; outros embarcam em suas pirogas com feijão, algodão ou farinha, que vão vender na Vila da Vitória, seguindo sempre a costa, que conhecem perfeitamente. Os índios do litoral são, em geral, exímios no mar. A imprevidência que os distingue fecha-lhes os olhos aos perigos; os longos intervalos de repouso que a navegação permite, convém a sua indolência e a força de que são dotados facilita seus trabalhos marítimos. Desde os tempos mais antigos, a vizinhança do oceano os havia tornado pescadores e esse é ainda um dos misteres que se ajustam melhor a seu caráter. Vivendo sempre no presente, sem ter paciência de esperar, querendo colher a tarde os frutos do labor do dia, eles devem, naturalmente, preferir a pesca aos cuidados da agricultura” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 56)  

          É notável que sua natureza era puramente selvagem e as dificuldades de adaptação a cultura e filosofia de vida do colonizador europeu eram nítidas. Saint-Hilaire percebeu muitas qualidades nesse povo, mas notou que suas qualidades não serviam para construir um futuro.

          “Eles pertencem por inteiro ao presente, o que ganham gastam no mesmo instante: bebem, amam e, logo que nada mais têm, sofrem a fome sem proferir um lamento. Mostram-se tão cheios de paciência, tão tranqüilos quanto desleixados e pode mesmo ser que as duas primeiras qualidades não passem do resultado da última” (SAINT-HILAIRE, 1936, p. 57)

          Todo este contexto civilizatório na Serra (ES) que foi apreendido pela retina de Saint-Hilaire há cerca de duzentos anos pode ser transmitido hoje pelos facilitadores como uma das escassas fontes que retratam o panorama da cidade no inicio do século XIX. Esse conteúdo contribui para o processo de desenvolvimento da cultura local e da formação de cidadania entre os alunos. Principalmente os de residência fixa na cidade.

          Um dos mecanismos mais eficazes para se (re) conhecer o valor patrimonial de destinos turísticos tradicionais do município como a montanha de Mestre Álvaro e a igreja de Reis Magos[1] são as visitas técnicas. Quando elaboradas com metodologia e usando também os textos de Saint-Hilaire para fundamentar os argumentos, essas visitas técnicas inegavelmente se auto-enriquecem.      

 CONCLUSÃO

            Esses registros de viajantes estrangeiros no Brasil profundo dos primeiros séculos são fontes de vital importância para a história moderna. Auguste Saint-Hilaire se tornou célebre pela linguagem rica em detalhes que traz a realidade do País do inicio do século XIX.

          Sua passagem pela cidade de Serra, Espírito Santo, e sua experiência na região contada de maneira tão intensa e inspiradora, atravessou séculos e hoje serve de referência para composição de livros, artigos e até mesmo textos de folders e placas de atrativos turísticos.

          Conhecer a cidade onde vivemos é um exercício de cidadania. É entender e elucidar sua realidade patrimonial, dando sentido a sua preservação. Essa identificação da população local com os pontos de visitação de onde vivem é essencial não só pela construção da cidadania, mas também para o desenvolvimento regional: cultura e economia.  

          O trabalho de fôlego de Saint-Hilaire e seus escritos brindaram as gerações posteriores a sua visita com um arsenal de informações de inestimável valor social e ecológico.

          Como muito bem mencionou Vera Chacham (2007), o viajante no Brasil estava tendo acesso a um mundo em seu começo, os habitantes no futuro saberiam pelos escritos de alguns viajantes, quais foram os primórdios não só das suas cidades, mas também das suas menores povoações.   

 

        

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Espírito Santo e Rio Doce. Tradução de Carlos Madeira. Espírito Santo: Companhia Editora Nacional, 2002.

CHACHAM, Vera. “Índios, Jesuítas e uma tradição iluminista da história: A narrativa da Viagem de Saint-Hilaire ao Espírito Santo”. Pernambuco, 2007.

(Em:http://www.serra.es.gov.br/portal_pms/site.do?evento=x&lang=&idConteudo=5638&chPlc=5638&pg=5001&taxp=0&lang=pt_BR>. Acesso em: 10 dezembro 2011. )  

 

 

 


[1] Segundo a Prefeitura Municipal de Serra (ES), a igreja de Reis Magos é o segundo destino turístico- religioso mais visitado do Estado.

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Autor: Renato Andreão


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