Ser professor na educação infantil não é brincadeira! ou seria?!



 

Ser professor na Educação Infantil não é brincadeira! Ou seria?!

 

 

Pablo Rodrigo Bes Oliveira*

 

 

Grande é a alegria,

A bondade

E as danças...

Mas o melhor do mundo

São as crianças!

                                                            Fernando Pessoa

 

 

            Na divisão dos níveis da nossa educação nacional, fica a Educação Infantil posicionada em lei como a primeira etapa da Educação Básica, o que, a meu ver deveria reforçar a sua importância neste atendimento. Porém, percebo nas minhas vivências de pedagogo, educador infantil e especialista nesta área que a realidade não é esta. Embora muitos discursos presentes – psicológicos, médicos, pedagógicos, nutricionais, neurológicos, entre outros, alertem sobre a importância da primeira infância e de suas experiências, isso ainda não se traduziu em prática consistente sob alguns aspectos.

            O que pretendo com este ensaio é tecer alguns comentários sobre a docência na educação infantil, uma prática que percebo ser atravessada pelos discursos que a cercam. Na esteira dos conceitos dos Estudos Culturais, concordo com COSTA (2007) ao citar que – “nossas idéias sobre as coisas constroem as coisas” (p.17). Dessa maneira, procurarei analisar como algumas concepções de infância que habitam o universo discursivo desta área se acham vinculados/ impregnados no docente que trabalha com as crianças e como esses discursos acabam subjetivando-o e constituindo-o. Esclareço, porém que este texto não tem a intenção de realizar uma crítica contundente aos professores e suas práticas, nem estabelecer um jeito “certo” ou “melhor;’ de ser docente neste nível de ensino e sim, problematizar e propor uma discussão em torno da análise dos saberes discursivos enquanto constituidores das práticas docentes cotidianas.

            Começarei analisando o conceito da infância enquanto uma fase da vida, definida cronologicamente, própria do ser criança. Mas quero destacar que, conforme BES OLIVEIRA, essa idéia ou sentimento sobre a infância surgiu somente:

 

Com o avanço das questões de saúde e higiene, que colaboraram com a constatação desse ser criança como alguém que vivia numa época privada de autonomia e incapaz de conduzir-se na vida em comparação com o ser maduro, jovem ou adulto. Começa aí a inserção dos cuidados com a criança e a construção ou “invenção” deste conceito de infância como uma fase da vida, merecendo um olhar protetor que irá surgir com a Modernidade, aliada ao surgimento da própria escola, nos séculos XVIII e XIX (BES OLIVEIRA, 2010,p.3)

 

             Na Modernidade passamos a viver um projeto de sociedade disciplinar, onde a escola tem papel fundamental, ficando com a nobre função de disciplinar os corpos, o intelecto e a moral de seus alunos para que possam bem cumprir seus papeis nesta sociedade. Da mesma maneira a criança é capturada por esta escola que passa então a ter um olhar protetor sobre os pequenos. Neste período também proliferam-se os discursos morais sobre a criança e sente-se necessária uma reconfiguração no próprio modelo de família, vindo a constituir-se a família nuclear que impera como modelo dominante inclusive em nossos dias constituído pelo pai, o patriarca da casa, pela mãe, responsável pelo lar e por seus filhos. A própria distribuição espacial das casas muda, mantendo as crianças separadas dos adultos e assim protegendo suas virtudes. Alguns autores como Phillipe Áries detiveram seus estudos na busca da genealogia de indícios da infância e constataram que este sentimento que possuímos hoje somente se percebe a partir do século XVIII na sociedade ocidental ao menos. Conforme cita MAYALL, “A vida da criança é vivida através de infâncias construídas para elas, a partir de compreensões dos adultos sobre a infância e sobre o que as crianças são e devem ser”. (1996, p.1) Mas o que este conceito nos incute na constituição do docente que atua neste universo infantil, ou melhor dizendo, quais são os traços dos professores ou “tios” e “tias” de escolas ou “escolinhas” que identificam-se com essa idéia proposta pelas questões de saúde e higiene?

            Ao explicitarem os saberes médicos sobre as questões da saúde e higiene das crianças, posicionando-as como seres frágeis, bem como os saberes psicológicos destacando-as como seres em desenvolvimento, acabam por construir uma pedagogia que posiciona o professor da educação infantil como àquele que cuida, protege e auxilia no desenvolvimento integral desse ser. Além disso esses mesmos saberes se espraiam por toda a sociedade e capturam as professoras em outras identidades, como na de mãe, dinda ou tia. TARDIFF (2002), ao referir-se aos saberes que constituem os docentes cita que:

“esses saberes provêm de fontes diversas (formação inicial e contínua dos professores, currículo e socialização escolar, conhecimento das disciplinas a serem ensinadas, experiência na profissão, cultura pessoal e profissional, aprendizagem com os pares,etc.” (TARDIFF, 2002, p.60)

 

É muito comum observar, as professoras envoltas em profundos relacionamentos afetivos com seus alunos, exercendo, muitas vezes traços da própria maternagem historicamente associada ao universo feminino, o que nos remete a concordar com o autor e perceber que muitos dos saberes dos professores são exteriores a sua preparação para exercer o ofício de ensinar, pois se originam nas experiências vividas em outros lugares sociais anteriormente percorridos por eles. TARDIFF (2002) ainda acrescenta que :

 

“nesse sentido, o saber profissional está, de um certo modo, na confluência entre várias fontes de saberes provenientes da história da vida individual, da sociedade, da instituição escolar, dos outros atores educativos, dos lugares de formação, etc.” (TARDIFF, 2002, p.64)

 

Os discursos que remetem às questões morais e de proteção da criança são tão fortes, principalmente em relação às questões sexuais e de gênero que pude como professor na educação infantil vivenciar na pele tais conflitos. Muitos pais ao saberem que o professor de seu filho(a) no jardim seria um homem enchiam-se de preocupações e questionavam sigilosamente minhas colegas professoras a respeito de minha sexualidade e se eu era uma “pessoa de bem”. Muitos esclarecimentos tive que fazer em relação aos cuidados, por exemplo na hora de assessorar as meninas no uso do banheiro (problema este que ficava resolvido ao utilizar uma monitora para me auxiliar nesta “árdua tarefa”). O que quero destacar com este exemplo é que á idéia arraigada da feminização da docência, conforme apontada em vários estudos, como nos de LOURO (2002), historicamente constituída e vinculada “ao processo de urbanização e industrialização que ampliava as oportunidades de trabalho para os homens”(p.449), na educação infantil ainda é muito forte, posicionando algumas vezes o homem como um docente incapaz ou até mesmo insensível para lidar com o universo dos pequenos na sua rotina diária de professor.

            Outra forma de ver a infância que abordei em outro artigo[1], diz respeito a enxergar a infância como uma experiência, sem atrelá-la às questões cronológicas que a submetem única e exclusivamente ao ser criança. ABRAMOWICZ (2006), nos diz que essa experiência “...pode ou não atravessar os adultos e pode ou não atravessar as crianças.”(p.321). Através dessa forma de olhar a infância podemos perceber que muitas crianças podem não ser atravessadas por ela nos seus anos iniciais de vida e, da mesma forma, os jovens e adultos também podem vivenciar situações ou momentos infantis durante todo o percurso de suas vidas. Na educação infantil observamos com muita força o discurso que constitui o lúdico como melhor forma de atingir os objetivos pedagógicos com as crianças, sendo que este normalmente permeia as atividades cotidianas. O professor  que se permite brincar, sorrir, gritar até mesmo, enfim, acaba por experienciar a infância juntamente com seus alunos, fazendo dessa aprendizagem algo significativo, onde o afeto, característico da infância inventada que mencionamos anteriormente, pode ser manifestado.

            De todo a rede discursiva que cerca a educação infantil, muitos estudos e escritos, têm sido realizadas sobre o brincar, instituindo-o como característica fundamental nesse nível da educação. Concordo que o brincar é importante, aliás, em todos os níveis, inclusive no superior, porém percebo que essa idéia contribui para que se veja a infância ou se normalize a idéia, na esteira dos conceitos foucautianos, como característica de um período onde todas as crianças têm acesso a essa infância idealizada. Uma visão que universaliza a idéia num mundo onde percebemos tantos contrastes na vida das crianças que por muitos motivos acabam tendo prejuízos no viver sua infância.

            O que trago para análise neste momento é que, conforme Agambem (2001/1978), tradutor italiano do filósofo Walter Benjamim, ao referir-se a esta “pobreza da experiência”, nos diz que “todo o discurso sobre a experiência deve partir da constatação de que ela já não é realizável” (p.7). Observo em algumas escolas de educação infantil que algumas estratégias têm sido criadas para que os professores possam efetivamente resgatar essa experiência, caracterizada como algo que afete de maneira significativa a vida sua e de seus alunos. Iniciativas simples como a criação de um atelier de artes, uma horta, enfim, podem servir de meio para que a experiência se desenvolva.

            Também observo que algumas professoras de educação infantil, em contrapartida, ainda estão muito arraigadas aos controles típicos da escola moderna, focando seus esforços principais no controle e condução de seus alunos nas suas rotinas rígidas e inflexíveis. Penso que a disciplina ainda é importante e que a escola deve ter seus controles, porém discordo que a ênfase do trabalho do educador infantil seja nestes mecanismos, pois, dessa maneira somente estaremos atendendo ao disciplinamento moral, do corpo e do intelecto em detrimento de outras experiências que podem ser ricas e importantes na subjetivação desse ser criança.

            Dessa forma, gostaria de fechar o presente trazendo para reflexão a seguinte questão: se vivemos atualmente uma reconfiguração nas formas de enxergar a criança e sua infância, não deveríamos também rever nossa postura como educadores infantis?

 

REFERÊNCIAS:

 

ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família. Rio de Janeiro: LTC Editora, 1981, p.50-57.

 

AGAMBEN, G. Infância e história.Buenos Aires:Adriana Hidalgo, 2001/1978, p.7

 

BES OLIVEIRA, P.. Infância histórica, fase da vida, experienciada, desaparecida: enfim, várias faces de um conceito “inventado”.. Educação Por Escrito, Porto Alegre, 2, fev. 2012. Disponível em:http://revistaseletronicas.pucrs.br/fadir/ojs/index.php/porescrito/article/view/9411.

COSTA, M. V. Novos olhares na pesquisa em educação. In: COSTA, M.V. (org.) Caminhos Investigativos I. Rio de Janeiro: Lamparina, 2007, p.17.

LOURO, G. Mulheres na sala de aula. In: DEL PRIORE, M. (org.) História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2002.

MAYALL,B. Children,Health and the Social Order. Buckingham: Open University-Press; 1996, p.1

 

TARDIFF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.

 


* Administrador e Pedagogo, Especialistaem Educação Infantil e Especialista em Gestão e Planejamento Escolar. Atualmente cursando o Mestrado em Educação,PPGEDU, Ulbra- RS.

 

 

[1] Artigo intitulado: Infância histórica, fase da vida, experienciada, desaparecida: enfim, várias faces de um conceito “inventado”, PPGEDU – ULBRA, 2010, vide referências.

 

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Autor: Pablo Rodrigo Bes Oliveira


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