Quando o "público" vira privada - a via-sacra de jorge (um cidadão muito comum) num cartório de uma certa cidade do sul da Bahia.



Essa história não aconteceu na ficção, mas poderia, porque tem um enredo muito pitoresco e, além disso, parece mesmo irreal. No mínimo: surreal.
Não me demorarei em enfeites, porque não há enfeite que consiga dar outro valor ao recheio do caso que será exposto.
Para que o leitor não se enfade, se irrite ou se afaste, preciso ao menos, ter uma linguagem melhor do que aquela usada no ambiente sobre o qual devo discorrer.
Vamos ao ambiente:
É um lugar aonde se vai para tirar segunda via de documentos, conseguir cópias autenticadas e obter Certidão de Óbito, de Nascimento etc. Devo esclarecer que todos esses serviços são pagos pelo interessado (o cidadão comum). O cidadão MUITO comum, paga mais, porque é humilhado no desgaste descomunal esperando em filas injustas.
O horário do serviço a ser prestado: 13:00. Porém, o cidadão, aquele, bem comum, tem de ir às 08:00 para permanecer numa fila e conseguir às 11h00 adquirir uma senha. Depois disso aguardará para ser atendido a partir das 13:00.
Nesses ambientes, o leitor que pertencer à lista de cidadão comum, há de concordar comigo, sabe que sempre aparece uma pessoa mais esperta. Aquela que chega com ar de bom indivíduo e organiza a fila e anota os nomes numa folha qualquer e dá por organizada a seleção de sujeitos a serem atendidas.
Trata-se de um órgão público. Dentre os serviços prestados, o mais indescritivelmente pior serviço é uma tarefa, que de tão simples, poderia ser chamada de burlesca. Não desmerecendo as tarefas simples, são todas importantes. E necessárias. No entanto, pergunto: qual a dificuldade em se bater um carimbo numa cópia e depois dar um visto?
É justamente aí que a personagem que chamaremos de Jorge, em homenagem a Jorge Amado em seu centenário. Escritor que denunciou as “canalhices” dos coronéis da região de forma clara e precisa e que até hoje haveria de denunciar, porque os coronéis (parece) vivem reencarnando com alta dose de coronelismo na alma...
Jorge (coitado) foi para esse lugar no sentido de conseguir uma simples cópia autenticada e, além disso, registrar firma.
Era cedo, muito cedo. Jorge achou maravilhoso, porque chegou ao local e havia, apenas, duas senhoras à sua frente. Qual não foi sua surpresa quando leu naquela porta cinza e suja numa folha qualquer escrita a seguinte oração: SENHAS ENCERRADAS.
Jorge consultou o relógio e não entendeu como isso ocorrera, já que eram apenas 07:00 da manhã e não havia ninguém ali, além daquelas duas senhoras. Uma delas perguntou-lhe se estaria ali para registrar firma, autenticar documentos ou solicitar certidão disso ou daquilo.
Jorge respondeu o que havia ido fazer. A senhora lhe confirmou sobre a informação daquela “placa” colada na porta, e informou que ela estava com a senha número tal.
Nossa personagem (da vida real), leitor voraz mestrando em Linguística, explicou àquela mulher que aquilo não era legal; que a pessoa que anotou os nomes não era servidora pública e, além disso, esclareceu para aquela cidadã comum, de que quem tem direito a atendimento num órgão desses é justamente aquele indivíduo que permanece na fila até o horário do atendimento.
Com ar de quem não gostou das afirmativas de Jorge, a mulher se calou após sonorizar um: “_ Agora que deu”.
A espera foi longa e cansativa. Em pé, encostado e injustiçado, o rapaz aguardou. Quando o relógio indicava a hora da distribuição das fichas chegando, as personagens que estavam na lista ilegal foram aparecendo.
Nosso herói não saiu do lugar, alguém manda que ele se afaste, ele diz que não e responde alegando que aquele tipo de serviço era um desserviço e, que em verdade, quem teria maior direito à senha, tinha de serem aqueles sujeitos que permaneceram naquele lugar sujo, sem bancos e onde a chuva pode molhar qualquer um sem dificuldade.
Eis que surge a funcionária. Ela chegou se arrastando de cansada, mal começou seu trabalho. Abre a porta e de lá dentro, além do cheiro de mofo aparece a imagem de um balcão. Atrás dele, mesas e cadeiras.
Sempre há um arquivo com uma planta em inanição nesses lugares. Quase sempre acontece de ter alguém que em determinado momento saca um lanche de algum lugar, para empestear o ambiente com olor de gordura (em geral, são quibes, cochinhas e parentes).
Depois de horas a fio, já são três horas da tarde 15:00, aparece um senhor que havia sido instruído para registrar firma de outrem nesse lugar, onde Jorge já se encontra em febre, por estar em jejum. A funcionária perguntou àquele homem de cabelos brancos do que se tratava e expôs que a firma só é reconhecida com a pessoa (agente) presente. Foi um pandemônio...
A auxiliar, vendo que o senhor não se conformava, chamou o Segurança. Este, logo mandou o idoso ler a página impressa e colada na parede. Aquela que informa sobre o desacato ao funcionário público, a qual em seu texto intimida os cidadãos ainda escravizados na velha memória de assujeitamento a um “Sinhô”, de que se a pessoa insistir em requerer um bom atendimento, pode acabar detido.
O que eles não contavam, é que aquele homem idoso não era um cidadão MUITO comum. Sacou o celular e chamou alguém para que o amparasse. Passado algum tempo, chega uma pessoa que conversa baixinho com a funcionária que o recebe com os dentes (amarelecidos) à mostra. Abre o balcão e prontamente manda sua assistente (que neste minuto lixava as unhas) atendê-lo.
Nossa personagem principal se perde entre tantas personagens. Do seu íntimo pensa, humilhado: - Que país é esse?...
Reflete, além disso: - E se não fosse um indivíduo bem informado, leitor e cidadão engajado, apesar de negro, pobre e fora dos padrões de negro bonito, estaria ali para ser atendido (mal)?
Segue em suas reflexões, nosso amigo Jorge: - E onde estão aqueles que deveriam vigiar esses serviços?
Entristece-se ainda um pouco mais, nosso real representante cidadão muito comum, Jorge. Pois lembra que estão todos (quase) a serem investigados por crimes de roubalheira de dinheiro público e o mais (os vereadores da Câmera Municipal).
A deselegância da atendente no momento do atendimento de Jorge é de dar nojo. Ela o destrata e diz que ele mesmo arranje uma caneta para usar na assinatura do documento, pois não emprestaria a dela. Jorge não se dá por vencido e responde que já previa essa cena, agradece e saca sua própria caneta da bolsa.
Pensou em denunciar o caso da lista ilegal, mas a funcionária não lhe dá o mínimo de atenção, até porque chega o filho da chefa trajando um uniforme de escola particular ali das redondezas (pasmem, existe um administrante ali). Nesse momento, ela abre o balcão e novamente os dentes - amarelecidos pelo café e pela coca-cola que toma muitas vezes durante aqueles atendimentos execráveis.
Já passam das cinco horas da tarde e todos estão suados, quando não, com perfumes vencidos. O cheiro da coxinha da assistente que agora pinta as unhas com esmalte cenoura, faz o ambiente lembrar o odor que sai de um reservado.
Jorge que esperou desde as 07:00 da manhã, sai dali às 17:30, enfim (mal) atendido.
Aquelas situações abomináveis: a injustiça de serem bem tratados justamente os que não esperam na fila e entram como raposas, dizendo que vão conversar com a chefa algum assunto pessoal; a chuva que molha e deixa as paredes limosas ainda mais musguentas e sujas. A fome e a vontade de sumir - fazem aquele ambiente ficar muito pior do que já é.
É isso que acontece quando o “público” vira privada.

Solineide Maria de Oliveira
Poetisa
Professora
Graduada em Letras (UESC)
Pos Graduanda Educação


Autor: Solineide Maria Oliveira


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