Registro dos bens culturais imateriais: preservando ou espetacularizando?



Camilla Nascimento

Especialista em Turismo e Patrimônio – FAFIRE

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Durante muito tempo as políticas de preservação do patrimônio cultural, em nível internacional e nacional, estiveram quase que completamente voltadas para os monumentos de “pedra e cal”, acarretando na marginalização das manifestações tradicionais e populares, uma vez que os monumentos constituídos da representatividade necessária para fazê-los pertencer a cultura e identidade nacional eram aqueles que tinham como protagonistas as elites, os heróis da nação.

Assim, a formulação de políticas públicas de salvaguarda do patrimônio imaterial nacional, portadores estes de referência à formação da diversidade cultural de um povo, é considerada por muitos pesquisadores e estudiosos da área como um grande avanço, conforme coloca Irene dos Santos e Antônio do Vale (2011) no texto Patrimônio Histórico Imaterial: o imaterial como avanço e conquista na legislação. A visão defendida por esses autores se coloca em oposição ao processo de globalização, que supostamente tende a colocar todas as culturas sob um mesmo rótulo, fadando as manifestações populares e tradicionais ao desaparecimento.

No Brasil, o desenvolvimento dessa política de salvaguarda dos bens de natureza imaterial se deu com a ampliação do conceito de patrimônio cultural nacional apresentado na Constituição Federal de 1988, colocando os bens materiais e imateriais em um mesmo grau de relevância para a manutenção da diversidade cultural nacional, ambos dignos de ações que visem a sua proteção e salvaguarda. Estas ações podem ocorrer através de diversos instrumentos, sendo o mais conhecido, no tocante ao patrimônio imaterial, o registro cultural desses bens através do Decreto 3551, de 04 de agosto de 2000, que institui também o Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC. O Decreto subdivide o patrimônio imaterial em quatro categorias principais: os saberes, as celebrações, as formas de expressão e os lugares.

Porém, em meio a tantos aparentes benefícios (não negando a existência desses), o que parece fugir a esta idéia de preservação é a avaliação da maneira como o registro poderá impactar na forma como as populações ou indivíduos vêem e vivenciam suas manifestações tradicionais.

Essa política de patrimonialização é de incontestável relevância uma vez que busca manter vivas práticas tradicionais que correriam o risco de desaparecer, conforme acreditam os que defendem os impactos negativos da globalização e tradicionalistas, utilizando desta forma a justificativa de perpetuar e difundir para as próximas gerações as tradições herdadas. Porém, isto modifica o sentido que esses bens possuem para as comunidades que as produzem. Tornar esse patrimônio visível é torná-lo atraente para a atividade turística, o que potencialmente acarretará na alteração de sentido deste bem para a comunidade que o executa, tirando-lhe a função social que é inerente e ressegnificando-o como produto da indústria turística cultural, tornando-o assim passível de representação e espetacularização.

Colocar um bem imaterial como portador de referência da cultura nacional poderá tirar-lhe a “autenticidade” e espontaneidade, características destas manifestações uma vez que praticadas por pessoas, onde as relações sociais são dinâmicas, conferindo-lhes a marca da constante mutação e ressignificação. Este quadro reforça a idéia negativa atribuída ao campo de consumo da atividade turística, uma vez que torna a cultura um bem de consumo, reforçando assim sua condição de espetáculo.

A intenção do poder público de preservar os bens imateriais é louvável, mas seus impactos precisam ser estudados cautelosamente, uma vez que essas políticas podem estar seguindo em direção contrária a ideologia que defende, a partir do momento em que coloca as manifestações em evidência, atraindo a atenção para as comunidades tradicionais, expondo-as dessa forma, ainda que indiretamente, aos efeitos da globalização, processo este acelerado pela indústria turística e pela comunicação de massa.

O registro poderia assim resultar numa mecanização da materialização performática de práticas culturais expressas em performances, isento do sentimento necessário aos laços afetivos que dão sentido à memória coletiva da comunidade que vive em sua realidade cotidiana a prática de determinada tradição popular. Uma vez que a manifestação ocorre sem a interferência que o peso do título de patrimônio nacional a confere, a população dá menos atenção com o impacto visual da festa nos moradores e visitantes. Costa & Castro (2008, p. 127) questionam que

Ao terem suas crenças, seus saberes, suas representações, formas de ser, de viver, e de fazer, tomados como patrimônio nacional, esses grupos tem que necessariamente assimilar aos seus cotidianos o fato de que são produtores e/ou detentores das memórias que constituem o patrimônio cultural imaterial nacional, o que certamente difere do fato de serem portadores de memórias que reconstroem seus saberes e tradições. O que antes poderia ser pensado como memórias do grupo que davam sustentação a um estilo local de vida, de expressões ou como lembranças que ancoravam uma tradição regional é agora considerado um patrimônio cultural da nação.

 

Sobre a questão do registro das manifestações, considerando sua característica principal a dinâmica de seus processos evolutivos, Nora (1993 apud COSTA & CASTRO, 2008, p. 128) afirma que

Se a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações [...] o registro desses costumes e tradições significa a reconstrução da história desses lugares e, como tal, uma reconstrução incompleta do que não existe mais, pois “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado.

 

As questões fundamentais que devem ser analisadas ao efetuar o registro de determinada manifestação imaterial são: dar ao patrimônio de uma comunidade o título de ser relevante para a nação não dá a ela o direito de entender que sua manifestação é mais relevante que outras? Tornar estas manifestações mercadorias economicamente rentáveis não modifica a relação destas com a comunidade a qual pertencem? Colocar as manifestações populares em evidência não poderá tirar das comunidades o direito de modificá-las de acordo com suas necessidades, sem fazer com essas alterações naturais dentro de processos dinâmicos configurem como descaracterização das práticas culturais tradicionais?

Questões como essas pedem um estudo mais detalhado e aprofundado, objetivo de uma pesquisa que realizei para elaboração da monografia solicitada como requisito final para obtenção do título de Especialista em Turismo e Patrimônio, que está composta de quatro capítulos, onde o primeiro trata de contextualizar o conceito de patrimônio imaterial através de uma análise da evolução do conceito de patrimônio, construindo assim uma estrutura que contempla os principais marcos pelos quais passou o patrimônio, até sua abrangência do imaterial, dentro do cenário internacional e nacional. Já no segundo capítulo é realizada uma análise a respeito do Decreto 3551, de agosto de 2000, como instrumento de salvaguarda do patrimônio imaterial. O terceiro capítulo constitui um estudo de caso do Caboclinho, tendo como amostra o Caboclinho Sete Flexas, onde também é realizada uma análise do frevo que tem por objetivo servir de referência para comparação neste processo, uma vez que já compreende numa manifestação popular registrada como Patrimônio Imaterial do Brasil. E a partir destas discussões, já no quarto capítulo é realizada uma análise com o intuito de comprovar ou não, mediante tudo o que foi discutido no decorrer da pesquisa se o Registro poderá de fato contribuir para a espetacularização das culturas tradicionais e populares.

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

 

______. Decreto 3.551 de 04 de agosto de 2000. Institui o registro de bens culturais de natureza imaterial. Disponível em: Acesso em: 25 jan. 2011.

 

COSTA, M. L.; CASTRO, R. V. Patrimônio imaterial nacional: preservando memórias ou construindo histórias?  In: Estudos de psicologia, 2008. p. 125-131. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v13n2/04.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2011.

 

SANTOS, Irene da Silva Fonseca dos; VALE, Antônio Marques do. Patrimônio histórico imaterial: o imaterial como avanço e conquista na legislação. Disponível em:<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada7/_GT2%20PDF/PATRIM%D4NIO%20HIST%D3RICO%20IMATERIAL%20O%20IMATERIAL%20COMO.pdf>. Acesso em: 10 fev. 2011.

 

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Autor: Camilla Maria Silva Do Nascimento


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