Guimarães Rosa: Transitando Por Entre Mundos E Sonhos



Transitando por entre mundos e sonhos

 

 

 

Ulisses Macêdo Júnior

Resumo:

 

Este artigo tem como principal objetivo analisar o conto “Os cimos” de Guimarães Rosa observando alguns aspectos de extrema relevância na sua narrativa, tais como: a linha e tessitura desenvolvidas pelo autor, a abertura psicológica na narrativa, assim como o caráter sublime e de encantamento visto nas personagens, além da análise de instante de epifania, espaço, tempo sob a ótica da contemporaneidade.

 

 

Palavra - chave: Sonho, introspecção, relações humanas, encantamento e reflexão.

 

 

Introdução:

 

Sonhar sempre foi um fenômeno natural e complementar à natureza humana. Através do sonho somos levados e transportados para dimensões misteriosas, fantásticas ou para lugares onde coexistem o “real” e o mágico. Por esses “mundos híbridos” podemos realizar façanhas inimagináveis, interagir com deuses e diabos, viajar com o sublime ou temer com o grotesco, tornar possível os mais simples ou excêntricos desejos.

Em todo o decurso da humanidade o sonho sempre exerceu um imenso fascínio no seres humanos. Desde a Grécia antiga ao advento e desenvolvimento da ciência à contemporaneidade, alguns aspectos relativos a esse fenômeno permanecem indecifráveis e de difícil compreensão.

Paralelamente a ação humana, a arte utiliza desse matiz para evidenciar, retratar, construir e reconstruir as relações entre os seres e os “mundos” que os cercam. Apresentando as nuances dessas fantásticas e imbricadas conexões.

Nesse mesmo contexto, a literatura desata por esse viés demonstrando as diversificadas relações estabelecidas nos diferentes períodos da humanidade. Na contemporaneidade, com o Modernismo e a Pós-Modernidade, a simbiose entre “real” e ficcional nesse mundo alternativo, assume caracteres próprios desse tempo.

Coexistindo com o racional e o “concreto” do dia-a-dia, o sonho, o imaginário, o fantasioso, o mítico são alguns elementos que permeiam, configuram e dão um toque sublime e “maravilhoso” a obra de Guimarães Rosa. Nessa vertente, o mundo das narrativas roseanas, e aqui mais especificamente o conto “Os cimos”, acabam figurando em uma espécie de universo paralelo, local onde habitam os limites indefiníveis de real e imaginário.

No mencionado conto, Guimarães Rosa, através da figura do narrador, perscruta todo o roteiro em que a protagonista transita e pulula por entre mundos e ambientes; míticos e verossímeis, dolorosos e belos.

Desde o primeiro capítulo da narrativa, intitulado de Inverso afastamento, que a personagem principal, O menino, já possui uma relativa compreensão das coisas, justamente por estar situado em uma parte da sua vida que ainda traz consigo uma áurea de pureza de criança, mas também, uma amplitude visional de adulto. Perspicazmente, o autor utiliza essa personagem que está nesse liame, justamente por ser (criança) apto a trafegar por lugares e “entre - lugares”. Nos fragmentos abaixo tal aspecto é bastante evidente.

(...) O Menino cobrava maior medo, à medida que os outros mais bondosos para com ele se mostravam. Se o tio, gracejando, animava-o não estava de todo sincero (...).

(...) E, vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e não-estar-ainda-acordado o Menino recebia uma claridade de juízo – feito um assopro – doce, solta. Quase como assistir às certezas lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no espírito idéias de gente muito grande. Tanto, que, por aí, desapareciam, esfapiadas.

(ROSA, 2001. p. 225 e 227)

 

Por esse trecho, torna-se perceptível, que a mencionada personagem já possui maturidade suficiente para perceber que o tio estava sendo por demais generoso, demonstrando assim, uma relativa compreensão do mundo adulto. No segundo fragmento, começa a estar no “entre - lugar” e a estabelecer pensamentos: ora conexos, ora desconexos. Uma claridade de juízo, “amadurecidos”.

Aliás, através dessa imersão da personagem O Menino, abre-se um viés verticalizado onde o tempo e espaço se redimensionam e se apresentam em uma outra nuance, quando físico e geográfico acabam ficando para segundo plano, e o intrínseco mundo da criança vem a determinar e conduzir à narrativa.

A propósito, uma das possíveis leituras e análises para a nomenclatura do primeiro capítulo poderá seguir a ótica do distanciamento físico entre O Menino e a sua mãe que se encontra enferma e, a aproximação e maior ligação emocional das personagens, daí o título Inverso afastamento. Vale mencionar, que a mãe para a personagem se encontra em um espaço reservado a idéia de felicidade, de aconchego; não cabendo através de uma imagem de tristeza.  Em outro fragmento tal abordagem é bastante precisa.

 

(...) se encarasse pensamento na lembrança da Mãe, iria chorar. A Mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante, formavam avesso – do horrível do impossível.Nem ele isso entendia, tudo se transformando então em sua cabecinha. Era assim: alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer ?(...)

 

(ROSA, 2001. p. 225)

 

No curso do conto acabam ficando evidentes algumas vertentes por onde trilha a protagonista; a sua viagem pelo multidimensional é ampliada pela angústia causada com a enfermidade da mãe. Dessa forma, o “real” se apresenta extremamente doloroso e algoz, e o surreal como uma espécie de fuga que faz a fantasia imensamente compensatória; tornando-o livre e isento das intempéries mundanas. Daí o encantamento e momento de epifania com o aparecimento do pássaro, título do segundo capítulo.

Nesse contexto, os fenômenos, naturais ou imaginários, que se apresentam por meio de uma claridade, em momentos anteriores ao aparecimento do pássaro, terão uma simbologia muito marcante. Em diversos instantes, quando todo esse transitar do Menino, por entre mundos e universos da mente se dão por meio de um sinal ou um prenúncio que surge a partir de uma luz especial; uma claridade que se apresenta como indicativo do encantamento da personagem e abertura maior para o mundo mítico.

Evidentemente, que esse intrínseco mergulho por mundos encantados e singelos, de crenças, mitos, interagindo com a “racionalidade” do dia-a-dia e, por onde pairam os maiores medos, desejos e angústias, subterrâneas ou visíveis, dos seres humanos, é característico de Guimarães Rosa. Autor que, através da sua obra, apresenta um simulacro da vida humana.

Lélia Parreira Duarte[1], Doutora em Literatura Portuguesa (ESP), professora da PUC de Minas Gerais, aborda sobre essa capacidade de Rosa em encantar e inebriar o leitor, além de levá-lo a uma outra “dimensão”, mágica. Uma terceira margem.

 

(...) E também porque sua palavra é encantatória, tem uma música que embriaga, liberando um poder sensibilizador que é capaz de abstrair o homem do cotidiano e coloca-lo num intervalo que não é o espaço de luta pela vida, embora não seja o da alienação (...) e o pragmatismo com que começam a ver suas supostas premonições constituem constrangimentos que buscam trazer para a margem comum o que é próprio da terceira margem, do intervalo, da estória, da arte. (...)

 

(PARREIRA, 2000. p. 114)

 

A partir dos posteriores capítulos da narrativa, O aparecimento e O trabalho do pássaro, alguns aspectos anteriormente mencionados acerca das “viagens” e “encantamentos” ficam mais claros. A princípio, observando os deslocamentos da protagonista em busca da “felicidade”. Nesse caminho, é importante que mencionemos algo relevante. Concretamente, o pássaro (tucano) que surge, e que se torna também protagonista da história, tem a missão de trazer a alegria, a esperança de volta para a criança. No entanto, o que não é comprovável é a existência “real” do pássaro. Já que tudo acontece, e o tucano sempre surge, em um ambiente repleto de simbologias e olhares fantasiosos de criança.

 

(...) O sol ainda não viera. Mas a claridade. Os cimos das árvores se douravam. As altas árvores depois do terreiro, ainda mais verdes, do que o orvalho lavara. Entremanhã – e de todo um perfume, e passarinhos piando. Da cozinha, traziam café. E: - “pst – apontou-se. A uma das árvores, chegara um tucano, em bando batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigos vermelhos do pássaro – depois de seu vôo (...) Toda a luz era dele, que borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar, estapafrouxo, suspenso espledentemente. (...).

 

(ROSA, 2001. p. 228)

 

Quando o medo, a angústia ou a incerteza passam a figurar nas vidas humanas de forma intensa, além da quebra do equilíbrio, perde-se também a noção do “real”. Talvez isso possa ter acontecido, ou o inverso seja mais provável. O que é mais certo é o aspecto grandioso da narrativa, acrescido vigorosamente por essas “incertezas”; A verdade torna-se ainda mais relativa nesse contexto.

Coincidentemente ou não, ocorre uma inversão de perspectivas para a personagem, no último capítulo do conto: O desmedido momento. Surgem indicativos e evidências da partida do pássaro, que viria simbolizar a saída do mundo fantasioso e concomitantemente a re-inserção no mundo “real”, anteriormente triste, mas agora com a melhora da mãe, alegre e vivaz.

Outros “enigmas” também percorrem a narrativa, como o macaquinho, brinquedo predileto e metáfora da própria criança. O título do conto “Os cimos”, que pode vir a representar o limite entre terra e céu, entre mundo “real” e ficcional. Portal por onde surge o entre - lugar.

Inebriante, doloroso, encantador, são certamente ingredientes que consubstanciam e permeiam a narrativa de Guimarães Rosa. Por seus e “mundos” mergulhamos nas mais fantásticas histórias, nos intrínsecos medos e sonhos do homem, nos liames do “real” e da fantasia, nas doces e sublimes viagens que integram os variados estados da alma humana.

 

 

Referências:

 

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cutrix, 1994.

DUARTE, Lélia. Rotas e Imagens: Literatura e outras viagens. Org. Aleilton Fonseca e Rubens Pereira. Feira de Santana: Uefs, 2000.

ROSA, Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

 


Autor: Ulisses Macêdo Júnior


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