Sonho e pesadelo



Conselho Brasileiro de Psicanálise

( I.N.N.G.)

SONHO E PESADELO

 

Dr. Wgner Paulon

    1984 - 2012

 

Sono e insônia.  

O sono é o modo de comportamento, pelo qual o organismo dá satisfação à necessidade de repouso ou, mais especificamente, à necessidade de dormir. Um sono calmo, sem sonho, corresponde à mais completa redução de tensão que um organismo vivo pode normalmente atingir. O indivíduo dormindo não quer conhecer mais nada da realidade; o sono constitui, assim, um estado de fraqueza relativa do ego, e um reforço dos outros sistemas de motivações é de ações, isto é, do id ou do superego. Geneticamente, Freud deu-lhe o sentido de um retorno à existência pré-natal: “Criamo-nos pelo menos condições perfeitamente análogas àquelas dessa existência: calor, escuridão, ausência de excitações. Alguns de nós se enrolam como um pacote apertado e dão ao corpo, durante o sono, uma atitude análoga àquela que tinham nas entranhas maternas”.

 

O sono implica, pois, o domínio do desejo de dormir e o enfraquecimento das outras necessidades. Por conseguinte, as perturbações do sono, um sono pouco reparador ou a ausência de sono resultam da emergência de tensões perturbadoras. O mecanismo de certas insônias é evidente, quando o sono é perturbado por estímulos externos ou por preocupações agudas e conscientes, uma espera carregada de emoções agradáveis ou desagradáveis, uma excitação sexual sem satisfação, uma cólera reprimida. Nos casos menos evidentes, a perturbação tem origem nas necessidades ou emoções recalcadas, freqüentemente a associação de uma tentação e do medo de um castigo, por exemplo, medo de masturbação e de polução, medo de matar e de ser morto. O próprio enfraquecimento temporário do ego pode ser temido, no sentido que faz o adormecido menos capaz de defender-se contra os impulsos não aceitáveis e que ele próprio pode ter o sentimento de um castigo. Em outros indivíduos, pelo contrário, o sono é utilizado como uma defesa contra a realidade pouco satisfatória ou contra tensões desagradáveis.

 

O sonho.

O sonho é uma atividade do homem adormecido, pelo qual o ego, que deseja dormir, procura reduzir as motivações que tendem a acordar o dormidor; daí as duas fórmulas célebres de Freud:

1 - “O sonho é o guardião do sono”, e

2 - “o sonho é a realiza-ção de um desejo”.

 

De modo mais complexo, a produção do sonho não é, pois, essencialmente diferente da do ato falho.

 

As fórmulas freudianas encontram a mais simples aplicação nos casos em que a tendência perturbadora se desenvolve sem obstáculo da realidade ou do ego. Assim ocorre quando o ego e o senso de realidade são pouco desenvolvidos, como nas crianças.

 

Lembremos um exemplo de Freud:

Um menino de vinte e dois meses é encarregado de oferecer a alguém, como congratulação, um cesto de cerejas. Ele o faz claramente de má vontade, apesar da promessa de receber como recompensa algumas cerejas. No dia seguinte, conta ter sonhado que “He(r)mann comeu todas as cerejas”.

 

Esses sonhos do tipo “infantil” sobrevêm igualmente ao adulto, mormente sob pressão de necessidades fisiológicas imperiosas (fome, sede, necessidades sexuais, necessidade de evacuação).

 

Habitualmente, as coisas não são tão simples: o sonho surge desprovido de sentido com uma tonalidade afetiva enigmática ou neutra; o sonhador diz, falando de seu sonho, que este é absurdo, esquisito, curioso. Para começar, o pensamento do sonho não tem a estrutura do pensamento de vigília: o conteúdo manifesto é uma abreviação do conteúdo latente (condensação); cada elemento manifesto depende de vários pensamentos latentes (superdeterminação); a carga afetiva se desprende de seu objeto verdadeiro e incide sobre um objeto acessório (transferência); o pensamento conceitual expressa-se em representações visuais (dramatização); usa símbolos ou universais, ou de origem cultural e individual (simbolização); enfim, ,o ego do sonhador, à medida que se aproxima da vigília, introduz nas suas produções oníricas uma ordem lógica ou uma interpretação tendenciosa (elaboração secundária). Esses mecanismos, dos quais os três primeiros caracterizam o “processo primário”, não têm somente um alcance descritivo, possuem uma função: no sonho de tipo infantil, a satisfação pode ser sem disfarce porque não provoca objeção do ego; se, pelo contrário, a necessidade ou o afeto perturbadores do sono são de natureza a provocar um conflito com o ego, o sonho só pode cumprir sua função de guardião do sono se o seu significado for suficientemente camuflado. Os mecanismos de elaboração do sonho permitem um compromisso entre as exigências do ego e as motivações recalcadas. Freqüentemente, a atividade de defesa do ego é o que aparece mais claramente no conteúdo manifesto. É a esta atividade que Freud, em (A Interpretação dos Sonhos), deu o nome de “censura”.

 

Exemplo:

Uma jovem senhora, casada, sonha que vai a um edifício ocupado por americanos. Mostram-lhe um álbum de fotografias, ela escolhe um par para uma vesperal dançante, dão-lhe uma entrada. Compreende que se trata de outra coisa, mas acalma seus escrúpulos: o par que escolhera é um homem encantador que não poderia exigir mais do que ela lhe pode conceder; ela vai como jornalista, para ver do que se trata. Aqui, o sonho torna-se mais confuso: ela foge; alguém dá-lhe um tiro, no escuro; ela escapa outra vez e salta para dentro de um ônibus em movimento.

 

Este sonho dramatiza um desejo de infidelidade. O desenvolvimento da defesa do ego é fácil de seguir. A escolha de um par para uma vesperal dançante dissimula a escolha de um amante. A sonhadora compreende muito bem que deve combater sua culpabilidade por meio de racionalizações: o eleito não exigirá nada além do que possa conceder; ela vai como jornalista, para informar-se. Estas medidas de defesa fracassam: o ego recorre então à confusão, ao esquecimento de uma parte do sonho e à fuga. Mas o conflito entre a sexualidade e a culpabilidade torna-se mais agudo; o tiro à noite é um compromisso, um símbolo ao mesmo tempo de agressão sexual e de punição; da mesma forma, o salto para o interior do ônibus concilia a fuga com a relação sexual, freqüentemente simbolizada por um deslocamento em algum veículo.

 

Qualquer que seja a transparência de um sonho, quaisquer que sejam a intuição e a experiência do Psicanalista, o sonho necessita de um trabalho de interpretação. Em (A Interpretação dos Sonhos), Freud preconiza a investigação das associações de idéias do sonhador a respeito dos diversos fragmentos do sonho, sendo que essa fragmentação tem por finalidade eliminar sua significação aparente e sua elaboração secundária. Para nós, esta técnica não é mais empregada; o Psicanalista limita-se, no máximo, a provocar associações de idéias sobre certos pontos do sonho. A estruturação e a elaboração secundária do sonho, mesmo a sua interpretação espontânea pelo sonhador são utilizadas como indícios da atividade defensiva do ego: um analisado, por exemplo, dá ao analista onipotente um sentido de submissão masoquista a um sonho de agressão dirigido contra ele. Em geral, esforçamo-nos por apanhar o sentido do sonho no movimento mesmo da análise, recolocando-o no seu contexto, situando-o em relação aos diversos sistemas de referência oferecidos pela situação psicanalítica, a vida corrente, o estado corpóreo, o passado e a infância. A interpretação do sonho é subordinada à conduta geral da análise; mui freqüentemente, novos problemas surgem antes do término da análise; inversamente, as partes de um sonho que ficaram confusas podem ser esclarecidas pelo desenvolvimento da análise.

 

Nos últimos anos, uma das contribuições mais originais para a psicanálise dos sonhos foi a de Bertram D. Lewin. Para este autor, o sono é um retorno ao estado de satisfação oral do lactenté, que dorme quando já ficou satisfeito. “O painel do sonho” representa o seio materno e a realização do desejo de dormir. Os desejos parasitas pré-conscientes ou inconscientes, que ameaçam acordar o sonhador, formam os conteúdos visuais do sonho e realizam outros desejos além do de dormir.

 

O sonho penoso e o pesadelo.

A fórmula “o sonho é a realização de um desejo” não pode, portanto, ser tomada ao pé da letra, salvo no caso do “sonho infantil”. O desejo que o sonho realiza é o desejo de dormir que tem o ego. O sonho só se desenvolve e cumpre completamente sua função de guardião do sono se a atividade de defesa do ego tiver êxito. Em caso contrário, o sonho toma uma tonalidade ansiosa, ou é interrompido por um despertar ansioso, como no medo noturno das crianças.

 

Há sonhos cujo conteúdo manifesto parece estar em contradição evidente com a realização de um desejo: são aqueles em que o sonhador sofre um tratamento penoso, por exemplo, um julgamento, uma condenação à morte. A explicação disto é geralmente simples: a necessidade dominante libertada pelo sono é uma necessidade de castigo (masoquismo moral); a punição pode então sobrevir após o delito, ou mesmo antes.

 

Exemplo:

Eis aqui a parte do sonho de um rapaz de vinte anos, no qual a crise de puberdade se havia prolongado numa neurose obsessiva grave: “Estamos brincando com camaradas mais ou menos da mesma idade. Minha irmã e eu aproximamo-nos de meu pai e torcemos-lhe os punhos, por vingança. As pessoas presentes acham assaz vergonhoso atacar um homem de idade e nos desaprovam. Vem-me a idéia de pedir perdão. Não sei o que minha irmã recebe como castigo, talvez um par de bofetadas de meu pai. Ponho-me de joelhos para pedir perdão. Meu pai dá-me bofetadas, primeiro leves, depois, cada vez mais fortes e, enfim, formidáveis socos no rosto. Sentia dor como se os estivesse recebendo de verdade. Depois, senti um movimento de cólera..."

 

A chave do sonho era a culpabilidade sexual dividida com a irmã, que, no passado, havia sido castigada pelos pais; a autoridade paterna permanecera como obstáculo à liberdade sexual. O sonho satisfez assim um desejo de revolta e de vingança contra o pai, que inspira um intenso sentimento de culpabilidade e uma necessidade de expiação: “Fui eu que pedi o castigo, era uma coisa tão ruim. Meu pai não queria dar-me bofetadas, e elas aumentaram porque eu pedi mais”. A punição sofrida liberta, por sua vez, um movimento de cólera contra o pai. Além disso, a interdição do incesto e de toda sexualidade levava à passividade homossexual em relação ao pai; nesse sentido, o sonho revela, não apenas o masoquismo moral, mas também o masoquismo erógeno, isto é, fonte de prazer, mas de um prazer neurótico que só pode ser vivido como algo desagradável, porque não é aceitável pelo ego.

 

Existe, todavia; uma categoria de sonhos que parecem irredutíveis à realização de um desejo infantil:

são os sonhos da neurose traumática, nos quais o sonhador revê sem cessar, de maneira estereotipada, o acontecimento traumático que determinou sua doença. Segundo Freud, esses sonhos obedecem ao automatismo de repetição, tendo esta por finalidade “criar no paciente um estado de angústia que lhe permita escapar às garras da excitação sofrida, angústia cuja ausência foi a causa da neurose traumática”; esta função do aparelho psíquico não está em oposição com o princípio de prazer; é mais primitiva:

a tendência do sonho à realização de um desejo é um produto mais tardio. Fenichel expõe a mesma idéia sob forma mais acessível:

o ego arcaico repete ativamente o que viveu passivamente, antes de ser capaz de repetir mentalmente e antecipar (angústia);  o sonho de repetição traumática é uma regressão a este modo primitivo de domínio; ele traz uma descarga retardada;  além disso, torna possível o sono, apesar da tensão interior.

 

Há casos nos quais é possível demonstrar a conformidadp do sono traumático com um desejo recalcado; isto quer dizer que o traumatismo já estava de acordo com esse desejo, e que sua qualidade de traumatismo é ligada a esta conformidade, porque o desejo não podia realizar-se sem contrariar violentamente a defesa do ego.

 

Exemplo:

Uma mulher de quarenta e quatro anos, viúva de guerra, apresenta um estado de luto patológico, estabelecido uns dias após a morte de seu filho único, morto num acidente de automóvel. Durante o dia, ela evoca o drama, sua partida, o pronto socorro, seu filho no ataúde. À noite, ela não dorme, angustiada pelo sentimento de presença do filho; se dorme, acorda com pesadelos de repetição, nos quais revê o filho morto, estendido numa mesa do pronto socorro, a cabeça coberta de bandagens. Desde as primeiras sessões, o sono melhora e sonhos substituem os pesadelos. Num primeiro sonho, o filho é pequeno; penteando o menino, percebe que ele tem piolhos na cabeça, o que a surpreende. Lembra-se de um pequeno vizinho a quem acontecera o mesmo “acidente”. O filho morreu acidentalmente, de uma fratura no crânio. Na noite de sua morte, ela lhe havia recusado dinheiro e o censurara de gastar muito; ela “procurou o animalzinho”, “procurou nele piolhos”. Fica-se acusando por isto, ela mesma tem “somente motivos como este na cabeça” (identificação). Evoca igualmente sua ambivalência para com o irmão dezoito anos mais moço que ela, cujo nascimento acolhera muito mal.

 

Sua ambivalência para com o filho querido aparece mais nitidamente, no segundo sonho: “Tenho em meus braços uma criança enfaixada, menos os pés; o garoto me aborrece, ponho-o num canapé com uma almofada sob a cabeça”.

 

Ela evoca numerosas lembranças relativas ao nascimento do irmão; uma sobrinha, presente no sonho, advertira-a a respeito, e ela recebera a notícia muito mal; em seu sonho é como se tivesse outro irmão. Antes da morte do filho, acontecia-lhe freqüentemente sonhar com crianças que carregava em seus braços e que a incomodavam; o filho impediu-a de casar-se novamente ou de ter uma ligação. As alusões ao acidente ressaltam da almofada que ela põe sob a cabeça da criança, daí a criança parecer como que mumificada (realiza ativamente o que sofreu passivamente). Em várias ocasiões queixa-se de ser obcecada pelo filho que está perto dela, e a tortura: queria estar alhures.

 

O sonho permite reconstituir a posição da doente antes do drama. Liga-se a uma ambivalência antiga motivada pelo nascimento tardio do jovem irmão, frustração de amor e de liberdade. Esta ambivalência serviu de suporte à ambivalência para com o filho, obstáculo à sua liberdade sexual. Ela amou muito mais o filho, não somente por concentração da libido, mas pela necessidade de compensar e recalcar a hostilidade inconsciente. Nestas condições, a morte do filho não significava apenas a perda de seu principal objeto de amor; era a gratificação brutal de uma hostilidade profundamente recalcada. A repetição do drama nos pesadelos não significa apenas o extravasamento do ego nem seu recurso a uma forma de dominação arcaica por repetição ativa: ele a protege contra a hostilidade recalcada contra o filho, hostilidade cuja libertação era necessária para a realização do trabalho do luto e o desapego da libido.

 

As dificuldades da fórmula “o sonho é a realização de um desejo” e de um desejo que data da infância se reduzem, se se tem presente ao espírito a idéia de que o desejo cuja execução é garantida pelo sonho, é o desejo de dormir do ego. O sonho é uma tentativa para reduzir as tensões cujo aumento excessivo acarreta a angústia, o pesadelo e o despertar.

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Autor: Wagner Paulon


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