Situação De Quilombos No Estado Do Pará



UMA BREVE EXPERIÊNCIA ENTRE OS QUILOMBOLAS DE ORIXIMINÁ (PA)

Regiane Gomes Barbosa

No mês de maio de 2008 tive a oportunidade de conhecer o município de Oriximiná, no oeste do Estado do Pará. Isto aconteceu por necessidade profissional, uma vez que estava trabalhando na elaboração de um diagnóstico destinado a um projeto, para o qual estava prestando consultoria.

Dentre as riquezas de experiências que pude vivenciar em minha visita algumas me chamaram a atenção, com especial destaque para a beleza paradisíaca, quase intocada, da floresta, e a majestosa presença do Rio Trombetas. Recordo que cheguei a passar horas navegando sobre ele, com uma lancha veloz, sem nada ver além de árvores, pássaros dos mais variados tipos e plumagens exóticas, e a água do rio, que parecia um tapete marrom, sem rugas, uniforme, passando a vívida impressão de ser consistente o bastante para que eu pudesse andar sobre ele a qualquer momento. Naquele momento me sobreveio uma enorme e acachapante sensação de isolamento, junto com a constatação bem clara de que estava realmente muito distante de qualquer lugar. Não pude deixar, também, de anotar mentalmente que, na hipótese bem plausível de algum tipo de mal me acontecer, seria quase certo que haveria muita dificuldade em ser localizada.

O meu trabalho de diagnóstico era realizado em comunidades quilombolas, muitas delas surgidas há mais de cem anos, ainda no período da escravidão. No total, visitei dez comunidades, cada uma formada em média por 200 a 400 famílias, assentadas ao longo dos braços de rios que desembocam em grandes lagoas. Não ficam tão distantes uma das outras, mas como o acesso a elas se dá exclusivamente pelo rio, o trajeto se torna longo e demorado porque tem de obedecer o traçado caprichoso desses caminhos d'água, verdadeiras estradas dos povos amazônidas.

Dentre todas as comunidades quilombolas que visitei, me ficou bem vívida a lembrança dos momentos que passei na comunidade denominada Abuí. Ela está localizada a quase 14 horas de barco da sede de Oriximiná. Utilizando a lancha, ou voadeira, no jargão dos ribeirinhos, levei apenas 3 horas para chegar. No trajeto, fui conversando com o piloto da lancha, "seu" Carlos, que me declarou ser originário da própria comunidade que iríamos visitar. Ele me relatou as dificuldades que sofreu durante a juventude, quando, segundo ele, tudo era mais difícil para os quilombolas. O deslocamento, por exemplo, era, nas palavras do "seu" Carlos, "feito no braço", ou seja, utilizando a força de remadores. Por conta disso, comparou ele, o trajeto que fazíamos naquele momento, e que levaria 3 horas utilizando a voadeira como transporte, levava, em média, 3 dias na época em que os quilombolas contavam apenas com remos para impulsionar as embarcações deles. Naquele momento, retornei, mentalmente, para uma época bem mais distante daquela vivida pelo "seu" Carlos e me pus a imaginar as privações que os primeiros quilombolas que lá havia chegado, ainda no tempo da escravidão, teriam passado. Eles vinham, principalmente, de Santarém, procurando o refúgio dos quilombos que se formaram no Alto Rio Trombetas. Era uma fuga arriscada, com garantia de muitos castigos se fossem apanhados. Havia, ainda, os perigos da própria viagem, feita em canoas, na maioria das vezes durante a noite, para não cair novamente prisioneiros dos capitães-do-mato a mando dos senhores de escravo. Não era incomum algum dos fugitivos sucumbir vitima de picada de cobras venenosas ou ser estraçalhado uma onça pintada, como, aliás, ainda habitam aquelas florestas.

Antes de visitar as comunidades quilombolas, ouvi de moradores de Oriximiná comentários de que, no dias de hoje, ser quilombola era algo que concedia status, e por isso muitos negros destas comunidades estavam ricos. No entanto, em minhas visitas a única riqueza que encontrei foi a de recursos naturais, como de resto é algo muito comum quando se trata da floresta amazônica. Até mesmo outro tesouro dos quilombolas, que é a cultura e as tradições transmitidas pelos ancestrais fundadores dos quilombos, nos dias de hoje já está quase perdida, principalmente pela morte dos membros mais velhos das comunidades, aliado do desinteresse dos mais novos e dar continuidade ao legado cultural dos mais antigos, que ainda enfrenta a dificuldade de ser em quase sua totalidade transmitido oralmente. Pude constatar isto conversando com os jovens das comunidades, que na maioria das vezes não sabiam dizer como havia se formado aquela comunidade ou como os negros chegaram até aqueles rincões no Alto Rio Trombetas. Somente os membros mais velhos por mim entrevistados, todos na faixa de 70 a 80 anos, souberam me informar sobre acontecimentos, cultura e tradição dos quilombos que visitei.

A verdade é que não muita coisa mudou para os negros do Alto Rio Trombetas. As dificuldades matérias enfrentadas por eles ainda estão muito próximas àquelas vividas pelos seus ancestrais, que lá chegaram à época da escravidão. Tendo como parâmetro os índices previstos na escala do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), pode-se dizer que os quilombolas estão numa situação de quase miséria. O quadro daquelas populações só não é pior porque as riquezas naturais que os cercam possibilitam que eles cacem, pesquem e coletem frutos para a subsistência, afastando a possibilidade de que a fome atinja os negros do Alto Rio Trombetas.

Afastada as dificuldades na produção ou coleta de alimentos, os quilombolas amargam a ausência de infraestrutura mínima, presente em qualquer comunidade urbana. Nos quilombos que visitei, pude constatar que não havia escolas e nem postos de saúde. Apenas alguns deles possuíam água apropriada para o consumo somente no centro da comunidade, em poços de uso coletivo. Muito poucas têm barco próprio, conseguidos através de doação. Os problemas de saneamento também estão presentes de maneira bem visível. Nenhuma das casas que visitei possuía banheiro. Os moradores fazem as necessidades fisiológicas em latrinas cavadas nos quintais das moradias, cercada por paredes feitas de palha. Os banhos são feitos nos rios, onde também são lavadas as roupas.

Essa situação não chega a ser novidade para os habitantes da região amazônica, que cotidianamente mantém contato com a dura realidade dos nossos povos ribeirinhos e das comunidades indígenas. No entanto, quando fiz um relato desse quadro a outros consultores que visitaram quilombos situados na região Nordeste, eles se mostraram surpresos pelo fato de eu ter conseguido realizar o meu diagnóstico. Minha resposta foi simples: sou paraense, negra e já acostumada com nossas diversidades e adversidades, sabia o que iria encontrar em minhas andanças pelo interior do meu Estado.

Porém, também podemos ser estrangeiros em nossa própria terra. Isto ficou claro para mim quando almocei na casa da mãe do "seu" Carlos, o piloto da voadeira que me levou até Abuí. Na hora de servir a comida, ela, esquecendo que sou também negra, falou: a senhora veio comer babuje (comida) de nego? Então a senhora vai se babujar (lambuzar) !! E eu comi por duas vezes o cardápio, pacu, um peixe comum na região, feito no leite da castanha-do-pará, uma fruta cultivada de maneira extrativista na região. Depois do almoço, o marido da minha anfitriã saiu para caçar o jantar da família, que seria guariba, uma espécie de macaco. Devo dizer que fiquei aliviada de não ter que ficar para o jantar...

Desta minha breve experiência entre os quilombolas do Alto Rio Trombetas, fica o desejo de que nossas populações que habitam a floresta amazônica, sejam de origem negra, cabocla ou índia, consigam receber um tratamento mais adequado dos governantes para que possam sair das condições quase sub-humanas nas quais vivem, em sua maioria. A nós, membros mas esclarecidos desta região, cabe a cobrança, denúncia, e também apontar as possíveis soluções para que o amazônida consiga atingir a cidadania plena, sem clientelismo político ou concessões a quaisquer outros grupos que aqui cheguem para obter vantagens às custas do nosso sofrido povo.


Autor: regiane barbosa


Artigos Relacionados


PolÍtica ComunitÁria

Amazônia, Qual é O Nosso Futuro?

Pasma Imaginação

Resumo Histórico Sobre Os Médicos Sem Fronteiras

As Pontuais Mudanças Trazidas Pela Lei 11.689/08 = Júri

Para AlguÉm Que EstÁ SÓ

O Ciclo Do Nitrogênio E A Camada De Ozônio