Lei seca: a face obscura



LEI SECA

A FACE OBSCURA

Arnaldo Chuster[1]

Pobre do país que acredita em soluções exclusivamente repressoras para problemas educacionais. Ou, em outras palavras, pobre do país onde se acredita que autonomia social pode ser criada por medidas heterônomas.

Pior ainda se estes problemas estiverem atrelados a características culturais arraigadas. Pois ao se aplicar a repressão desacredita-se da Educação e se desrespeita a Cultura do seu povo.

A Cultura brasileira é uma cultura de comemoração. Comemora-se de tudo e com ânimo desinibido e, na maior parte das vezes, ingênuo. A bebida faz parte e sempre fez parte destas comemorações. Não havia denúncia de mal nesta relação. Sabia-se que se por ventura ocorria o excesso este não tinha nada a ver com a bebida, mas com problemas emocionais e mentais que continuarão ocorrendo com ou sem a repressão.

É nesta encruzilhada entre Educação/Cultura versus repressão na qual se encontra o que se denomina de Lei Seca em nosso país. Nome de batismo inspirado naquela Lei surgida nos anos 20 nos Estados Unidos da América, cujo desastroso resultado é mais conhecido pela sua faceta do gangsterismo e pelo aumento do consumo de álcool com consequências que perduram até o presente.

Criada pelo puritanismo e pela hipocrisia política (leia-se também fascismo) o desastre social da Lei Seca norte-americana não serviu nem de lição e nem garantiu um pouco do uso da imaginação aos seus repetidores no Brasil do século XXI. Sugere mais um deboche de quem manteve o nome.

Na verdade, a Lei Seca nos Estados Unidos incensava o fascismo que estava rumando para seu auge no século XX. Assim é muito doloroso constatar que aqui se repete a fórmula infame, apesar de transcorridos tantos anos de lições duras da História.

Nada se desenvolve quando a Educação não é valorizada. Ou seja, estamos ainda muito atrasados e fazendo de conta que criamos leis avançadas. Não existem leis perfeitas e nem avançadas, sempre haverá discussões e problemas institucionais obrigando a revê-las.

Louvada como medida que salva vidas a Lei Seca também legaliza o fascismo e insiste em rasgar o Estado de Direito ao acintosamente desrespeitar as leis que garantem a defesa do cidadão. Sobretudo, marginaliza a priori toda população tal como se fazia no regime militar. Surge o pretexto para se parar o cidadão arbitrariamente, humilhá-lo com a falsa cortesia das abordagens policiais. Se o cidadão não está agindo de forma desviante e irregular por que pará-lo em “blitzes” (nome muito usado pelos nazistas)?

Por outro lado, que qualificações possuem estas pessoas para estar ali avaliando o estado mental dos motoristas? Nenhuma. Nem qualificação e nem orientação. Obviamente que um profissional da saúde mental deveria estar presente nestes bivaques da repressão. Mas aí vamos para a questão da honestidade do Estado e seus representantes.

 Na realidade, até hoje nunca se parou seriamente para pensar no dano psíquico e cultural causado pela ditadura no Brasil, mas não é difícil ver muitas das suas consequências na política atual e na mentalidade policial. Assim se repete a maldade e a estupidez depositando confiança na repressão e não na Educação. A face obscura da Lei seca é exatamente isto: cinismo, hipocrisia, repressão policial, truculência, estupidez.

Lembro que nos regimes nazista e fascista a criminalidade caiu muito. Afinal, os criminosos foram todos empregados nas funções perversas do Estado. O indivíduo tinha muitas opções de trabalho no qual exerciam protegidos pela Lei, o mais cruel dos sadismos. Alguém duvida que muitos destes indivíduos que trabalham na Lei Seca não estejam ali para se regozijarem do sofrimento e da dificuldade das pessoas, apoiados pela sanha arrecadadora que alimenta a corrupção maior dos políticos?

Hipocrisia maior quando se constata que a Lei persegue os usuários de bebida alcoólica, mas ignora totalmente que existem milhares de pessoas dirigindo sob o uso de antidepressivos, ansiolíticos, antipsicóticos, anti-histamínicos, relaxantes musculares, e que as estúpidas máquinas não podem detectar. A bula destes medicamentos adverte que não se deve operar máquinas, o que inclui obviamente veículos (não custa assinalar o óbvio para os políticos e pseudo-legisladores).

Tampouco os bafômetros detectam os que dirigem com o ativo efeito de maconha, cocaína, heroína, LSD e demais drogas. Certamente, todas estas substâncias podem causar tanto ou mais acidentes do que o álcool. E se não se pode beber pode-se recorrer a elas. O Estado vai patrocinar o aumento delas e depois se fazer de pateta?

Mais estarrecedor é constatar que existem tentativas de um endurecimento da lei por parte do Legislativo. Nada de estranho na atitude destas pessoas que ocupam tais insignes cargos. Ninguém nota nelas algum resquício de respeito verdadeiro pelas medidas educacionais e pela compreensão melhor do ser humano. Sem esquecer o respeito à História, ao Estado de Direito e, a Constituição Federal. Afinal poucos tiveram qualquer tipo de Educação. E os que tiveram são totalmente pusilânimes com relação ao populismo que possa angariar votos.

Se o Estado deseja proteger as pessoas de problemas causados pela bebida alcoólica que instalem programas educativos desde a primeira escola. Valorizem a Educação e melhorem as condições das escolas e dos professores. Criem programas de educação no trânsito, pois este é uma faceta projetada do espaço social.

Também preparem melhor as polícias para orientar o cidadão, criem medidas que possam dar ao contraventor uma nova chance para se educar e se orientar antes de puni-lo com uma severidade cujos benefícios são meramente do lado da voracidade arrecadadora do Estado incompetente.

Vamos dizer Não ao fascismo no Brasil e denunciá-lo nas suas formas disfarçadas em quanto é tempo.

 

[1] Médico Psiquiatra e Psicanalista no Rio de Janeiro

 


Autor: Arnaldo Chuster


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