Uma fraude do "valor econômico"
Lá pelo final de 2010, fui contactado por uma pessoa que trabalha no jornal "Valor Econômico", para produzir algumas resenhas de livros, que seriam publicadas no caderno "Eu & fim de semana", um tablóide sobre cultura que sai com o jornal às sextas-feiras. Muita gente pensa que escrever resenhas é fácil, mas não é bem assim. Leva tempo: é preciso ler o livro todo, que pode tratar de um tema que você não conhece profundamente. A parte mais complicada é escrever um texto interessante e capaz de resenhar adequadamente um livro inteiro dispondo apenas do espaço de uns poucos parágrafos. Pelo que me recordo, gastei pelo menos uma semana para ler os dois primeiros livros indicados pelo jornal, ambos difíceis, e produzir as primeiras resenhas.
Decidi encaminhar primeiro ao "Valor" a resenha que tratava de um livro de História, por motivos óbvios: melhor começar pelo que conheço melhor, né? Enviei a primeira versão do texto para uma editora do jornal, que me sugeriu algumas alterações ótimas, que reconheço terem melhorado consideravelmente o texto. Após as revisões, entreguei o produto final para o editor do caderno. Reproduzo-o abaixo:
Referência bibliográfica: Ingênuos, pobres e católicos: a relação dos EUA com a América Latina / Alfredo da Mota Menezes. – Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 2010.
"Ingênuos, Pobres e Católicos", escrito por Alfredo de Mota Menezes, ex-professor da Universidade Federal do Mato Grosso, aborda o tema da relação entre a América Latina e os Estados Unidos de forma ambiciosa. O autor procura explicar como os norte-americanos vêem seus vizinhos de continente, iniciando sua análise pelo começo do século XIX e estendendo-a até os dias de hoje. Ao longo do texto, Menezes descreve o surgimento de inúmeras idéias preconceituosas acerca da América Latina na sociedade norte-americana, baseadas principalmente nas diferenças de credo religioso e composição racial entre as duas sociedades. Esses preconceitos teriam levado à criação de uma imagem extremamente negativa dos latinos entre os norte-americanos e Menezes afirma que essa imagem estereotipada se mantém imutável nos EUA até hoje.
Após tratar dessa questão, o autor passa a narrar a história das intervenções dos Estados Unidos na América Latina entre o final do século XIX e o início do XX. Ele apresenta a ressalva de que nem sempre as relações entre os dois lados foram conflituosas, destacando o período anterior à 2ª Guerra Mundial como um momento de aproximação, embora o associe à necessidade de combater a influência do fascismo e ao desejo de abrir mais mercados para os produtos norte-americanos. O início da Guerra Fria levou a uma nova onda de interferências dos EUA nos demais países do continente. Menezes explica que a potência passou a patrocinar governos autoritários na região sob o pretexto de conter a expansão do comunismo. Os americanos voltaram a intervir militarmente na América Latina, com ações em países como Guatemala, Honduras e Nicarágua. Com o fim da União Soviética, desapareceu a justificativa para as intervenções dos EUA no continente americano. A partir daí, novas preocupações passam a orientar as relações na região, entre as quais o autor menciona o tráfico de drogas e o crescimento da influência comercial da China na América.
"Ingênuos, Pobres e Católicos" carece de uma revisão mais cuidadosa. O texto apresenta problemas de sintaxe em quantidade suficiente para atrapalhar a leitura e torná-la cansativa. Embora o livro conte com uma bibliografia extensa, o leitor se ressente da falta de citações textuais. É interessante descobrir que os norte-americanos criticam os latinos por praticarem sexo em excesso, mas falta uma fonte que reforce essa tese e comprove que se trata de uma idéia generalizada nos EUA. A exceção fica por conta das charges que Menezes reproduz no meio do livro, num de seus momentos mais interessantes. Falta também dar mais espaço a outras perspectivas acerca da América Latina encontradas nos Estados Unidos. Nas últimas páginas do livro, o autor menciona que há uma volumosa produção acadêmica acerca da região nas universidades americanas, mas não faz maiores comentários sobre disso. Mesmo que a visão majoritária sobre a América Latina dentro dos EUA seja de fato preconceituosa, é importante observar que o país também produziu outras formas de compreender a região.
O livro é interessante por dar um panorama geral acerca das relações entre os Estados Unidos e os outros países da América ao longo da história. Deve atrair mais a atenção dos antiamericanos convictos, que se identificarão com o tom apaixonado do texto, e de seus adversários mais ferozes, que vão se divertir ao procurar falhas nos argumentos apresentados. Os leitores interessados em se aprofundar mais no tema podem também procurar obras que citem mais as suas fontes e apresentem uma argumentação mais consistente.
Conforme fui instruído, entreguei o texto sem título, que ficaria a encargo do editor. Quanto à resenha: pode ter inúmeros defeitos, ser chata, idiota, mal escrita - reconheço perfeitamente que não sou um bom escritor - mas era a minha resenha, escrita de acordo com as minhas convicções e por cujo conteúdo me considero 100% responsável. Ao abrir o jornal no dia da publicação do texto - meu primeiro trabalho que saía no jornal - tive a desagradável surpresa de me deparar com uma versão bem diferente da "minha" resenha, porém assinada com o meu nome:
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Tortuosos olhares americanos
Por Por Eduardo Vanin | Para o Valor, de São Paulo
"Ingênuos, Pobres e Católicos: a Relação dos EUA com a América Latina", escrito por Alfredo de Mota Menezes, ex-professor da Universidade Federal de Mato Grosso, aborda de vários ângulos o tema das relações entre a América Latina e os Estados Unidos. O autor procura explicar como os americanos veem seus vizinhos de continente em análise que vem do começo do século XIX e se estende até a atualidade. Menezes descreve o surgimento de numerosas ideias preconceituosas acerca da América Latina na sociedade americana, baseadas principalmente nas diferenças de credo religioso e composição racial entre as duas sociedades. Esses preconceitos teriam levado à criação de uma imagem extremamente negativa dos latino-americanos nos Estados Unidos. Configurou-se, assim, um estereótipo que, segundo o autor, pode ser observados naquele país ainda hoje.
Após tratar dessa questão, Menezes passa a narrar a história das intervenções dos Estados Unidos na América Latina, entre o final do século XIX e o início do XX. Ele apresenta a ressalva de que nem sempre as relações entre os dois lados foram conflituosas, destacando o período anterior à Segunda Guerra Mundial como um momento de aproximação, embora o associe ao interesse americano por combater a influência do fascismo e abrir mercados na região.
O início da Guerra Fria levou a uma nova onda de interferências dos Estados Unidos nos demais países do continente. Menezes explica que Washington passou a patrocinar governos autoritários na região sob o pretexto de conter a expansão do comunismo. Os americanos voltaram a intervir militarmente na América Latina, com ações em países como Guatemala, Honduras e Nicarágua. Com o fim da União Soviética, desapareceu a justificativa para as intervenções no continente americano. A partir daí, novas preocupações passam a orientar as relações na região, entre as quais o autor menciona o tráfico de drogas e o crescimento da influência comercial da China na América.
"Ingênuos, Pobres e Católicos" carece de uma revisão mais cuidadosa. O texto apresenta problemas de sintaxe em quantidade suficiente para atrapalhar a leitura e torná-la cansativa. Embora o livro conte com uma bibliografia extensa, o leitor se ressente da falta de citações textuais. É interessante descobrir que os americanos criticam os latinos por praticarem sexo em excesso, mas falta uma fonte que reforce essa tese e comprove que se trata de uma ideia generalizada nos Estados Unidos. A exceção fica por conta das charges que Menezes reproduz no meio do livro, num de seus momentos mais interessantes. Falta também dar mais espaço a outras perspectivas acerca da América Latina encontradas nos Estados Unidos. Nas últimas páginas do livro, o autor menciona que há uma volumosa produção acadêmica acerca da região nas universidades americanas, mas não faz maiores comentários sobre isso. Mesmo que a visão majoritária sobre a América Latina nos Estados Unidos seja de fato preconceituosa, é importante observar que o país também produziu outras formas de compreender a região.
No panorama acerca das relações entre os Estados Unidos e os outros países da América ao longo da história, descrito no livro, antiamericanos convictos provavelmente se identificarão com o tom apaixonado do texto, ou se divertirão ao procurar falhas nos argumentos apresentados pelo autor. Os interessados em se aprofundar mais no tema poderão também preferir sair em busca de obras mais generosas na citação de fontes e que apresentem uma argumentação mais consistente.
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Há vários motivos legítimos pelos quais um editor pode fazer alterações num texto antes de sua publicação, como correções de erros de português ou questões de estilo. O editor conhece de perto o jornal e pode achar que certas frases não estão de acordo com sua linguagem habitual ou pensar que um determinado trecho de um parágrafo não ficou legal. Tudo isso é absolutamente normal e corriqueiro. O problema está em alterar conteúdo, ou mesmo inverter significados, sem comunicar ao autor original do texto, e publicá-lo com sua assinatura, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Publicar algo que uma pessoa não escreveu como se fosse de sua autoria é imoral.
Gostaria de examinar mais de perto as alterações que foram feitas na resenha, explicar a atitude que tomei em relação ao episódio e então fazer alguns comentários acerca das lições que aprendi com essa história toda, porque acho que os leitores poderão talvez aproveitar um pouco essa minha experiência. A primeira diferença é o título, "Tortuosos olhares americanos". Pessoalmente, achei péssimo, um negócio piegas que eu jamais teria escolhido e que, francamente, não tem nada a ver com o conteúdo da resenha. Mas entreguei conscientemente o texto sem título e, dessa forma, sabia que poderia ser publicado com qualquer título e dei meu acordo tácito a isso, então não tenho do que reclamar quanto a essa questão. Outras alterações são cosméticas: eu havia omitido o subtítulo do livro na primeira frase, para economizar toques, mas o editor preferiu incluí-lo; trata-se de uma questão de estilo. Em seguida, ele corrigiu acertadamente um equívoco: no lugar de "Universidade Federal DO Mato Grosso", ficou "Universidade Federal DE Mato Grosso". O nome correto da instituição é mesmo com a proposição DE, um detalhe bem percebido.
A próxima mudança é a substituição de "aborda de forma ambiciosa" para "aborda de vários ângulos". Trata-se de uma alteração estranha, provavelmente provocada por alguma preocupação estilística, mas acontece que as frases evidentemente não significam a mesma coisa, ou seja, trata-se da primeira alteração de conteúdo. O problema aqui é que não concordo com a frase do editor, pois não me parece que o livre aborde as relações entre América do Norte e América do Sul "de vários ângulos". Na verdade, ele trata a questão de um único ângulo, que é o do anti-americanismo. É claro que o editor tem todo o direito de não concordar comigo, mas ele não pode publicar o texto, usando meu nome, com uma informação com a qual não concordo. A meu ver, essa frase transmite uma primeira informação falsa.
A próxima alteração é a troca de "iniciando sua análise pelo começo do século XIX e estendendo-a até os dias de hoje" por "análise que vem do começo do século XIX e se estende até a atualidade". Trata-se de uma alteração de estilo que não muda o conteúdo, embora neste caso eu considere a troca discutível, pois penso que a frase original transmite melhor o conteúdo pretendido. Outras pequenas mudanças de estilo se seguem, como a palavra "inúmeras" substituída por "numerosas" (dá no mesmo).
No final do primeiro parágrafo, aparece uma das alterações que mais me incomodaram. A frase "Menezes afirma que essa imagem estereotipada se mantém imutável nos EUA até hoje" foi trocada por "Configurou-se, assim, um estereótipo que, segundo o autor, pode ser observados naquele país ainda hoje.". Relendo a frase original, admito que a palavra "imutável" estava um tanto fora de lugar e que uma alteração estilística seria compreensível. Agora, alteração estilística com um erro grotesco de concordância ("pode ser observados") é simplesmente de lascar. Passei uma semana trabalhando nessas resenhas e jamais deixaria "pode ser observados" passar. Não se trata de ser arrogante e dizer que nunca cometo erros de português. Todo mundo escorrega de vez em quando. Ocorre que, no terceiro parágrafo da resenha, faço uma crítica ao português do autor, o professor Menezes. É claro que, ao fazer isso, tive uma atenção redobrada à qualidade gramatical da resenha - ficaria muito feio criticar o português do cara e cometer algum erro num texto que, afinal de contas, só tem quatro parágrafos. Ainda mais, convenhamos, uma coisa do nível de "pode ser observados". Fiquei com muita vergonha dessa brilhante inovação que o Sr. editor resolveu incluir na resenha. Para mim, o que isso revela é uma total falta de atenção da parte dele ao realizar a edição (não é possível que um editor do "Valor" não saiba concordância verbal) e, mais grave, demonstra que o cara não se deu ao trabalho (de cinco segundos) de passar o texto num revisor ortográfico, que imediatamente detectaria o problema, antes de encaminhá-lo para publicação. Revisor que publica texto sem sequer usar corretor ortográfico - o que, repito, demora segundos - está fazendo seu trabalho de qualquer jeito.
Os dois próximos parágrafos contém algumas alterações de estilo, sem maior relevância. O último parágrafo é aquele em que o principal problema da edição aparece. Para começo de conversa, a frase "No panorama acerca das relações entre os Estados Unidos e os outros países da América ao longo da história, descrito no livro, antiamericanos convictos provavelmente se identificarão com o tom apaixonado do texto, ou se divertirão ao procurar falhas nos argumentos apresentados pelo autor." sequer faz sentido. O que isso quer dizer? "No panorama descrito no livro antiamericanos se identificarão com o tom apaixonado do texto"? A frase não tem sentido gramatical, é indecifrável. Eu falo muita besteira, mas acho que mereço pelo menos reconhecimento por não escrever frases que não querem dizer nada. Além disso, há no trecho uma inversão de sentido: o original dizia que "antiamericanos se identificarão com o tom apaixonado do texto" e que "seus adversários mais ferozes vão se divertir ao procurar falhas nos argumentos apresentados". Ou seja, que os pró-americanos vão achar os argumentos do livro ridículos. O texto editado afirma exatamente o contrário: que são os antiamericanos que vão se divertir procurando falhas nos argumentos. Não é aceitável inverter o conteúdo de um artigo, durante o processo de edição, sem autorização ou mesmo ciência do autor original. Agora, não creio que isso tenha sido feito propositadamente. Acredito que o editor tenha feito a revisão com tanta pressa que nem leu o texto direito. Na edição, escreveu qualquer coisa, meio que aleatoriamente. O resultado não poderia ser outro: uma gigantesca abobrinha.
O problema no quarto parágrafo não pára por aí. A edição gerou uma frase contraditória. Para o editor, ao mesmo tempo, os antiamericanos se identificam com o texto e o acham ridículo. Como é que tal coisa poderia fazer sentido? Trata-se de uma contradição total. Além disso, a frase também entra em contradição com o conteúdo do restante da resenha, em que se dá a entender que há excesso de antiamericanismo no livro. Em resumo: a frase não tem sentido, é contraditória e também entra em contradição com o contexto. Para piorar as coisas, a última frase sugere que os leitores procurem livros que apresentem argumentações mais consistentes. Ora, na versão editada, tal exortação se revela absolutamente patética - como pode um sujeito falar em argumentação consistente quando acabou de entrar, de forma grotesca, em contradição?
Talvez eu precise explicar a razão de ter ficado tão emputecido com isso. Acontece que historiadores se preocupam muito, mas muito mesmo, com a questão da coerência argumentativa. Não é possível voltar ao passado para vê-lo com nossos próprios olhos, de forma que o historiador é obrigado a recorrer à argumentação para provar suas posições ou para refutar posições contrárias. Daí a ênfase que os historiadores (principalmente aqueles que seguem a mesma linha teórica que eu) dão à Lógica, ciência que estuda os argumentos. Para um historiador, entrar em contradição - especialmente em um texto curtíssimo, com apenas quatro parágrafos ou, pior ainda, no espaço de uma só frase - pode ser bastante vexativo.
Antes de ser esquartejada pelo Sr. editor, minha resenha já tinha passado pelo crivo de uma editora, que ocupa um cargo hierarquicamente superior ao dele. Para mim, a forma final do texto já estava aprovada para publicação. Fiquei totalmente surpreso quando abri o jornal e me deparei com um negócio totalmente diferente do que havia escrito. E aqui acho que convém explicar o título deste artigo. Segundo o "Aurélio", fraude é "1. Logro. 2. Abuso de confiança (...) 4. Falsificação, adulteração." Cometer fraude consiste em apresentar algo como se fosse alguma coisa que, na realidade, não é. Um exemplo clássico é o do estelionatário que vende para um ingênuo um pedaço de papel, afirmando que se trata de um título de propriedade, quando na verdade aquele documento não tem valor legal. Considero essa resenha publicada pelo "Valor" uma fraude: ela se passa por um texto escrito por mim, mas não posso ser considerado seu o autor, pois meu original tinha conteúdo radicalmente diferente. O verdadeiro autor daquilo que foi publicado é o Sr. editor.
Quando descobri o que havia acontecido, imediatamente decidi que não poderia mais trabalhar para o "Valor". Se não posso confiar no jornal ao entregar uma simples resenha de livro e não encontro condições de ter a menor idéia da forma final com que meus trabalhos serão publicados, imaginem o que não poderia acontecer se porventura se tratasse de algum tema mais polêmico (digamos, política). Poderia sair absolutamente qualquer coisa publicada com meu nome. Não concordo com essa forma de trabalhar e, sendo assim, compreendi que seria melhor seguir outro caminho. Enviei uma mensagem para a editora que conhecia e expliquei-lhe que não queria mais trabalhar ali, agradecendo profundamente por sua ajuda. Quando recebi uma mensagem da pessoa que cuida dos pagamentos do jornal, expliquei-lhe que abriria mão do dinheiro. Tomei essa decisão por considerar que receber o pagamento seria equivalente a aceitar aquilo que foi publicado, o que não me parecia correto. No fim das contas, a história toda me custou uma semana de trabalho e não ganhei sequer um tostão. Algum tempo depois, o tal do editor me mandou um e-mail com teor altamente irônico. Acredito que ele escreveu essa mensagem a pedido de alguém, mas essa é só uma suposição. Lembro-me de que dizia algo como: "Prezadíssimo Eduardo, gostaria de contar com o brilhantismo de Vossa Senhoria para futuras contribuições" ou alguma idiotice do tipo. Se ele achou tão brilhante, por que alterou o texto inteiro? Fiquei muito puto e respondi: "Caro Fulano, nem que a vaca tussa. Muito obrigado, Eduardo." Achei engraçado. Não fui educado, mas também não fui ofensivo. O que ele fez comigo não foi bacana.
Alguns dias depois, fui conferir se o texto se encontrava na internet e aí descobri que a versão editada também tinha sido publicada no site do "Valor". Tentei entrar em contato com aquela editora que eu conhecia para pedir que fosse tomada alguma providência, mas fui informado de que ela estava de férias. Muito bem, a pessoa tem todo o direito de sair de férias, vou aguardar. Passaram-se mais umas semanas, o texto ainda lá na internet igualzinho, com meu nome e tudo, volto a pedir para entrar em contato com a editora. Dessa vez recebi a resposta de que ela estaria com muito trabalho e não poderia atender naquele momento e que eu deveria aguardar para que ela tomasse a iniciativa de entrar em contato comigo. Ok, eu espero, passam-se mais algumas semanas. Tentei mais um contato, através de uma pessoa que a conhece bem, e essa pessoa garantiu-me que levaria o assunto a ela. Nada. Essa pessoa, por intermédio da qual eu estava tentando chegar à editora, teve que viajar para o exterior, e desisti de tentar o contato. Nesse período, descobri que o texto editado tinha sido publicado novamente, em uma revista chamada "Resenha Cultural". Quando a pessoa voltou do exterior, expliquei-lhe mais uma vez a situação, dizendo que considerava absurdo que o "Valor" tivesse autorizado a publicação do texto, novamente com meu nome, em mais um veículo, após todas as minhas reclamações acerca do episódio, e pedindo que ele levasse o assunto para a editora, pois eu realmente queria que fosse tomada alguma providência para que meu nome parasse de ser associado àquele texto. Ele me disse que trataria do assunto com ela. Nada.
Após um ano e meio,
a resenha "Tortuosos olhares americanos" continua no site do "Valor Econômico" e meu nome continua constando como seu autor. O mesmo acontece com a "Resenha Cultural Nº 13". Apesar de todas as minhas tentativas, não consegui fazer com que o jornal tomasse qualquer providência para corrigir seu erro. Retirar a resenha do ar ou pelo menos apagar meu nome deve demorar em torno de dez segundos para o administrador do site. O que o jornal realmente deveria ter feito seria publicar uma nota retificando seu erro, declarando que não sou o autor do texto, mas é tarde para isso. Também é tarde para tomar alguma providência quanto à publicação na "Resenha Cultural". O jornal sabia de minhas reclamações sobre a situação e não poderia ter autorizado a republicação do texto, o que precisa ter acontecido, pois do contrário a revista simplesmente cometeu plágio. Já que o "Valor" não permitiu que eu me defendesse de forma alguma do que aconteceu, só me resta publicar a minha versão do que aconteceu na internet, o único espaço que me restou para isso. Não tenho outra forma de espernear contra a sacanagem que foi feita comigo. O que não posso fazer é manter-me calado enquanto o jornal circula por aí um texto que não escrevi e com o qual não concordo, assinado com meu nome.
O leitor que teve a paciência de ler até aqui deve estar se perguntando: "bom, mas essa coisa toda diz respeito só a você, o que posso tirar disso tudo?" Acredito que a gente deve usar as experiências, sejam boas ou más, para aprender alguma coisa. Essa situação me ajudou a pensar algumas coisas a respeito da qualidade da imprensa impressa no Brasil, que talvez possam interessar aos leitores que buscam nos jornais sua fonte principal de informação. Apesar de todos os seus problemas, estes constituem uma fonte de informação muito superior à imprensa televisiva, pois têm mais espaço para informar com profundidade, o que simplesmente não é possível no formato da televisão, em que as notícias têm que ser dadas no espaço de poucos minutos ou mesmo segundos, consistindo, portanto, em informação muito superficial.
A primeira questão é que a qualidade do português do jornal importa. Não se trata de pensar que é essencial escrever em português perfeito, ou ser intolerante com escorregões que acontecem. Afinal de contas, poucos jornalistas são professores de Gramática. Entretanto, quando um jornal demonstra ter algum grau de cuidado com a correção gramatical do que publica, está também demonstrando que se importa com a qualidade de seu texto e com a forma como este será recebido por seus leitores. Por outro lado, um jornal repleto de erros como "pode ser observados" demonstra que está disposto a publicar qualquer coisa e que seus profissionais não se dão ao trabalho de verificar minimamente se o que estão publicando é adequado, o que é mau sinal.
Outra questão está em procurar entender os critérios de edição aplicados pelo jornal que você escolheu para se informar sobre o mundo. No caso que examinamos neste artigo, vimos um texto de apenas quatro parágrafos que conseguia a proeza de entrar em contradição. Acontece que é praticamente impossível que um ser humano racional consiga entrar em contradição num espaço tão curto, principalmente num texto destinado à publicação. Se há muitas ocorrências desse tipo num determinado jornal, isso não indica que seus jornalistas são malucos, mas sim que um trabalho inadequado de edição está sendo feito. Quando uma má edição é feita numa simples resenha de livro, tornando-a contraditória ou incompreensível, não há um grande problema (exceto, é claro, para seu autor original, cujo nome sai associado indevidamente àquela porcaria). Agora, se você observar que há coisas semelhantes acontecendo freqüentemente em uma seção mais importante do seu jornal (digamos, a de política), com a conseqüente publicação de matérias incompreensíveis, contraditórias ou com informações omitidas, é o caso de se perguntar qual critério tais edições estão seguindo e se você o considera adequado.
A última questão não tem tanta relação com a história que contei aqui sobre a resenha. Para explicá-la vou mencionar uma discussão que tive com um amigo, formado em Filosofia, que certa vez me explicou, aos berros, de acordo com seu característico e convincente estilo retórico, que a tarefa da imprensa é apenas a de informar com neutralidade, sem associar qualquer tipo de opinião a essa tarefa. Ora, os berros desse meu amigo demonstram que ainda há pessoas que acreditam nessa concepção do trabalho da imprensa nos dias de hoje. Ocorre que essa concepção é muito criticada, o que aliás não é nenhuma novidade, pois essas críticas já são feitas há mais de um século. Em um artigo intitulado "A Test of The News", publicado em 1920, o jornalista norte-americano Walter Lippmann demonstrou que o jornal "New York Times" informou - apenas informou, com a devida neutralidade - por mais de noventa vezes que o Exército Branco havia vencido a Guerra Civil Russa (1917-1922). Como qualquer um com algum grau de conhecimento sobre a história do século XX sabe, o que saiu dessa guerra foi um país chamado União Soviética, o que significa que quem venceu o confronto foi o Exército Vermelho. Ao "apenas informar", sem verificar adequadamente o que publicava, o jornal transmitiu uma informação falsa por dezenas de vezes. Se tivesse a preocupação de sustentar de alguma forma essa informação, teria percebido o equívoco, pois é difícil sustentar com bons argumentos uma coisa que não aconteceu.
Essa história de "só informar" não existe. Mesmo que o jornal adote um teor neutro, ele é obrigado a fazer escolhas. A quantidade de potenciais notícias que aparecem todos os dias é quase infinita, mas o jornal tem um espaço limitado para publicá-las, o que significa que ele é obrigado a selecionar algumas como as mais importantes e deixar um monte de outras coisas de lado. Além disso, ao noticiar algum fato, ele precisa adotar alguma perspectiva - dependendo de como a matéria for escrita e da forma como os fatos forem apresentados, é claro que o resultado da informação pode ser diferente. Além disso, é preciso escolher quem entrevistar, que parte da entrevista será publicada, enfim, o jornal que sai publicado todos os dias, por mais que adote um tom neutro e objetivo, é o resultado de uma série enorme de escolhas, que dependem do que as pessoas que nele trabalham acham melhor - portanto, de questões subjetivas.
Isso não é nenhum problema, até porque não há outra forma de trabalhar - fazer escolhas é algo inerente ao trabalho jornalístico. Porém, acredito que a qualidade de um jornal está diretamente associada à qualidade da argumentação que o veículo apresenta para justificar suas escolhas. Em alguns casos, não há muito o que fazer. Vamos dar como exemplo: "morreu Fulano". Não tem muito o que argumentar aí: ou o cara morreu ou não morreu, errar nessa informação seria muito difícil (embora já tenha acontecido na imprensa brasileira. No início da década de 90, o piloto de Fórmula-1 Martin Donnelly sofreu um acidente gravíssimo e alguns veículos informaram sua morte. Donnelly sobreviveu). Em outras questões, é fundamental argumentar. Vamos tomar como exemplo uma questão que o pessoal da internet adora debater. Suponhamos que alguém noticie que o partido X é mais corrupto do que o partido Y. Para fazer isso, é preciso explicar que motivos existem para que o leitor acredite nessa afirmação, até porque corrupção é um crime que ocorre secretamente, exceto nos casos em que os criminosos são pegos, e como é impossível saber que parcela dos corruptos são apanhados, é impossível ter dados que permitam dizer que determinados partidos são mais corruptos do que outros. Perceba que, para dizer isso, precisei argumentar. Não dá para simplesmente chegar e dizer que é impossível saber quais partidos são mais corruptos, pois essa afirmação, sem estar acompanhada de argumentos, apenas deixaria o leitor confuso - por que ele acreditaria nisso?
A imprensa escrita está atualmente em crise, devido à concorrência com a internet. Estado e Folha, juntos, não vendem seiscentos mil exemplares por dia. Para sobreviverem, os jornais vão precisar encontrar algo que os diferencie da informação da internet. Essa salvação não está na quantidade de informação, pois não há como competir com a internet nesse campo. A saída está em apresentar informação com qualidade superior à da internet, isto é, informação com cada vez mais profundidade e maior cuidado em argumentar para sustentar perspectivas escolhidas para veiculá-la. Em resumo, o trabalho tem que ser bem feito e não nas coxas, de qualquer jeito e sem corretor ortográfico.
Autor: Eduardo Leite Vanin
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