Cotas, contos e contas: negritude e invisibilidade na uft



COTAS, CONTOS E CONTAS: negritude e invisibilidade na UFT

 

Embora os contextos sociais de nossa universidade e Estado sejam diferentes dos maiores da Federação, nossas periferias nos unem. A órbita de Palmas, por exemplo, intencionalmente deslocou aos seus extremos tudo que lembrasse não ser uma cidade genética e esteticamente europeizada. Há muito mais Angolas e Benins nos nossos norte e sul que Alemanhas e Itálias. A ânsia da imagem espelhada de Brasília reflete aqui seus cânceres, porque o que não coube ou não é aceito no Plano Diretor engatinha teimosamente para onde não é querida com enxadas e, logo-logo, baionetas. Não é a toa que o entorno do Distrito Federal e Cidades Satélites mais afastadas são consideradas algumas das áreas mais violentas do país. De fato, nem é preciso ser íntimo dos búzios para começar a ver estalos e sentir os odores de pólvora da Capital em nossa capital.  E a educação superior é um termômetro interessante dessa segregação.

 

Em Palmas, são públicas a Universidade Federal do Tocantins (UFT) e a Universidade do Tocantins (UNITINS), respectivamente federal e estadual. Nenhuma delas possui um sistema de ações afirmativas para afrodescendentes, essa semana declarada legal por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da denúncia dos DEMOCRATAS contra a Universidade de Brasília (UnB), uma das pioneiras das “cotas” no Brasil. A constitucionalidade declarada dessa política nos obriga a pensar sobre a extensão desse discurso e práticas ao nosso quintal, especificamente da Instituição Federal que nos serve.

 

Primeiro, a UFT não é a UnB. Lá, quem não mora no Plano Piloto nem sonharia com qualquer curso não fossem as políticas de reparação. Aqui, desde 2005, há reserva de 5% das vagas em todos os cursos a candidatos indígenas. É uma conquista interessante e será aprimorada, especialmente quando garantir acompanhamento e sensibilização pedagógica às diferenças e estratégias para sustê-los longe de suas comunidades, com alguma dignidade. As ações existem (ainda não são suficientes), mas já representam um avanço na capacidade de representação e autodeterminação dos grupos indígenas do Estado.  Entretanto, foquemo-nos nas ausências...

 

Não é preciso ser militante ou estatístico para constatar a obviedade das tonalidades africanas nos traços dos meninos e meninas que não estão nas maiores escolas privadas da cidade. Parece absurdo aos pais desses candidatos – e aos próprios, por genética cultural – perder a vantagem da escolha do curso de seus sonhos na universidade pública, sempre alegando que: se passaram no vestibular é porque são mais aptos que os demais; se a prova é a mesma, as chances são iguais; se pagam impostos em até maior proporção e bancam ainda toda a educação básica, é justo que a superior seja custeada pelo Estado; se os números não nos acusam, não podem tornar cúmplices de um apartheid...

 

Embora a UFT possua, em sua maioria, alunos egressos das escolas públicas e com população autodeclarada afrodescendente, há elementos que permitem concluir que esse propagado arquétipo de pluralidade é bem apressado. Uso a pressa para definir isso porque não existe profundidade nas análises a respeito, tanto interna quanto externamente. Por exemplo, quando um aluno entra na universidade, preenche dados sobre sua “cor/raça” e não há orientação educacional para que se percebam as implicações dessas terminologias.

 

Aquele que não se sente da cor “branca” assinala “parda” para não se assumir “preta”, ou não se reconhecer negro. “Negra é aquela moça que limpa a rua ou meu colega de escola que reprovou e desistiu de estudar”. Não foram ensinados que piadinhas sobre o comportamento vinculado à cor de sua pele são sintomas de outros tipos de “afago” histórico, sempre inofensivo aos algozes. Essa indolência no ataque permanece para reforçar a marginalização que rotulou seus antepassados, quando desembarcaram no Brasil vindo das costas africanas. Marcando um inocente “x” na ficha de cadastro, não enxergam o “x” em suas costas... Não percebem que escolheram o curso possível e que sua vocação, mais próxima do Direito, Medicina ou Engenharias, teve que ceder às vagas possíveis nas licenciaturas ou cursos menos disputados. O mais triste dessa ignorância consentida é que meninos que encarariam o SUS com zelo e respeito, se tivessem a chance, cedem lugar a outros que mal conseguem ver a hora de montar suas clínicas particulares por aí. Estimular uma ligação passa por valorizar as escolhas e vivemos num país que torna o magistério a última das opções.

 

Enfim, vemos rostos e sobrenomes europeus nos dez cursos mais disputados da UFT. Nas vagas que não são desejadas por esses, outros tons. E isso não é justo, definitivamente. Mudar começa com cobranças, como que o vestibular não exija a capacidade de memorização e tempo para decorar que a maior parte dos trabalhadores brasileiros e seus filhos não possuem. Se o ingresso reconhecesse o engajamento em lutas sociais ou as experiências dos candidatos, estaríamos avançando realmente. Porque o filho de um pedreiro poderia ser um diferenciado arquiteto ou engenheiro; um voluntário em ONGs poderia ser um médico sem fronteiras (e frescuras); um prefeito de quadra poderia ser outra espécie de advogado. Não importaria tanto assim a origem, cor ou bolso, se demonstrassem que seu diploma será devolvido ao mundo, não às suas próprias vaidades. Não podemos generalizar: a fatuidade da predeterminação contamina com velocidade os mais pobres com oportunidades, que concedem a si próprios licenças poéticas para ser mesquinhos, assim como a empatia e sensibilidade ultrapassa os mais altos muros de palácios...

 

Podemos ter esperança em estar mais próximos de uma universidade pública e democrática porque aqui a resistência convive com a desigualdade. Quando disputam ônibus lotados para chegar ou voltar e cruzam com os carros novos dos estacionamentos, algo é provocado. Quando iluminados professores ensinam a reagir, há fissuras. Quando oportunidades de convivência são forçadas, espaços são abertos. Não é preciso uma guerra civil para que as estruturas cedam: basta encontrar ouvidos, harmonizar vozes e focar olhares...         

 

Elson Santos Silva Carvalho (professor de História, especialista em Culturas Negras no Atlântico, especialista em História Social e mestre em Ciências do Ambiente) – Técnico em Assuntos Educacionais na UFT, coordenador do PADU/Palmas e professor no ITPAC Porto.

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Autor: Elson Santos Silva Carvalho


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