Carta para a presidente



CRÔNICA

Carta para a presidente 

Era um senhor já bastante idosos cabelos completamente brancos, olhos azuis atrás dos óculos de aro redondo dourado. Todas as manhãs vinha tomar o café na velha padaria e nos fins de tardes também.

Na banca próxima comprava o jornal, atravessava a rua, passos lentos e firmes entrava na padaria o balconista já sabia. Servido tomava o seu cafezinho enquanto lia.

Não sei a quanto tempo fazia talvez o costume fosse tão antigo quanto aquela velha padaria que funcionava ali a décadas de pai para filhos, ou diria que a padaria fosse tão antiga quanto ele.

Enquanto sorvia o seu café esfolheava o jornal lendo com certa dificuldade, pois, forçava bastante a vista senil.  Cotovelo apoiado sobre o balcão, pernas cruzadas, calças de brim, sandálias de couro... jeito marrento de idoso, poucas palavras.

Enquanto lia os ouvidos vivos prestava atenção no que dizia a televisão ligada no noticiário. Era sempre assim, até que um dia, interrompeu a sua leitura e num suspiro pesado desabafou:

_Vivi o suficiente para contemplar o esplendor da democracia e a degradação da gramática.

 _Uma mulher finalmente torna-se dirigente de uma nação a quem Vargas um dia a muito custo ou por interesse concedeu o direito do voto (nem mesmo ele imaginaria fosse a mulher chegar tão longe no patamar da história), mas, o povo ainda nem sabe como deve tratá-la.  Presidente ou Presidenta?

Em silêncio eu o ouvia. Não sabia se lhe respondia. Creio que não era uma pergunta direta, nem eu saberia responde-la. E continuou.

_Em meu tempo as escolas eram rígidas, e regadas a réguadas e puxavões de orelha.

_ As pessoas lêem pouco hoje em dia. No meu tempo era raro ter uma TV, assistir a filmes, não tinha o computador. O passatempo era ler mesmo. Uma coisa é fato: quem lê escreve e, quem lê e escreve, fala.

_Até os gramáticos estão desistindo. Já aceitam essas ambigüidades. E se eles dizem que as duas formas são válidas, fica muito mais fácil aceitar do que contestar.

_É uma tremenda bagunça. Se a humildade lingüística do empregado chamava a mulher do chefe de chefa, a parenta seria o feminino de parente, e tudo isso vem da mesma árvore distorcida que quer tornar presidenta o feminino de presidente.

É extremamente pejorativo. Dá impressão grave de analfabetismo funcional. Jornalistas chamando a governante de um país de presidenta?!

_ Mas senhor... _ Disse eu dirigindo-lhe a palavra.

_ Abdias, é o meu nome. Disse ele.

_ Então seu Abdias, já lhe ocorreu que talvez a presidente goste de ser tratada assim? Por exemplo, a presidente da argentina nossa vizinha, gosta e exige ser chamada de LA PRESIDENTA. E isto em nada muda.

_É um feminismo hipócrita! Disse ele irritado. Afinal qual é a classe gramatical da palavra PRESIDENTE?

O estranho é que já nem me lembrava. Patético, aliás, entendi por que fica muito mais fácil seguir as tendências e falar presidenta como alguns falam. Desconsertei-me em um silêncio ignorante.

_Presidente, disse ele, é um substantivo comum de dois gêneros, ou seja, são da mesma família de pretendente, assistente, inteligente, dirigente, etc., etc., etc... e o que caracteriza as formas do feminino e do masculino desses substantivos é o emprego dos artigos desses gêneros. Da gramática da argentina não entendo, mas, a da língua portuguesa eu entendo sim senhor.

Ele realmente me deixara confuso. Nunca fui de estudar muito o português, nem me lembro bem do que aprendi na escola e não me atreveria a contestar. E continuou:

_A língua falada tem que ser motivo de orgulho para um povo, é uma grande herança e o maior legado que deixamos para nossas descendências. Tem que ser pura, correta, e impecável, especialmente quando escrita. Um povo não pode desaprender de sua própria língua, pois, de qual maneira pretende escrever a sua história?

Por fim terminou o seu café habitual, dobrou o seu jornal e, antes de sair, olhou-me com seus olhos vivos por trás das lentes grossas e com um leve sorriso disse:

_Talvez eu seja velho demais para suportar mudanças ou, a velha língua portuguesa seja um velho livro empoeirado esquecido num canto. Não se respeitam os velhos hoje em dia. Uma mentira dita dez vezes torna-se verdade. Se dizem que é presidenta então que o seja. Não importa se é substantivo, se é adjetivo...  Até logo.

Depois que saiu notei que deixara sobre o balcão uma carta selada, mas o envelope não estava lacrado só um pouco amassado. Corri ainda até a porta, mas já se tinha perdido de vista. Guardei-a no bolso na esperança de devolvê-la no dia seguinte.

Mas no dia seguinte não veio, e nem no outro, nem nos outros seguintes.

Ao tentar obter informações o balconista da padaria informou-me que o seu Abdias havia falecido de causas naturais, justamente na manhã seguinte daquele seu desabafo. Todos ficaram surpresos disse ele. Era viúvo, vivia só. Seu corpo foi levado a sua cidade natal por um dos filhos, que só aparecera quinze dias depois para dar a notícia.

Fiquei bastante triste com essa notícia. Não o conhecia, mesmo assim, lamentei sinceramente. Lá se foi à velha língua portuguesa com ele.

 Mas não fiquei triste por muito tempo, corri a mão no bolso e peguei a carta, não havia lido por não considerar ético, mas, isso já na teria tanta importância. Ei-la:

 Excelentíssima presidente, presidenta Dilma Rousseff

Sou da velha guarda da nação deste país, vi e vivi muitas coisas nessa vida para chegar aqui em pleno século XXI e testemunhar o assassinato brutal da gramática e, conseqüentemente da Língua portuguesa.

Não sou lá de aceitar tudo, embora respeite plenamente o potencial ideológico do termo “presidenta” já que se trata de uma forma de expressar a auto-afirmação feminina em uma sociedade que ainda é muito machista, (se fosse eu a presidenta me chamaria presidente por desaforo ao machismo), porém, creio eu, não é uma terminação feminina do substantivo que vai medir o grau de competência e de profissionalismo da mulher mediante a sociedade no mundo.

Já foi provado e comprovado que tanto as presidentas quanto as gerentas, assistentas, e qualquer dirigenta, são pessoas que não são ignorantas, muito pelo contrário, são boas estudantas epessoas plenamente inteligentas e que deixam qualquer presidento, dirigento, gerento, ou assistento, no chinelo.

Portanto pesso-lhe socorro, pois não queremos que as nossas crianças aprendam a se expressar assim na escola, nem em lugar algum.

É simples, se o termo masculino não é PRESIDENTO, então, não existe PRESIDENTA.

Mulheres são muito competentes, seres altamente inteligentes e, todas são presidentes. Presidentes das suas famílias, de suas vidas e conseqüentemente de seus destinos. As mulheres presidem tudo desde o principio. Não tem que provar nada.

Saiba que me orgulho muito de pertencer a uma nação cuja dirigente é uma mulher.

Abdias Coelho da Silva.

Pelo menos ele tinha senso de humor. Notei que ali próximo havia uma caixa dos correios e como a carta já estava selada e endereçada ao gabinete da presidente do Brasil, depositei-a para que fosse recolhida quando o carteiro viese.

Se a presidente Dilma recebeu a carta? A esta altura deve estar lendo-a.

 AUTORA:

Genilce Nascimento Angelin

Feira de Santana, 28 de abril de 2012.

 

 

 

 

 

 

 


Autor: Genilce Nascimento Angelin


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