Sobre "Ônibus 174"



O filme de José Padilha narra um episódio marcante ocorrido em 12 de junho de 2000 na cidade do Rio de Janeiro. Trata-se do seqüestro de um ônibus da linha 174, que ficou detido no bairro Jardim Botânico por aproximadamente cinco horas. O autor da cena foi Sandro do Nascimento, um jovem negro, desdentado, sobrevivente da chacina da Candelária, que manteve onze reféns sob a mira de seu revólver.

Ao longo das cenas, deparamo-nos com a nossa realidade, a qual é retratada de modo nítido, sem maquiagens, sem retoques. E isso choca. Ouvimos relatos de profissionais da polícia, de assistente social, familiares e amigos de Sandro, o que pôde proporcionar aos telespectadores uma visão mais complexa do que ocorreu naquele 12 de junho.

Analisando as questões trazidas pelo filme, várias podem ser tema de discussão para a Psicologia Social, tais como os problemas enfrentados pela polícia brasileira, e as condições das penitenciárias bem como suas conseqüências para o indivíduo que é preso, dentre outras. Entretanto, é gritante a questão da invisibilidade das classes menos favorecidas, da naturalização da pobreza e da violência urbana mostrada no filme.

Ao se deter apenas no episódio – ônibus seqüestrado por um jovem que aterroriza onze reféns – perde-se todo o contexto existente por trás desse "seqüestro", o qual é de fundamental importância para se chegar à raiz do problema. No caso em questão, Sandro foi uma criança favelada, com pai desconhecido, que assistiu à cruel morte de sua mãe (morreu esfaqueada), indo, após isso, parar nas ruas do Rio de Janeiro, tendo sido vítima da chacina da Candelária e passado várias vezes pela polícia. Trata-se, portanto, de uma pessoa sem referências familiares, escolares, sem expectativas de vida. Os aprendizados são unicamente os que ocorrem nas ruas: uso de drogas, roubo, etc.

Desse modo, para Sandro, e para tantas outras crianças que vivem nas mesmas condições, a vida se resume à rua, a uma esquina, ao momento presente, já que o futuro é algo incerto. Esses jovens e crianças se tornaram parte da arquitetura das grandes cidades; aprendemos a conviver com mendigos, com atos de criminalidade, com a violência – que recebeu o adjetivo cotidiana. Essa é, portanto, uma população invisível perante a sociedade de modo geral, que tem seus direitos e sua dignidade barrados, impedidos por uma maioria. Assim, fechamos os olhos para questões como estas, que perderam seu poder de indignar, chocar, abismar, refletir e mobilizar.

A parte da sociedade que vive nas ruas das grandes cidades, ou mesmo a que vive nas periferias destas, sobretudo a parcela negra dessa parte da sociedade, é constantemente vítima de violência, como a falta de oportunidades, a carência de políticas públicas em seu favor. É constantemente estigmatizada, reduzida a aspectos que a denigrem, continuamente desdenhada, desprezada, enfrentando uma luta diária e constante para fortalecer e até construir uma identidade social (GOFFMAN apud FERREIRA, 2008).

Isso, somos nós que fazemos; nós, enquanto classe média (e alta, por que não?), votantes, indivíduos instruídos, Cidadãos, esquecemos que temos responsabilidades com relação a esta realidade, já que também somos construtores desta.

Diante de todo esse cenário de ocultamento, de negação da identidade, a maneira existente para se buscar essa perdida (ou mesmo jamais possuída) visibilidade perante a sociedade é roubando a cena, ou seja, saindo da posição subalterna para tornar-se o protagonista. Esta cena, no entanto, comumente gera sentimentos negativos, como o medo, nas demais pessoas. Foi o que aconteceu com Sandro: durante todo o episódio do ônibus 174 ele se impunha, era visto, ouvido, o "centro das atenções"; a mídia lhe conferia poder, confiança, o que prezava sua auto-estima.

Mesmo tendo sido a maior vítima de todo o episódio, foi através dele que Sandro pôde ser foco de atenção de muitos, pôde ser reconhecido como um ser humano igual aos demais, dotado de desejos e capacidades. Pôde sair do seu anonimato, da sua condição inferior, periférica, da sua inexistência social. E, de modo geral, é isso o que se esconde por trás dos muitos atos de violências com os quais nos confrontamos rotineiramente.

Mais do que pensar em questões do tipo diminuição da menor idade, construção de novos complexos penitenciários, e tantas outras que se seguem, é preciso uma compreensão profunda acerca do processo de comomeninos e meninas se encaminham para o mundo da criminalidade; faz-se necessário pensar o que há de anterior ao ladrão, ao homicida, ao seqüestrador, para que a intervenção possa se dar neste nível. Entender o processo para intervir nas causas primeiras é política de prevenção.

Referências

FERREIRA, T. L.O Estigma de Cada Um, 2008. Recuperado em 28 agosto, 2008, de http://www.webartigos.com/articles/5006/1/o-estigma-de-cada-um/pagina1.html.


Autor: Leyllyanne Souza


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