Meia dúzia de presentes



Era magricela e dentuça. Andava como se ainda lhe faltasse o básico para se locomover com destreza: boas pernas. Cambaleava. Cabelos longos e vermelhos encaracolando nas pontas levemente aloiradas e com um olhar de mais dizer que valia a pena ver, ela falava com os olhos. Tão mirradinha era. Rosa era menina de sonhos longos e de uma densidade nas palavras que dava medo, não se acanhava em falar para adultos numa época em que só aos adultos era permitido falar. Rosa era curiosa, sabida e matreira. Mesmo com toda essa destreza com palavras ela se perdia por vezes quando se tratava de coisas novas, frescas e boas, porém que ainda não faziam parte do distinto cotidiano da pobrezinha, não porque era pobre, pobrezinha num sentido de quem tem pouca instrução ainda. Era daquelas serelepes de olhar fixo e apontado que muito mais tinha em querer saber do que em saber de verdade. Rosa era encantada por presentes, bastava ter um para ficar em nuvens por dias sem querer mais nem saber do resto do mundo. Era mágico ver suas mãos recebendo qualquer coisa que fosse, bastava dizer “Tome Rosa, é seu” para o olhinho desconfiado e escondido se estampar de cores e de brilho que se estendia dos cabelos ao dedão do pezinho.

Para saber o que era para uma menina dessas ganhar um presente é preciso antes que se saiba que menina era essa. Florzinha do sertão, onde há um povo que vive do sonho que é plantado dentro do coração em semente que vinga mesmo sem chuva. É uma gente que não se vê por toda parte, que vive como personagem de um drama, o drama da seca, da escassez, da falta. Falta tudo por lá, vivem numa “fartura”, como eles dizem, farta pão, farta água, farta tudo o que se há necessário para um viver assim, digno. Mas não falta amor, onde as mães criam seus filhos na luta contra os urubus, cada nascença de criança é alegria divina, é dureza junto, mas é sobretudo motivo de felicidade. Cada nova alma irá nem sempre chegar a idades mais elevadas, muitos morrem como anjos mesmo. Rosa escapara por pouco dos negros animais, seu destino apesar de resguardado ainda era incerto, numa terra de vontades e pelejas. Um sacrilégio aqui e outro ali, os pais da menina criaram-na com todo zelo e alimentação que possível fosse. Vê-la de sorriso no rosto era o maior motivo para comoção dos pais. Lá as barrigas faziam e fazem barulhos que muita gente talvez jamais possa imaginar, lá as barrigas falam, conversam entre si e trocam falácias a respeito de comida, o sonho maior é que haja abundância, um sonho que se desgasta e desgasta quem sonha também a cada sinfonia melancólica de despedida de quem não mais sonha, dentro do caixão.

A casa de Rosa era de taipa, bem limpinha e arrumada, a mãe fazia questão de se preocupar com detalhes, colher flores quando achava no rio, onde lavava roupas e onde a filha brincava e se divertia por demais.  A maior parte do tempo era sequidão e lida. A chuva era como um mito, muitos morreram sem ao menos saber de sua existência, só de ouvido mesmo. Rosa tinha seus apegos e chamegos com sua boneca de pano que ela mesma costurara com ajuda e ensinamento da mãe, um pequeno livro em italiano, que apesar dela nada entender de italiano, nele ela enxergava possibilidades, e uma medalhinha de uma santa que ela também não sabia de quem se tratava, mas tratava com respeito. Colecionava ainda sementinhas, umas ganhadas do pai, outras roubadas, outras que eram botões velhos que se passavam por sementinhas quando era da vontade dela. Tinha ainda os retalhos,  ai os retalhos... como ela se dava neles, pegava escondido da mãe, Rosa gostava de roubar coisas, como toda criança que não sabe ainda o conceito de roubo, para ela soava mais como empréstimo, que ela sempre se esquecia de devolver.

Num dia de calor forte em fim de tarde, veio um forasteiro de cidade distante trazer diversas tranqueiras para vender a preço alto àquele povo tão desfalcado de informação e de coisas. O moço chegou e logo saiu sem nada vender, mas encantou-se com Rosa ao ouvir a pequena dizer a mãe que estava com fome. O moço com sua feição de sofrimento e delicadeza deu a ela meia dúzia de bananas em penca ainda. Rosa ascendia aos céus naquele momento, tamanha era a alegria. Estava como fogueira em dia de festa junina. Era a chuva no sertão. Não cabendo em si, abraçou o moço e não mais largaria não fosse a mãe desgrudar a filha. Fitou o pai, a mãe, acenou um adeus tímido para o vendedor e entrou para o refúgio de seu quarto com seu presente na mão. Olhava as bananas, punha-as na cama, olhava outra vez, tirava da cama, punha no colo, na cama, no colo, na cama, no colo, na cama e nesse balé nada mais tinha importância, havia ganhado presente. Presente era raridade e esse nem era roubado. Numa felicidade grossa que mal cabia na cama deitou-se e esqueceu-se da fome tão grande era a euforia, contou as bananas, pois contar já sabia, aprendera com o pai. Seis, eram seis presentes grudadinhos, amarelinhos e brilhantes. Nunca havia ganhado seis presentes de uma só vez, era milagre da santa da medalhinha só podia ser. Explodia a menina de um sentimento que só quem já viveu na secura pode fazer uma leve ideia de sua intensidade. Ficou ali por horas, a mãe chamou para jantar e nem ouviu. Cantou para as bananas dormirem e assim como as bananas, dormiu. Sonhou com um mundo amarelo, mas era de um amarelo vivo e nítido, nele as pessoas andavam flutuando e felizes, haviam bananas para todos os lados, as estradas eram feitas de casca, as casas eram verdes, cor que contrastava e ornava bem com toda aquela amarelidão. Era perfeição, alegria e ouvia uma suave canção que vinha leve, era canto de benção, estava no paraíso e era disso que gostava. Sentiu um cheiro bom que só as bananas ganhadas sabem ter, eram cheirosas mesmo como as outras, mas tinham um odor grandioso que impregnava no corpo, no cabelo e que entrava no mais íntimo de sua sensibilidade pequenina. Sentiu suas mãos suando e o suor foi ficando mais espesso e com cheiro característico da fruta. Esse fora seu despertar, o sol chamava a lida nova de mais um dia.

Acordou com uma sensação grudenta nas mãos como cola que nunca sentira antes. Havia dormido com as bananas embaixo do travesseiro e por estarem bem madurinhas, estouraram a casca e sangraram sua polpa na cama. Rosa desesperou-se e pensou “ Que ingrata sou eu, olha o que fiz com meu presente!” Correu para o quarto da mãe atordoada e chorando aos prantos. A mãe indagou sua aflição e a pequenina em lágrimas finas dizia “ Eu quebrei o presente!”, a mãe sem nada entender dirigiu-se ao quarto da filha e ao ver as bananas amaçadas abraçou a menina e disse: “ Mas você não as comeu ontem?”. Rosa ficou apática de quase desmaiar. Como poderia ter comido um presente daqueles, tão lindo, tão único, não conhecia ninguém que tinha um igual. Presente não se come, se guarda, se adora pensou.

Depois de uma manhã inteira de explicações demoradas, Rosa aprendeu um dura lição em sua humilde vida. A menina jamais comera uma banana, não conhecia a fruta. Decepcionada, com os olhos vermelhos depois de choros convulsionados ela foi para o quarto juntou os restos mortais de sua meia penca de ex-bananas, colocou num pedaço de pano, amarrou com retalhos e foi enterrar no fundo do quintal, cantando música triste que só se canta quando morre gente pros lados de lá. Enterrou as bichinhas amassadas e empacotadas na terra dura e cobriu com sementes. Despediu-se, chorou uma última vez e descobriu de uma forma tão ingênua e crua como se sofre com a dor da perda. As bananas morreram, mas morreu também um pouco de sua inocência. Aprendeu que há sim presentes para comer e ficaria de olhos abertos dali em diante.

Há quem diga para aquelas bandas do sertão  que alguns meses depois as semente germinaram uma linda árvore que dava frutos, não eram bananas mas eram tão amarelos quanto. O que se sabe é que daquele dia em diante Rosa não mais era a mesma, era outra agora, experiente com perdas e tristezas de uma vida de quem pouco tem, mas que muito ama, com voracidade, com sinceridade e entrega, com cuidado e presteza. Gente que não se nega a possibilidade de ser feliz, que se floresce de magia quando recebe presente, mesmo não sabendo para o que serve ou o que é, gente simples, gente que é carne, osso e coração.


Autor: Lucas Tadeu De Oliveira Maciel


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