Tratado sobre preconceito



 

 

PEQUENO TRATADO SOBRE PRECONCEITO 

 

EUGENIA 

 

(A origem biocientífica do preconceito) 

 

Dedico este ensaio ao meu estimado amigo
Prof. Dr.Meraldo Zisman,
Em cujo DNA contém 60 séculos
De discriminação e preconceito.

 

      O homem, dotado de acurado senso investigativo, sempre buscou meios e artifícios para a resolução dos seus problemas de ordem física e patológica. De início evoluiu com a linha investigativa a partir de um conhecimento prático, devido meramente à experiência. Posteriormente progrediu para a dedução, ou seja, a conseqüência tirada de um princípio. Ambas as metodologias eram excessivamente falhas, mesmo assim, algum resultado foi alcançado. Somente a partir do início da idade moderna é que se estabeleceu uma pesquisa científica, embora truncada por conceitos religiosos. À medida que esses conhecimentos foram sendo compilados surgiu a necessidade de um ordenamento de conduta, prevenindo que a pesquisa científica não invadisse a ordem natural das coisas, nem ficasse prejudicada pelo preconceito.

 

      A biotecnologia evoluiu muito nos últimos tempos. O mapeamento do código genético, a transferência de material cromossômico de um organismo para outro tem produzido uma revolução nos meios científicos. Avilta-se com isso a resolução e a prevenção de doenças graves que se abatem sobre a humanidade, o retardamento do envelhecimento, etc, etc.

 

      Essa expectativa fez recrudescer um desvio que já incomodou e até assustou a humanidade: o tipo étnico perfeito, proclamado de forma apaixonada, com finalidade meramente política. Alguns desses novos estudos tenderam, naturalmente, a cultivar as qualidades físicas e morais de gerações futuras, eliminando por artifícios científicos algumas taras e desvios do homem comum, até alcançar o homem perfeito, como alguns pretendiam que fosse assim, o ariano. Isso colide frontalmente com os mais simples princípios da ética e da razão. Os mais diversos segmentos da sociedade sejam político, científico, religioso, dentre tantos outros, deverão estar atentos para essa aventura político-científica. 

 

RÉU SEM CRIME                                                                                                                                                                                                                

 

(Aplicação social do preconceito)

 

      Retornava para casa após 21 dias de internação onde havia realizado sessão de quimioterapia no TMO – Central de Transplantes de Medula Óssea do Real Hospital Português. Normalmente o período de internação não é tão longo assim, mas foram usadas drogas novas e as reações colaterais dramaticamente devastadoras. O retorno para casa dava-me uma sensação de liberdade. Espreguicei-me longamente, no banco do automóvel, bocejei, passei os dedos sobre os cabelos que já haviam crescido bastante desde o último tratamento. Não os aparei propositadamente. Olhei nas palmas das mãos, estavam impregnadas de suor e coalhadas de cabelos que a quimioterapia os fizera cair.  Já havia até passado do tempo de queda de cabelos, entretanto o médico havia me avisado de que nestas circunstâncias não poderia precisar se iria ou não ocorrer queda dos cabelos. Mas houve e produziu grande dano à pele e às mucosas. 

 

      Liberei o taxi e me dirigi a um salão de beleza ao lado do prédio em que resido. No caminho lembrei-me de um livro sobre sentenciados que havia lido há pouco tempo. Os condenados que cumpriam sentença nas galés tinham as cabeças raspadas imediatamente antes do embarque. Nisso havia um propósito de higiene, entretanto em quase todos os presídios do mundo os sentenciados tem a cabeça raspada antes do ingresso nas células e masmorras, não apenas por higiene, mas, e principalmente, para dar um choque na personalidade do “condenado”, tornando-o mais brando pela humilhação.

 

      Uma senhorinha recebeu-me à porta do salão. Expus minha intenção de raspar a cabeça, ela resistiu: rebaixar de tesoura não é melhor? Não, senhora. É por necessidade. O cabelo está caindo e raspar é mais higiênico. Ela assuntou positivamente com a cabeça, levou-me a uma cadeira, fez o ajuste de altura e perguntou: o senhor quer mesmo raspar? – Claro senhora. É por motivos de higiene, já falei! Ela afastou-se, entrou em uma saleta ao lado e informou aos outros profissionais que repousavam ali.

 

      - Tem um senhor já sentado na cadeira que quer raspar o cabelo. Insisti em apenas rebaixar, mas ele está irredutível quer escamotear mesmo.

 

      Vi pelo canto do olho algumas cabecinhas me observando através de uma fresta da cortina. Depois voltaram a conversar em tom sussurrante, embora perceptível do local que me encontrava.

 

- Eu sei quem é este homem. Mora no prédio ao lado. Ele tem câncer. De repente as                vozes se avolumaram, todos falavam ao mesmo tempo.
– Eu não pego este serviço. Morro de nojo!
_ Outra voz: só de lembrar dá-me arrepios. Depois da tosquia o “quengo” fica pálido, azulado e pegajoso. Já fiz isso neste homem há alguns meses. É repugnante. 

 

      Algum instante depois surgiu a mesma senhorinha que havia me atendido.    

 

– Moço, por que não rebaixar com tesoura? – Porque não é um corte estético convencional. Fiz quimioterapia e o cabelo está caindo muito.

 

      Enrolei uma mecha entre os dedos indicador e o polegar, tracionei levemente. A mecha soltou da pele e ficou presa entre dedos. A moça deu uns pulinhos frenéticos, retornou para pequena saleta. Comentou com as outras:

 

      - Também não vou fazer, disse uma delas. Fulano foi ali tomar um cafezinho e volta já. Aí não comentaremos nada e ele pegará o serviço. Nisso passou por detrás da cadeira um rapazinho excessivamente maquiado, com um shortzinho mínimo e uma camisa feminina que mal cobria os seios artificializados. Entrou na saleta. Minutos depois saiu cumprimentou-me, analisou o serviço e disse:

 

- Vamos começar. Primeiro vamos lavar.

 

- Menina, não é preciso isso. É para passar a máquina. Zerar.

 

      Novamente outra insistência em apenas aparar com tesoura. Observei que ele mostrou um ligeiro ar de satisfação quando lhe tratei maliciosamente de menina.

 

      Retornou para a saleta onde estavam as outras funcionárias, conversaram em sussurro, saiu até a rua, fumou um cigarro e aproximou-se de mim.

 

      - Já que não tem outro jeito, vamos ao sacrifício, disse ele.

 

      Vi pelo espelho que o seu semblante era de pânico. Resmungou baixinho: - nesta droga de salão não tem nem uma luva! Empunhou a ferramenta e iniciou a tosquia, mas evitava tocar com os dedos em minha cabeça. A cada vez que levantava a mão, soltava uma mecha presa nos dentes do pente, ele esboçava semblante de pavor e nojo. E eu observando tudo pelo espelho. Nisso fui tomado de um sentimento de revolta e tristeza, quando resolvi travar um diálogo com ele.
      - O cabelo está caindo porque fiz quimioterapia para câncer. Advirto que você não vai se contaminar. Não é contagioso. Olhe para o coro cabeludo, para minha roupa, analise outros aspectos de minha pessoa e verás que sou um homem asseado. Contagioso é AIDS, hepatites virais, sífilis e diversas outras doenças sexualmente transmissíveis. Aí, sim, você deverá se cuidar.

 

      Trabalho concluído, perguntei o preço. Olhei a tabela num relance e vi que ele mandara cobrar um corte de cabelo feminino, com lavagem e escovação. Paguei sem protestar e ainda deixei-lhe uma pequena gorjeta, embora muito a contragosto. Deveria, sim, naquele instante, pleitear um desconto, haja vista o trabalho durar menos de 5 minutos. Aproximei-me do espelho, olhei atentamente para o coro outrora cabeludo, agora tosquiado. Senti um arrepio. “Que nojo, senti de mim mesmo. Parecia uma pele de porco. Toucinho!”. Andei até a porta de saída do salão de beleza, olhei o tempo, começava a escurecer. As pessoas, os automóveis passavam na rua. Olhava-os desconfiado como quem foge da polícia. Desci a rua alguns metros, entrei rapidamente no portão do meu prédio. Peguei o elevador, cheguei em casa. Corri para o banheiro, estava impecavelmente limpo e deliciosamente perfumado, como deveriam ser todos os banheiros. Tomei um belo e demorado banho morno para remover todos os resíduos de 21 dias de hospitalização. Deitei-me para descansar um pouco. Estava exausto. Aí invadiram os pensamentos. As lembranças, chegavam à minha mente como avalanche. O episódio do salão de beleza estava colado em minha mente, como aquelas musiquinhas chiclete, que repetimos invariavelmente. Adormeci. Acordei minutos depois com Vanusa, minha secretária batendo à porta do quarto para avisar que já estava de saída. Permaneci deitado mais um tempinho. O episódio do salão de beleza invadiu novamente minhas lembranças, como aves rapináceas famintas.

 

      Perdoei mil vezes o jovem cabeleireiro e as outras pessoas envolvidas no episódio do salão. Bendito seja o profissional que exerce seu ofício, mesmo em condições pessoais extremas.

 

      O preconceito é uma inclinação emocional insensata e de natureza hostil, cuja malícia não se explica com clareza! Mas é o preconceito quem melhor nos ensina o valor negativo da rejeição.

 

Recife, 27 de abril de 2012.

 

Arionaldo de Sá

 

 


Autor: Arionaldo De Sá


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