Diferença não é deficiência: o estudo do preconceito linguístico numa ampla perspectiva



    DIFERENÇA NÃO É DEFICIÊNCIA: O ESTUDO DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO NUMA AMPLA PERSPECTIVA

Márcia Maria Araújo Fonteles[1]

 

RESUMO

 Este trabalho aborda de uma forma bastante exemplificada, o conceito de preconceito e seu uso no que diz respeito às variedades linguísticas frente à norma padrão. Embasados em teóricos, como Bagno (2010), Benveniste (1968), Calvet (2002), Cunha (2008), Faraco (2010), Lyons (1968), Montoya (1996), Sá (2010), Slama-Casacu (1961), Soares (1997) e outros de não tanto renome, pretendemos expor algumas situações encontradas no Brasil. Além disso, iremos abordar o aspecto histórico que levou a ocorrência desse fato seguido de questões sociais e políticas. Não podemos desconsiderar, além disso, as consequências de tais preconceitos, a visão de puristas acerca do assunto e a importância de deixarmos bem evidente de que não existem línguas inferiores ou superiores; a noção e a certeza de que todos nós falamos e somos brasileiros e não apenas falamos o português. Entender que a língua é um fator social equivale a vê-la como um objeto passível de mudança, o que nos permite, ainda, depreender que devemos respeito a todos e somos iguais, independente de sermos índios, negros, brancos, pobres, ricos ou de outra classe socioeconômica. Buscaremos por fim, mostrar a influência do espaço escolar, como formador ou como precursor de determinado preconceito. A escola deve ser vista como o âmbito social que ela é: responsável, em partes, pela formação da personalidade do aluno, avulso a situação social, política ou econômica dos mesmos.

 

Palavras-Chave: Preconceito. Língua. Variedade Linguística. Escola.

 

1 INTRODUÇÃO

1.1  Primeiros conceitos

 

A história da língua é ao mesmo tempo longa e complexa. São muitos os estudos feitos a cerca da mesma para se definir de que modo adquirimos a linguagem e quais as suas relações com a sociedade. Afinal, o que seria língua e linguagem?

Conforme Cunha (2008, p.: 01): “Língua é um sistema gramatical pertencente a um grupo de indivíduos”, enquanto Linguagem, para Slama-Casacu (1961APUD Cunha, 2008, p.: 01) é: “um conjunto complexo de processos-resultado de certa atividade psíquica profundamente determinada pela vida social que torna possível a aquisição e o emprego concreto de uma língua qualquer”. A partir daqui podemos perceber a relação entre língua e sociedade, que definem uma a outra. A língua enquanto instrumento de comunicação dos indivíduos, possibilita a vida social que é marcada por costumes e características próprias.

É deste modo, que a Sociolinguística faz o “estudo das construções influenciadas por hábitos que perduram na sociedade, levando em conta não apenas aspectos linguísticos, mas também extralinguísticos”, para explicar o que ocorre no sistema da língua, o qual permite as variações na fala espontânea.

Levando em conta que a língua é a responsável pelo processo de comunicação e de que a mesma, segundo Benveniste (1968, p.: 95) possibilita que o homem “se situe [...] necessariamente em uma classe, seja uma classe de autoridade ou classe da produção”; o que acontece para que uma mesma língua seja tão classificatória? Ao observarmos as diversas regiões do Brasil, notamos que cada uma delas apresenta particularidades na língua, seja de forma falada ou escrita.

Essa variedade linguística que surgiu com os costumes de cada região e também a partir de outros fatores, vem levantando, a cada dia, novas críticas advindas até mesmo de gramáticos. Esse fato se dá por conta do “desvio” [2] que essa língua popular tem da norma-padrão. Tudo o que é dito que, foge às regras da gramática é visto como “erro”[3], “preguiça”[4], “incoerência”[5]; o que acaba trazendo à tona o preconceito linguístico.

Com base no dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2010 APUD BAGNO, 2009, p.: 16) Preconceito Linguístico refere-se a:

 

Qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários, como, p. ex., a crença de que existem línguas desenvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes cultas possui gramática, ou de que os povos indígenas da África e da América não possuem línguas, apenas dialetos.

 

Esse frequente preconceito que não é barrado acaba situando a norma-padrão, como aponta Bagno (2010, p.: 18) como a “Unidade Linguística do Brasil” [6], enquanto as demais modalidades expressivas são desprestigiadas e deixadas de lado. O maior incômodo é percebermos que esse preconceito sempre acontece com as pessoas de nível social baixo, visto que quando poetas ou outras personalidades cometem “erros” assim, elas acabam tendo a tal da “licença poética” [7]. Tanto Luiz Inácio Lula da Silva[8], quanto Fernando Henrique Cardoso[9] foram presidentes; porque então analisar de forma diferente os erros cometidos por ambos? Adentra aqui a questão do status social e a formação intelectual como condicionantes para julgar as pessoas.

 

2       DESENVOLVIMENTO

2.1  Preconceitos x Variações

 

O modo de falar “certo” [10] é destinado aos ricos, aos que apresentam uma graduação, um doutorado e não simplesmente, a uma pessoa que nem cursou o primário ou que é catador de lixo. Não é de hoje que esse crescente preconceito, que tanto ajuda a perpetuar a desigualdade social, surgiu. O mesmo tem vigorado desde a antiguidade, em que somente a classe abastada tinha acesso à escrita e ao poder da oratória. Os demais integrantes da sociedade representavam a classe produtora, a que detinha, por exemplo, apenas do Latim vulgar e não do clássico, que era permitido somente aos nobres.

Segundo Lyons (1968 APUD NAPOLI, 2010, p.: 54): “Durante o Renascimento ocorreu a criação das gramáticas das línguas vernáculas [...]”, essas gramáticas “tomaram como base o modelo greco-latino e ocorreu a perpetuação do erro clássico”. Vemos assim, o quanto é antigo o caráter normativo e preconceituoso da gramática, visto que além de ter sido imposta como a língua padrão, já era de conhecimento de todos que somente as pessoas de camadas privilegiadas tinham acesso à escolarização e, portanto, à norma culta.

Dentro ainda deste contexto, podemos citar aqui o termo purista, que conforme Bagno (2009, p.: 30): “É atribuída àquela pessoa que defende a pureza da língua contra todas as formas inovadoras, que são sempre consideradas como sinais de ‘decadência’, ‘corrupção’ e ruína’; não só da língua como também, muitas vezes, dos valores morais da sociedade.” Os antigos nobres foram substituídos pelos puristas, gramáticos e dicionaristas preconceituosos. Os mesmos podem se comparar à gramática normativa, que impõe à sociedade regras e conceitos incontestáveis, que quando não são seguidos deturpam a língua e o que tem de “belo” [11] nessa mesma sociedade.

Com isso, desde a implantação da norma-padrão no Brasil, no século XIX, as pessoas da região pobre do país vêm sendo vistas como “deficientes linguísticos” [12], “ignorantes” [13] e até mesmo de que “não sabem falar português” [14]. E mais do que isso, segundo Faraco (2010 APUD NAPOLI, 2010, pág.: 54) a norma padrão se deu com o intuito de “neutralizar a variação e controlar a mudança”. A discriminação em si não é apenas linguística, mas cultural. Tudo o que os indivíduos falam ou escrevem muitas vezes não é baseado na norma culta, mas sim nas crenças e conhecimentos adquiridos com a cultura do seu povo. Não considerar as variedades linguísticas como dialetos e ainda tentar extingui-los da fala brasileira é querer “arrancar” [15] das pessoas as suas raízes e tradições. O próprio Darcy Ribeiro (1995 APUD BAGNO, 2007, p.: 15) comentou que: “É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos povos mais homogêneos linguística e culturalmente e também um dos mais integrados socialmente da terra. Falam uma mesma língua, sem dialetos”. O que é isso? Preconceito ou pesquisa incompleta? Onde ficam os falantes que não seguem a gramática, já que no Brasil “os povos são homogêneos”?

Mais uma vez suscitamos o mito da unidade linguística, como fator responsável pela exclusão linguística a que estão sujeitos todas as pessoas que não falam conforme a gramática. Dizer que a única língua falada no Brasil é o português, equivale a negar as mais de duzentas variedades aqui faladas. Dialetos esses que foram construídos por indígenas, imigrantes e pelo contato que os povos tiveram com os colonizadores. Precisamos deixar de julgar as pessoas conforme a classe em que estão inseridas e compreendermos que diferença não é deficiência; mais do que isso, precisamos estudar a “língua brasileira” [16] e elaborar regras que condizem com a nossa realidade e não com base em escritores renomados ou conforme o português de Portugal. Não nos compete simplesmente dizer que “Nós vamos” é norma-padrão, quando a maioria dos brasileiros não fala assim.

Apesar disso tudo, é incrível como o status social é classificatório; como a medida do “ter” [17] vale mais do que o “ser” [18]; como as crianças pobres são marginais e as ricas, o futuro do país; como os Estados de São Paulo e Rio de Janeiro são o “modelo” [19] para a língua portuguesa, enquanto o Ceará e Minas Gerais, por exemplo, representam “os caipiras” [20]. O mais triste disso tudo é a grande maioria ser vista com despeito, como se fossem diferentes, como se não fossem brasileiros. Observando o contexto em que a língua padrão surgiu, podemos inferir que a mesma existe por uma convenção político-social. As pessoas da classe alta não só queriam conquistar e ostentar suas riquezas, mas também ansiavam em demonstrar soberania e poder. Conforme Bagno (2004, p.: 51):

 

 [...] Ao longo do tempo, foi se criando a ideia de que ‘saber gramática’ era um ‘valor moral’ [...] e que a pessoa que sabia ‘se expressar bem’ era, quase automaticamente, uma pessoa boa, idônea, de caráter limpo, amante de seu país, cumpridora de seus deveres, respeitosa das instituições [...].

 

Perante esse contexto não é estranha a quantidade de políticos corruptos no poder, que iludem os eleitores para a venda dos votos e depois as promessas feitas se transformam em mais desigualdade social.    

Muitos estudiosos como Marcos Bagno, Carlos Alberto Faraco, Edmilson José de Sá, Magda Soares, buscam através de suas pesquisas conscientizarem os preconceituosos de que não existem línguas inferiores ou superiores e de que as pessoas que falam diferente da norma gramatical têm as suas próprias regras. Por que ignorar ou tachar de deficientes aos indivíduos que não falam conforme a língua padrão, se a maioria das pessoas aderiu ao Português não padrão, às formas livres e simples de falar, frente às rebuscadas e por vezes, até incoerentes? Observando a música “Cuitelinho” [21], cantada por Nara Leão [22] notamos a concordância imprópria quanto à gramática, no que diz respeito aos plurais. O compositor diz: “As onda se espaia” [23], “As garça dá meia volta”, “dei em terras paraguaia”, “enfrentei fortes bataia”, “e os oio se enche d’água”; o que nos remete a falta de concordância entre as demais partes da frase, que deve ser pluralizada. O que podemos levar em consideração é o caráter observador da pessoa que criou a música, que por mais que não tenha feito os demais plurais, não se esqueceu de colocar a primeira palavra variável no plural. No que consta a essa análise, Bagno (2010, p.: 50) chama de “marcas redundantes de plural [...] na nossa norma-padrão de português, para indicar que estamos falando de mais de uma coisa, acrescentando ‘marcas de plural’ em muitas palavras da frase”. Assim, a pessoa que fala: “As onda se espaia”, está evitando a redundância que o português padrão comete, ao dizer, por exemplo: “As cores da bandeira são lindas!”

Além destas observações no caráter particular da fala de muitas pessoas do país, há ainda outros “erros” considerados gritantes pela gramática normativa, como dizer: “froco”, “falano”, “ropa”, “caxa”, “corgo”, entre muitas outras. Apesar disso, todas essas palavras apresentam uma determinada lógica para serem pronunciadas assim. Essas expressões ditas desta forma são explicadas a partir do latim e também, levando-se em conta o aspecto fonológico da mesma. A primeira favorece-nos a fazer uma crítica ao Português padrão, que diz, por exemplo, “igreja”.  De onde surgiu esse “r” se no Latim, essa palavra era “ecclesia”? Então, do mesmo modo que o caipira diz “grobo”, falar “igreja”, também seria errado. Por que criticar somente ao caipira? E aos puristas da norma-padrão?

 Já a palavra “falano”, “ropa” e “caxa” são explicadas, como nos remete Bagno (2010,p.: 77) pela “assimilação [...]: a força que tenta fazer com que dois sons diferentes, mas com algum parentesco, se tornem iguais, semelhantes.” Os fonemas /n/ e /d/ são dentais; e quanto à “roupa”, fica mais fácil dizer “ropa”, para não fazer um movimento tão grande no momento da fala e quanto à “caxa”, há uma redução do -IX- para –X-, o que explica o fato das palavras que contenham –IX- serem ditas só com o –X-; com isso temos a assimilação. Por mais que o falante não saiba explicar esse fato, já é próprio da natureza humana distingui-lo; considerar então “deficientes” as pessoas que assim falam, e também dizer que não somos dignos de falar a “língua de Camões” é um grande convencionalismo, pois até mesmo Camões e outros escritores renomados como Machado de Assis e José de Alencar, disseram “frauta”, “froco” e nem por isso eles deixaram de ser importantes e respeitados na história.

Por fim, a palavra “corgo” representa uma contração da forma proparoxítona, para a paroxítona, o que nos remete ao vocabulário popular da língua. Essa redução de forma não é recente, vem desde a origem de muitas palavras do português, que no latim eram proparoxítonas, tornando-se paroxítonas, como por exemplo: “miráculu” no latim e “milagre” no português. Alguns estudiosos perceberam que as formas proparoxítonas no Brasil são em menor quantidade e as mesmas representam as palavras de vocabulário mais erudito, o que explica a dificuldade dos falantes em falar conforme as regras.

Ainda nessa perspectiva de variação, em 1950, o linguista William Labov criou a Teoria da Variação [24]. À medida que os falantes vão adquirindo novas necessidades, a língua vai se tornando mutável, variável; e aos poucos, os estudiosos percebem a necessidade de fazer novas modificações nos acordos linguísticos. Essas variações são estudadas tanto de forma diacrônica, como de forma sincrônica e, conforme Labov podem ser diatópicas, diastráticas e diafásicas. As primeiras representam as variações de âmbitos geográficos, que segundo Sá (2010, p.: 55) “relacionam o espaço físico a fatores linguísticos em que se observam as diferenças entre falantes localizados em direções opostas” (geograficamente). São exemplos dessas variações os falares regionais. As segundas dizem respeito às variações diastráticas, que conforme Sá (2010, p.: 55) “engloba fatores de identificação social do falante e a relação com sua comunidade”; como exemplos podem ser citados a norma culta, popular, não padrão, entre outras. Por fim, temos as variações diafásicas que de acordo com Nery (ver referências) são “os falares específicos para grupos específicos, como profissionais de uma mesma área (médicos, policiais, profissionais de informática, metalúrgicos, alfaiates, por exemplo), jovens, mulheres, idosos, grupos marginalizados e outros. São as gírias e jargões”.

Percebemos, pois, a partir desses estudos o quanto é diverso e rico o âmbito da língua, visto que a história está repleta de formas de linguagem, cada um com sua cultura e especificidade. Surge daí, infelizmente o que já foi tão explicitado nesse artigo: o preconceito linguístico; a questão de ver no outro a deficiência. Essas variedades ocorrem não só na Língua Portuguesa, assim como o preconceito não se restringe ao Brasil. Pelo contrário, todos os países apresentam seus jargões, suas normas não padrões, suas próprias regras. Conforme Mauro (1969, p.: 48): “O alemão urra, o inglês chora, o francês canta, o italiano faz comédia e o espanhol fala”. O autor faz referência a um provérbio do século XVII, em que, conforme a história, Carlos V falava aos homens em francês, aos seus cavalos em alemão e a Deus, em espanhol. Para ele, a língua culta seria apenas o espanhol, digno apenas para falar com Deus, como se as outras línguas não fossem cultas, fossem indignas.

Acrescido a esse preconceito linguístico encontramos ainda, os estereótipos que fazem julgamentos desclassificatórios e ridicularizantes. Ao ver um nordestino, um paulista, por exemplo, já o vê como alguém que não sabe falar, que é analfabeto, burro, pobre e deficiente. As pessoas recebem tachas como se fossem produtos a serem comercializados; somente se o “produto” [25]apresentar boas qualidades é que ele fica em alta no mercado, caso contrário, ele vai ser destinado aos menos favorecidos, que não são probos de adquirir tal mercadoria. Infelizmente, as coisas funcionam desse jeito; até mesmo para caracterizar o falar de um índio ou de um grupo marginalizado, se diz que são: uma algaravia [26], patoás [27], jargões [28]; enquanto para as pessoas da classe abastada, se fala em variedade linguística.

Apenas para reforçar esse assunto tão debatido, recorremos à poesia de Patativa do Assaré [29], como forma de demonstrar que nem todas as pessoas têm a licença poética; apenas aqueles de prestígio social. No decorrer da poesia o autor comete, conforme a norma-padrão, erros de concordância, de ortografia, como por exemplo: “Sou fio das mata” e “papé”. Ao fazermos a leitura de tal poema, fica evidente a beleza do mesmo; independente de estar escrito certo ou errado. Esse nordestino vem nos mostrar que para fazer poesia de qualidade, não é necessário que se saiba a gramática, mais do que isso, o que se precisa é de dom e conhecimento acerca de assuntos tão político-sociais como os que ele retrata.

O poema abordado, como o próprio autor intitulou-o, “O poeta da roça”, vem nos contar a situação de um pobre trabalhador rural, que não se vangloria e apenas tem uma casinha de barro e não é um menestrel. O autor leva ainda em conta a questão do preconceito, tão manifestado, em que o mesmo afirma que não tem estudo e que este é para rico; enquanto o seu poema não entra em “salão” por ser de origem pobre. Comenta a sua situação social, o desprezo da cultura da sua cidade, os seres com quem convive e no fim do poema ele deixa claro, que não é infeliz por a vida que tem, pelo contrário, ele está livre da cobiça que existe nas grandes cidades e não saber ler, não significa que ele não tenha uma visão de mundo.

 

3       CONCLUSÃO

3.1  Escola: espaço de formação ou preconceito?

 

            Ao chegar à escola, a criança se depara com um ambiente completamente diferente, com novas pessoas, novas regras e, acrescido a isso, a separação dos pais. Nesse recinto a criança vai criar sua identidade cultural e precisa, pois, do incentivo dos pais e da ajuda da escola. Esta última é por sua vez, um espaço de síntese de culturas: as amizades da praça, o convívio familiar, a briga com os amigos ou com as paqueras, tudo se encontra em um único ambiente que vai ser o formador de personalidade desse indivíduo.

            A partir do momento que a escola passa a tratar de forma diferenciada seus alunos, seja por cor ou classe social, os mesmos podem se sentir excluídos e isso pode acarretar piores consequências. Trabalhar a questão linguística na escola é uma tarefa bastante complexa, pois as crianças ou jovens advêm de classes sociais diferentes e culturas próprias. Dizer a elas que o modo como falam ou se portam é errado, equivale a dizer que toda a comunidade dela é “burra” ou fala errado. Deste modo, conforme Gnerre (1991, p.: 06): “Todo ser humano tem que agir verbalmente de acordo com [...] regras, isto é, tem que ‘saber’: a) quando pode falar e quando não pode, b) que tipo de conteúdos referenciais lhe são consentidos, c) que tipo de variedade linguística é oportuno que seja usada.” Assim, é missão do educador, juntamente com a escola, não ignorar a forma como o aluno fala, mas conscientizá-lo que a variedade linguística do mesmo, apesar de ser correta, não é aceita em certos ambientes, o que exige que ele apreenda tanto a sua forma de falar, quanto a norma-padrão [30].

            Não é de admirarmos que exista o fracasso escolar. Os estudantes não se interessam, são repetentes, mal comportados e os pais não dão a mínima atenção a eles. Além do grupo social em que vivem muitas vezes, esses jovens encontram em casa uma família desestruturada, com os pais bêbados, com brigas, com drogas, com a miséria. Então se está tudo acabado, porque se preocupar em saber se o que ele fala é certo ou errado? Além disso, ao chegar à escola, ele simplesmente é ignorado, por não saber de nada, por ser filho de traficante ou pior do que isso, porque ele tem a pele negra. De acordo com Montoya (1996, p.: 156): “As oportunidades educacionais não se limitam àquilo que a escola oferece ou deixa de oferecer, mas também no modo como a família insere a criança no mundo da aquisição e produção do saber e da cultura.” Não estamos aqui para julgar de quem é a culpa, mas apenas podemos dizer que os jovens precisam não só de escola, mas também de acompanhamento familiar. A escola não pode sozinha, transformar uma pessoa da noite para o dia; nem tampouco pode dizer que ela não sabe de nada, antes de avaliar os conhecimentos dela.

            Conforme Labov (1972 APUD SOARES, 1997, p.: 47):

 

A teoria da privação verbal [31] é que ela atribui o fracasso escolar da criança a uma inexistente ‘deficiência linguística’; a explicação para esse fracasso deveria ser buscada na identificação dos obstáculos sociais e culturais à aprendizagem, e na inabilidade da escola em ajustar-se a realidade social.

 

O núcleo gestor acaba esquecendo que o aluno chega alheio à realidade da escola e mais do que isso, o aluno tem a sua própria realidade, que na maioria das vezes não é bem estruturada. É nesse momento que os educadores precisam ter uma boa formação para não discriminá-los, nem tacheá-los de deficientes, nem muito menos se esquecer de interagir conteúdo com o ambiente de onde o aluno vem. E, além disso, a família é de primordial importância para que a criança não se sinta desestimulada ou abandonada.

            Embasados em Soares (1997, p.: 48) de que a “deficiência linguística identifica conflitos estruturais e funcionais entre os dialetos não padrão e o dialeto padrão; a atitude que daí decorre é a de eliminação ou de erradicação, pela escola, dos dialetos não padrão, que ela procura substituir pelo dialeto-padrão.” Aqui se encontra o erro da escola. A mentalidade de que existem línguas inferiores e superiores impede que a escola veja na variedade de seus alunos, uma possibilidade a mais de linguagem e de fonte de conhecimento. No lugar disso, a instituição tenta substituir a cultura do aluno, por a norma-padrão, dizendo claramente que o modo como ele fala é errado. Daí forma-se crianças tímidas, vergonhosas e despreparadas para a vida social; com a única convicção de que a língua certa é o português, o qual elas não conseguem falar.

            Segundo Soares (1986, p.: 78):

 

Um ensino de língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece [...] o direito que tem as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.

 

A missão da escola é apropriar os alunos a um aprendizado proveitoso, do qual ela possa retirar aquilo de que necessita para viver em sociedade; para as demais precisões dos mesmos, a experiência que eles adquirem com a cultura do seu povo, é válida para satisfazê-los, afinal, não existem culturas incultas. Vale ressaltar aqui ainda, um comentário de Millôr Fernandes [32] (2010 APUD BAGNO, 2009, p.: 05), onde “O difícil é você se livrar dos idiotas que pretendem lutar ao seu lado interpretando a sua negação da cultura dominante como uma afirmação de louvor à ignorância.” Com isso, podemos afirmar que “burras”, “iletradas” ou “ignorantes” não são as pessoas que não dominam a língua padrão, mas sim àquelas que tentam corrigir estas últimas. Não há ninguém, melhor que ninguém. Somos todos iguais.

 

ANEXO 1

CUITELINHO

Cheguei na bera do porto
Onde as onda se espaia
As garça dá meia volta
E senta na bera da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia ai

Ai quando eu vim de minha terra
Despedi da parentaia
Eu entrei no Mato Grosso
Dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução
Enfrentei fortes bataia ai

A tua saudade corta
Como o aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a otra faia
E os oio se enche d'água
Que até a vista se atrapaia ai.

 

ANEXO 2

O poeta da roça

Sou fio das mata, cantô da mão grossa,

Trabáio na roça, de inverno e de estio.

A minha chupana é tapada de barro,

Só fumo cigarro de páia de mío.

 

Sou poeta das brenha, não faço o papé

De argum menestré, ou errante cantô

Que veve vagando, com sua viola,

Cantando, pachola, à percura de amô.

 

Não tenho sabença, pois nunca estudei,

Apenas eu sei o meu nome assiná.

Meu pai, coitadinho! vivia sem cobre,

E o fio do pobre não pode estudá.

 

Meu verso rastêro, singelo e sem graça,

Não entra na praça, no rico salão,

Meu verso só entra no campo e na roça

Nas pobre paioça, da serra ao sertão.

 

Só canto o buliço da vida apertada,

Da lida pesada, das roça e dos eito.

E às vez, recordando a feliz mocidade,

Canto uma sodade que mora em meu peito.

 

Eu canto o cabôco com suas caçada,

Nas noite assombrada que tudo apavora,

Por dentro da mata, com tanta corage

Topando as visage chamada caipora.

 

Eu canto o vaquêro vestido de côro,

Brigando com o tôro no mato fechado,

Que pega na ponta do brabo novio,

Ganhando lugio do dono do gado.

 

Eu canto o mendigo de sujo farrapo,

Coberto de trapo e mochila na mão,

Que chora pedindo o socorro dos home,

E tomba de fome, sem casa e sem pão.

 

E assim, sem cobiça dos cofre luzente,

Eu vivo contente e feliz com a sorte,

Morando no campo, sem vê a cidade,

Cantando as verdade das coisa do Norte.

 

 

REFERÊNCIAS

BAGNO, Marcos. A língua de Eulália. 16.ed., São Paulo: Contexto, 2010.

 

BAGNO, Marcos. Não é errado falar assim! 2.ed., São Paulo: Parábola Editorial, 2009.

 

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: O que é, como se faz. 48.ed., São Paulo: Edições Loyola, 2007.

 

BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro? 4.ed., São Paulo: Parábola Editorial, 2004.

 

CUNHA, Celso. Nova gramática do português contemporâneo. 5.ed., Rio de Janeiro: Lexikon, 2008.

 

BENVENISTE, E. Problemas de Linguística Geral II. 1.ed., São Paulo: Editora Nacional, 1968.

 

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. 4.ed., São Paulo: Parábola, 2002.

 

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 3.ed., São Paulo: Ltda, 1991.

 

MAURO, Di Tullio. Une introduction à La sémantique. 1.ed., Paris: Payot, 1969.

 

MONTOYA, Adrian Oscar Dongo. Piaget e a criança favelada. 1.ed., Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

 

SOARES, Magda. Linguagem e escola: uma perspectiva social. 1.ed., São Paulo: Ática, 1997.

 

http://conhecimentopratico.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/19/imprime159580.asp

 

http://conhecimentopratico.uol.com.br/linguaportuguesa/gramatica-ortografia/16/artigo181019-2.asp

 

http://www.fisica.ufpb.br/~romero/port/ga_pa.htm#Opoe

 

http://educacao.uol.com.br/portugues/ult1693u60.jhtm

 

http://letras.terra.com.br/nara-leao/286075/

 

http://pt.wikipedia.org/wiki/Wikipédia


[1] Estudante do 5º período do curso de Letras, com habilidade em Língua Portuguesa.

[2]Para os gramáticos, puristas e falantes preconceituosos, tudo o que foge às regras gramaticais representam desvios, erros, preguiça, incoerências.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] Ideia falsa, mito de que a única língua falada no Brasil é o Português.

[7]É uma incorreção de linguagem permitida na poesia e que, recentemente, vem sendo consentida para as pessoas da classe abastada da sociedade.

[8] Político, ex-sindicalista e ex-presidente da República do Brasil.

[10]Referente à norma padrão.

[11] Belo equivale a tudo o que é escrito ou falado, conforme a língua padrão.

[12] Outra designação para as pessoas que não falam segundo as regras gramaticais.

[13] Idem.

[14] Idem.

[15] Retirar.

[16] Refere-se à verdadeira língua que deveria ser estudada no Brasil, visto que os brasileiros não falam somente o português, mas diversas variedades linguísticas.

[17] Valor econômico; o dinheiro em si.

[18] Aspecto moral; qualidades das pessoas.

[19] Por conta do valor econômico desses estados, a forma de falar dos mesmos é privilegiada frente às outras, servindo, pois de modelos.

[20] Estereótipo que “condena” as pessoas que moram no interior, ressaltando que os mesmos não sabem falar.

[21]  Compositor desconhecido.

[22]  Foi uma cantora brasileira.

[23]  Esse trecho e os demais podem ser vistos na música que está em anexo.

[24]  Estudos que comprovaram que as palavras ou estruturas não ocorrem simplesmente por opção do falante, mas obedecem a um padrão sistemático regulado por regras especiais, conhecidas como regras variáveis, que expressam a covariação entre elementos do ambiente linguístico e do contexto social.

[25] Produto está sendo utilizado no sentido econômico para comparar às pessoas; elas valem por o que tem e não por o que são.

[26] Termo pejorativo para falar da variedade linguística de certos falantes, demonstrando claramente o preconceito.

[27] Idem.

[28] Idem.

[29] Antônio Gonçalves da Silva foi poeta popular, compositor, cantor e improvisador brasileiro. (Cidadão do campo, semianalfabeto).

[30] Para Magda Soares, essa solução chama-se Bidialetalismo.

[31] Teoria que explica as diferenças entre a linguagem de crianças das classes favorecidas e a de crianças das camadas populares com base nas causas externas à situação em que a linguagem foi observada (origem de classe, contexto cultural).

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Autor: Márcia Maria Araújo Fonteles


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Importância Da Valorização Do Vernáculo Em Nossas Escolas.

O Que É A GramÁtica Na Escola?

Grata,eu?

Estudo Dos Logaritmos Parte 1