Aborto de fetos anencéfalos e a liberdade individual



 

No último dia 12 de Abril o Supremo Tribunal Federal decidiu que o aborto de fetos anencéfalos não é mais considerado crime. A anencefalia não é - como muitos pensam - a ausência total de massa encefálica, mas uma má formação do cérebro e do córtex que faz com que o feto nasça morto, estatisticamente, em 75% dos casos e os que sobrevivem tenham uma expectativa de vida de no máximo 48 horas. Existem casos de crianças que sobrevivem bem mais tempo, desafiando a ciência, mas são exceções de uma regra.

Todos sabem que não é de agora que deputados e ministros favoráveis a essa decisão lutam para tirar o Brasil da contramão do resto do mundo, e finalmente legalizar algo que já é permitido em vários países, até mesmo cuja maioria da população é católica (instituição que sempre se opôs a qualquer tipo de aborto) como Portugal e Itália. O argumento de muitos deputados e ministros favoráveis a essa decisão - além do fato óbvio de que a gestação de um feto anencéfalo põe em risco a vida da mulher - se baseia na liberdade individual. Uma mãe que não deseja ter um filho anencéfalo, tem o direito de abortar, seja por simplesmente não querer carregar algo que ela vê como um fardo, ou não ver sentido em ter uma gestação complicada, que pode pôr em risco sua própria vida, e que muito provavelmente resultará no nascimento de um feto morto, ou que não irá sobreviver por muito tempo após o nascimento; assim como uma mãe, que por fé, ou amor decide ter o filho, mesmo sabendo de todas as complicações da doença também tem o direito de simplesmente não abortar. Não se trata de ser a favor do aborto de fetos anencéfalos, e sim de sua descriminalização.

Entretanto, a bancada contrária a decisão do STF argumenta principalmente em cima do direito à vida, da preservação da expectativa da vida, e também da igualdade, pois segundo eles, um feto anencéfalo tem os mesmos direitos de um feto saudável. Fato é que o aborto de crianças anencéfalas é agora lícito. Em uma decisão de 8 votos a 2 - sendo Cezar Peluso, presidente do STF, e Ricardo Lewandowski, ministro, os dois autores dos votos contrários à decisão - o STF liberou o aborto nesses casos. O presidente Cezar Peluso criticou duramente o aborto de anencéfalos, comparando tal ato com a eugenia, dizendo: “Todos esses casos retratam a absurda defesa da superioridade de alguns, de raça branca, ariana sobre outros, negros, judeus.” Nenhum comentário poderia ter sido tão infeliz. Simplesmente salta aos olhos a diferença entre dar a liberdade para uma mulher abrir mão de uma gestação tão complicada física e psicologicamente e a defesa da teoria de uma raça superior. Estamos falando de liberdade individual, não de uma teoria absurda que causou a perseguição de milhões de judeus, armênios, negros, etc. Penso que para evitarmos esse tipo de comparação deveríamos legalizar o aborto de modo geral. Vale lembrar também, que o argumento de que os fetos anencéfalos também têm direito a vida se torna contraditório a partir do momento que temos o conhecimento de que o aborto em caso de estupro já é lícito há algum tempo. Por que um feto concebido através do estupro não tem esse mesmo direito à vida?

Difícil não falar aqui da enorme influência da religião nessa questão, pois poucas questões são tão permeadas pela religiosidade, assim como a pena de morte, a eutanásia, e até a prostituição. Vivemos em um país onde mais de 70% das pessoas é católica, sendo que a Igreja é uma instituição que, infelizmente, ainda tem uma forte influência política e social no Brasil e no mundo. Entre os diversos dogmas da Igreja está o de que “o homem é formado por corpo material e alma espiritual” e essa suposta “alma” começaria na fecundação e, portanto, já estaria presente no momento em que existe o embrião dentro da barriga da gestante. Mas a verdade é que os cientistas ainda não chegaram a um consenso de quando a vida realmente começa. É por causa desse dogma que a Igreja condena qualquer tipo de aborto, é este dogma que sacraliza a vida humana. No meu modo de ver, a Igreja é o principal motivo para o aborto de anencéfalos só ser legalizado no Brasil depois de muita discussão, e em pleno século XXI, sendo que essa decisão ainda está causando muita polêmica. Por que não abortar? Por causa da suposição de que estamos matando uma alma? Uma suposição baseada em um dogma religioso? A nossa constituição fala em respeito e igualdade para com diferentes crenças, ou seja, se uma mãe acredita que deva receber aquele feto anencéfalo, porque essa é a vontade de Deus, tudo bem, é o seu direito, assim como uma que não acredita nisso e acha que essa gestação vai servir apenas para causar um grande transtorno e um grande sofrimento também tem o direito de abortar. No meu modo de ver, essa decisão do STF foi um grande avanço para a nossa sociedade se livrar de fundamentalismos religiosos, e quem sabe, futuramente, legalizar o aborto de modo geral.

Deixando de lado a questão da influência religiosa, e falando do aborto de um modo geral, não só nos casos de anencefalia (até por que é difícil falar em aborto de anencéfalos sem falar no aborto de modo geral), penso que o mesmo Estado que não dá a assistência devida para o setor da saúde, fazendo com que não haja programas devidos de educação sexual, principalmente entre as mulheres de comunidades carentes - que são as que mais sofrem com as conseqüências de um aborto clandestino - não pode condenar uma mãe, que por falta dessa conscientização que deveria ser dada pelo Estado, engravide várias vezes, sem ter o direito ao aborto, fazendo com que nasçam cada vez mais crianças sem assistência nenhuma e com um futuro incerto (que acabarão sendo um peso para a sociedade), ou fazendo com que a mãe se submeta a uma perigosa clínica clandestina de aborto. As mães das classes mais abastadas têm condições de abortar em uma clínica mais segura mesmo que também seja clandestina, e criminalizar o aborto não vai fazer com que as mães ricas parem de abortar, mas vai fazer com que muitas mães pobres acabem morrendo devido a um aborto feito de forma irregular.

Portanto, me posiciono a favor da descriminalização de qualquer tipo de aborto. Penso que para evitarmos essa sensação de desigualdade entre crianças anencéfalas e crianças saudáveis – e evitar também comentários infelizes como o do nosso presidente do STF – deveríamos legalizar todo e qualquer tipo de aborto. Deveríamos seguir o mesmo modelo que quase todos os países da Europa seguem, assim como os EUA, Canadá, México, Uruguai, etc., que consideram legal o aborto desde que o feto tenha até três meses, pois a partir daí torna-se perigoso para a mãe abortar. Sou a favor, inclusive, que o Estado forneça o serviço de aborto de forma gratuita e segura, e o primeiro passo para começar a investir em tal serviço, é legalizá-lo. Reforço que sou a favor da liberdade individual; repito que não se trata de ser a favor do aborto e sim de sua descriminalização. Entendo que uma mãe que sinta seu filho dentro da barriga, mesmo sendo ele anencéfalo, mesmo sabendo que ele poderá nascer morto ou simplesmente ter uma vida extrauterina muito curta, pode sim, seja por fé ou por amor, querer conceber essa criança. Confesso que não sei como me comportaria se fosse comigo, se fosse eu que tivesse um filho nessas condições. Mas a questão é que nenhuma lei vai me obrigar a abortar, e eu não quero que nenhuma lei me obrigue a não abortar.


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