Uma reflexão a cerca do regionalismo e da representação do gaúcho por meio da obra “Netto Perde Sua Alma”



UMA REFLEXÃO A CERCA DO REGIONALISMO E DA REPRESENTAÇÃO DO GAÚCHO POR MEIO DA OBRA “NETTO PERDE SUA ALMA”

 

 

Taisa Luiz Soares¹

Miriam Denise Kelm²

 

RESUMO

Este artigo tem como objetivo refletir sobre as características da literatura regionalista por meio da obra “Netto Perde sua Alma”, do autor Tabajara Ruas. Além disso, pretende traçar a construção e desconstrução do gaúcho através do personagem Antônio de Souza Netto, o Proclamador da República Rio-Grandense. Logo, perceber como se dá o processo de humanização deste herói, do início ao fim da obra. Para o embasamento deste trabalho, trazemos teóricos estudados ao longo da disciplina de Literatura Sul-Rio-Grandense.

Palavras chave: literatura regionalista – construção – desconstrução – gaúcho

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre las características de la literatura regionalista por medio de la obra “Netto Perde Sua Alma”, del autor Tabajara Ruas. Además de eso, pretende describir la construcción e desconstrucción del gaucho a través del personaje Antônio de Souza Netto, el Proclamador de la Republica Rio-Grandense. Luego, percibir como se da el proceso de humanización de este héroe, del inicio al fin de la obra. Para la base de este trabajo, traemos teóricos estudiados a lo largo de la asignatura de Literatura Sul-Rio-Grandense.

Palabras clave: literatura regionalista – construcción – desconstrucción – gaucho

 

______________________

¹ Acadêmica do sétimo semestre do curso de Letras - Português/Espanhol, Unipampa, Bagé-RS

² Professora e orientadora da disciplina de Literatura Sul-Rio-Grandense, Unipampa, Bagé-RS

  1. 1.      INTRODUÇÃO

O presente artigo justifica-se pelo fato de discutir o regionalismo presente na obra de Tabajara Ruas, “Netto Perde sua Alma”, por meio de conceitos teóricos estudados durante a disciplina de Literatura Sul-Rio-Grandense. Também será abordado neste trabalho o mito do gaúcho, refletindo a construção e desconstrução do personagem principal da obra, Antônio de Souza Netto.

O processo de humanização do herói da obra também será destacado neste artigo, assim como a relação entre a história real do Rio Grande do Sul e a ficção presente no texto de Tabajara Ruas.

A questão norteadora deste trabalho resume-se em refletir sobre a representação do gaúcho através de um herói da história Rio-Grandense dentro de um romance, que mescla o real com o ficcional.

Em um primeiro momento, apresentamos algumas concepções teóricas a cerca do tema tratado neste artigo, como literatura regionalista e construção e desconstrução do gaúcho. Em seguida, apresentamos a metodologia do trabalho, resultados e conclusão, seguidos das referências utilizadas para a elaboração e reflexão deste material.

 

  1. 2.      REFERENCIAL TEÓRICO

Para discutir aspectos da literatura regionalista e do mito do gaúcho, apresentamos algumas concepções, idéias e visões de renomados teóricos a cerca do tema.

Para Bittencourt (1999), houve no mínimo quatro regionalismos na literatura rio-grandense: um romântico, que idealizou o herói gaúcho e o passado guerreiro (tipo de regionalismo tratado na obra analisada); um tradicional, de cunho real/naturalista, que fixou as transformações da sociedade campeira e o desaparecimento do antigo gaúcho (momento de dissolução do mito do gaúcho); um, que se propôs a transformar a tradição sob o influxo do modernismo, e um regionalismo que podemos chamar de crítico ou social, na medida em que denunciou a desestruturação da sociedade campeira e a proletarização do gaúcho.

Na obra “Netto Perde sua Alma”, encontramos características desses quatro regionalismos, desde o momento de exaltação do herói até a desconstrução e humanização deste personagem.

Segundo a autora, difundiu-se através do texto regionalista, um outro conceito de fundo ideológico que é o da “democracia no campo”:

 

Patrão e empregado igualavam-se ao tomarem chimarrão na mesma cuia e ao vestirem-se com as mesmas indumentárias, trazendo dividendos aos proprietários rurais que ficavam, assim, bem vistos na sociedade sulina. Da mesma forma, introjetou-se no imaginário popular do Rio Grande uma imagem de harmonia e unidade que interessava a essa classe dirigente manter, não só como forma de controlar as tensões sociais, mas também para obter a coesão e a força de que necessitava para fazer frente aos inimigos externos. (BITTENCOURT, 1999, p. 23)

 

Bittencourt (1999) destaca que o fortalecimento dessa cultura regional, deveu-se ao isolamento do Rio Grande do Sul em relação ao restante do país. Essas condições históricas e culturais contribuíram para definir a literatura gaúcha.

De acordo com Pereira (s/d) apud Leite (1978), os costumes no regionalismo são índices de características morais. Observa-se:

 

O regionalista sobrepõe o particular ao universal, o local ao humano, o pitoresco ao psicológico, movido menos pelo interesse de observar costumes  - porque então se confundiria com o realista - do que pela crença a seu tanto ingênua de que divergências de hábitos significam divergências essenciais de feitio. (PEREIRA, s/d, apud LEITE, 1978, p.36)

 

Ainda sobre o regionalismo, Cesar (1972) apud Leite (1978), caracteriza e situa a Literatura Gaúcha num panorama geral:

 

A gauchesca se liga à temática da Campanha como procurando as peculiaridades da vida primitiva pelo gosto nostálgico do primitivo. O desejo de documentar um paraíso perdido, uma idade idílica que não volta mais. (CESAR, 1972, apud LEITE, 1978, p. 37)

 

Já para Chaves (2001), o regionalismo é uma preciosa fonte de enriquecimento para a literatura nacional e uma marca permanente da ficção brasileira. Para o autor, a literatura regionalista tem a capacidade de lidar com elementos locais e atingir o universal. Veja-se:

 

O regionalismo nada mais foi senão uma forma ideal de expressão artística dentro da literatura, ele não se esgota na representação mimética do espaço regional; inclui a condição problemática do homem, impondo os meios de sua própria expressão. Daí nascem os vários níveis do discurso literário, todos estruturalmente independentes na unidade do resultado final – o regional, o histórico, o psicológico e o mítico. (CHAVES, 2001, p. 18)

 

Entrando na temática do gaúcho, Bosak (2010), problematiza o que vem a ser o gaúcho através de questionamentos como: realidade, construção histórica, invenção ou legado literário adaptado aos nossos dias? Buscando possíveis respostas, ela destaca a ambigüidade do termo:

A ambigüidade do gaucho presente, portanto, desde os mais primordiais questionamentos, desde sua definição, de seu inicio como objeto e caráter. A origem da palavra gaúcho, a busca da sua formação e a construção de uma realidade gaucha foram e continuam sendo temas estudados, elocubrados e até mesmo inventados por quem se atreve nessa seara, tão cheia de meandros como qualquer busca identitária. (BOSAK, 2010, p. 49)

 

Segundo a autora, o gaúcho é senhor da fronteira; sua identidade se forma no entre-lugar, no intervalo entre ser brasileiro, uruguaio, argentino, platino, luso e ibero-latino-americano, e não pode ser mais multicultural. Ela reflete sobre como o gaúcho era visto no passado e como passou a ser reconhecido:

 

Se o gaúcho antes era tido como viramundo, vagabundo, ladrão, contrabandista, matrero, ele se transforma, agora, em símbolo de luta, de resistência, de apego às raízes, ao telurismo, torna-se sinônimo de bravo, aguerrido, defensor das tradições, com coragem para permanecer se modificando constantemente. (BOSAK, 2010, p. 69)

 

De acordo com Chaves (2006), o gaúcho foi chamado de guasca e gaudério, porém ao final do século XVIII surge o gaucho, com sentido pejorativo, englobando adjetivos como, ladrões, desertores, vagabundos. Já no século XIX aparece o termo gaúcho, significando guerreiro e peão, mais tarde designado como monarca das coxilhas.

Para Faoro (1949) apud Chaves (2006), há dois elementos básicos na transição histórica em que se estruturou a sociedade sul-rio-grandense – a formação da estância, dentro do regime de dominação patrimonial, e a militarização do pampa.

Em seguida, Chaves (2006) destaca as duas faces do gaúcho a partir desses elementos, observa-se:

É a partir dessa raiz que o gaúcho passa a ser representado sob uma dupla faze: por um lado, o campeador, embrenhado na vastidão dos campos à volta com seu gado; por outro, o guerreiro em combate incessante contra o inimigo da banda oriental. (CHAVES, 2006, p. 38)

 

Logo, a obra de Tabajara Ruas, traz características do regionalismo que aqui foi apresentado, não só com o foco na geografia do Rio Grande, mas sim detalhando aspectos culturais e psicológicos do povo gaúcho. Também neste texto podemos observar como o gaúcho é caracterizado enquanto guerreiro, campeador e desbravador de terras, opondo-se ao termo “gaucho” atribuído no passado.

 

  1. 3.      METODOLOGIA

A metodologia deste artigo baseia-se na leitura da obra “Netto Perde sua Alma”, de Tabajara Ruas, além de textos teóricos e registros das aulas de Literatura Sul-Rio-Grandense. A partir desses materiais, refletimos e analisamos os conceitos de regionalismo, construção/desconstrução do gaúcho, humanização do herói e aspectos da história gaúcha.

De acordo com Wikipédia (2011), apresentamos um breve resumo da obra para contextualizar o leitor deste artigo. Antônio de Sousa Neto é um general brasileiro que é ferido no combate na Guerra do Paraguai. Sua recuperação é no Hospital Militar de Corrientes, na Argentina. Lá ele percebe acontecimentos estranhos, como o capitão de Los Santos acusar o cirurgião de ter amputado suas pernas sem necessidade e reencontrar um antigo camarada, o sargento Caldeira, ex-escravo com quem lutou na Guerra dos Farrapos, ocorrida algumas décadas antes. Juntamente com Caldeira, Netto rememora suas participações na guerra e ainda o encontro com Milonga, jovem escravo que se alistara no Corpo de Lanceiros Negros, além do período em que viveu no exílio no Uruguai.

Por regionalismo, entende-se a literatura que põe seu foco em determinada região do país, com o objetivo de retratá-la de maneira mais superficial ou mais profunda. Esse foco não recai somente sobre a geografia do local, mas também sobre o povo, seus costumes, cultura, linguagem, modo de vida.

Refletindo sobre o mito da gaúcho, sua construção e dissolução, temos uma identidade gaucha arraigada à um passado de batalhas, lutas, barbáries e heroísmo, tudo registrado em uma literatura habilidosa que mantém essa identidade viva dentro da maioria dos gaúchos. Por outro lado, o romantizado e bravo gaúcho teve de enfrentar outra realidade social e econômica, deixando no passado toda a ideia de um povo “peleador”. O gaúcho atual, passou por um processo de desconstrução, pois com o fim das guerras e batalhas, teve que se adaptar ao novo modo de vida que a sociedade moderna exigiu. Com a migração do campo para a cidade, o substrato que sustentava o gaúcho "tradicional", e que o promovia, ruiu de vez.

 

  1. 4.      RESULTADOS E DISCUSSÕES

Durante a leitura de “Netto Perde sua Alma”, podemos perceber a presença de uma literatura regionalista. Não só por a obra ter como espaço o Rio Grande do Sul, mais precisamente sua fronteira com Uruguai e Argentina, mas também por retratar parte da história de um povo, suas lutas, conquistas e derrotas.

O regionalismo neste texto mistura fatos históricos reais com a ficção e criatividade do autor. Na obra ele apresenta partes da história de um herói gaúcho durante um período relevante para este povo, a tão sonhada proclamação da República Rio-Grandense.

Nesta literatura regionalista percebemos uma linguagem típica do gaúcho do interior, léxico que em muitos locais do Estado ainda é mantido e utilizado. Também há presença de uma linguagem mesclada com o castelhano, esta que vem a caracterizar a região de fronteira do Rio Grande.

A campanha, a fronteira, o pampa, fazem parte da geografia regionalista da obra. Além disso, temos o cavalo, animal indispensável na vida do gaúcho do campo e relevante para retratar a presença do regionalismo deste Estado.

A Revolução Farroupilha, Batalha do Seival, Proclamação da República Rio-Grandense, Guerra contra Rosas e a Guerra do Paraguai são alguns dos acontecimentos históricos mencionados no romance que relacionam a literatura regionalista com a história real do Rio Grande do Sul.  Acontecimentos estes que envolvem de forma direta o protagonista desta obra.

Outro aspecto regional que traz a obra é a descrição de lutas e batalhas que se travaram no território gaúcho, algumas delas, contavam com a presença do laço, instrumento tradicional na vida do gaúcho campeiro. Também são abordados no texto as estâncias, os escravos e os acampamentos, todos referentes ao aspecto regionalista do Estado.

Analisando o herói do romance, Antônio de Souza Netto, percebe-se que há uma exaltação em torno deste gaúcho. Na obra, o gaúcho é caracterizado como herói, guerreiro, valente, corajoso, destemido, preocupado com seu povo. Logo nota-se uma construção de valores que permanece até hoje ligada ao termo gaúcho. Porém esta construção só é mantida por meio da literatura regionalista, que cultiva essa tradição de exaltar o gaúcho mesmo que este já tenha sido desconstruído pelas mudanças sociais, econômicas e políticas.

O general Netto representa na obra toda a bravura que é atribuída ao povo gaúcho. Além disso, explicita sua devoção a este Estado, sentimento que é mantido pelos gaúchos desde os tempos mais remotos. Antes de tudo somos gaúchos, logo brasileiros.

Porém esse nobre sentimento que movia o general foi abalado pelo fracasso da República Rio-Grandense. Não concordando com os termos desse tratado de paz, retira-se para o Uruguai, no qual caracteriza - se como gaúcho campeiro, peão, que vive no campo e cria gado. Mesmo afastado de seu rincão, como todo bom gaúcho sempre que podia retornava à sua terra natal, onde mantinha - se informado dos acontecimentos.

Após ser ferido na Batalha do Tuyuty, percebemos a desconstrução e humanização deste herói gaúcho. Esquecido em um quarto de hospital na Argentina, o general contava apenas com a presença espiritual de seu fiel companheiro de batalha sargento Caldeira. Atormentado pela febre e pela dor percebe-se um herói derrotado, que sem condições de lutar, entrega-se à morte.

Com um final humanizado, representando que todos nós caminhamos para o mesmo destino, Netto, com toda sua valentia, símbolo do povo gaúcho, perde sua alma.

 A humanização do general Netto, não se dá somente no seu desenlace terreno, durante toda sua vida lutou para defender um povo marginalizado e escravizado pela sociedade, os negros gaúchos. Para eles Netto foi mais que um herói, foi humano, fiel e amigo.

 

  1. 5.      CONCLUSÃO

Ao fim deste trabalho, podemos concluir que a obra “Netto Perde sua Alma” é um romance representante da literatura regionalista. Também tem em seu protagonista a representação ideal do gaúcho, porém sem deixar de torná-lo humano, pois Netto não foi caracterizado como um super herói, invencível, e sim como uma pessoa que apresenta momentos de fraqueza e defeitos, e assim como todos, perde sua alma quando não é mais possível viver.

Tabajara Ruas, com criatividade e talento, produziu um romance que mesclou heroísmo, história, regionalismo e ficção. Em suma, nos apresentou um gaúcho que dá orgulho ao povo deste rincão.

Este texto é mais uma obra que mantêm viva a construção identitária deste povo, pois exalta o gaúcho no sentido mais amplo do termo: cordial, campeador, guerreiro, corajoso.

 

 

REFERÊNCIAS

BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. O conto sul-rio-grandense: tradição e modernidade. Porto Alegre: EDUFRGS, 1999. 108 p.

BOSAK, Joana. De guaxos e de sombras. Um ensaio sobre a identidade do gaúcho. Porto Alegre: Dublinense, 2010.

CHAVES, Flávio Loureira. Simões Lopes Neto. 2ª Ed. Porto Alegre: EDUFRGS, 2001.

________. Ponta de estoque. Caxias do Sul: EDCUS, 2006.

LEITE, Ligia Chiappini Moraes. Regionalismo e Modernismo: o caso gaúcho. São Paulo: Ática, 1978.

RUAS, Tabajara. Netto Perde sua Alma. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. 160 p.

WIKIPÉDIA. Disponível em: Acesso em: 16 jun. 2011.

 


Autor: Taisa Luiz Soares


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