Cenas de reconhecimento na obra Odisséia



RECONHECIMENTO NA POÉTICA

Na Poética de Aristóteles, define-se o enredo simples, considerando aquele em que a ação é coerente e una, e a mudança ocorre sem peripécias nem reconhecimentos, e o enredo complexo. No enredo complexo, a mudança de fortuna é acompanhada de peripécias ou reconhecimentos, ou ainda, de ambas as coisas. Essas mudanças, conforme o autor, devem estar nas próprias ações, sendo resultado de acontecimentos anteriores, e devem seguir o princípio da necessidade e da verossimilhança, pois é diferente uma coisa acontecer por causa de outra ou apenas depois de outra. O enredo complexo divide-se em três partes: peripécia, reconhecimento e sofrimento, que são elementos essenciais de um enredo trágico.

A primeira parte do enredo seria então a peripécia (peripeteia), para Aristóteles, trata-se da mudança no rumo dos acontecimentos, uma inversão, por assim dizer, nos fatos. A segunda parte do enredo é o reconhecimento, como o nome indica, é a passagem da ignorância para o conhecimento, resultando em amizade ou ódio entre os envolvidos.

O reconhecimento (anagnórisis) é apresentado por Aristóteles em cinco espécies. A primeira, o reconhecimento por sinais (congênitos ou adquiridos), considerada por ele a que possui menos arte e é usada por falta de engenho ou criatividade do poeta. A segunda espécie de reconhecimento é aquele forjado pelo poeta, também considerado um reconhecimento sem arte; ocorre quando pela recitação do poeta, a personagem, através de lembranças ou de semelhanças de acontecimentos, é conduzida ao reconhecimento. A terceira maneira de reconhecimento citada é aquela que ocorre por recordação, quando ao ver alguma coisa, ouvir algo ou vivenciar um acontecimento, surge o reconhecimento. O quarto reconhecimento dá-se por raciocínio: onde a personagem é conduzida (através de uma fala, de uma situação, ou até mesmo através de pessoas parecidas) a concluir através de silogismo ou paralogismo o que ocorre, e consequentemente, chegar ao reconhecimento (essa é tida por Aristóteles o segundo melhor espécie). A quinta e última espécie de reconhecimento é o decorrente das ações e é considerado por Aristóteles o melhor de todos, quando as ações surgem em meio a fatos verossímeis. A terceira parte do enredo seria o sofrimento (patético, derivado de páthos) seriam atos destruidores ou dolorosos que resultam no sofrimento e que seria o clímax da tragédia.

A ODISSÉIA

Reconhecida mundialmente como um dos maiores épicos da humanidade, criada em meados do século VIII a.C. e de autoria atribuída a Homero, a obra Odisseia é composta por 12.110 versos no hexâmetro dactílico e divididos em XXIV cantos que se dividem basicamente em: Telemaquia (a saída de Telêmaco da cidade de Ítaca em busca de Ulisses, seu pai), cantos I a IV, a narrativa das viagens de Ulisses nos cantos V a XII e o retorno e chegada de Odisseu à Ítaca, nos cantos XIII a XXIV. Um detalhe interessante observado por Ítalo Calvino, em seu livro “Por que ler os clássicos” é que não devemos nunca nos esquecer de que a Odisseia narra a volta de Ulisses, não sendo, portanto, uma viagem de ida, mas sim, e sempre, uma viagem de volta. Conforme Calvino, é possível ainda destacarmos várias “Odisseias” na Odisseia; ressaltamos aqui que, cada reconhecimento ocorrido, com ênfase no reconhecimento de Ulisses por Penélope, sua esposa, é uma odisseia, se observarmos o sentido literal da palavra apresentado no dicionário, onde este termo representa uma: série de acontecimentos anormais e variados.

Esta narrativa aborda várias situações vividas por Ulisses, o qual já estava há aproximadamente 20 anos longe de sua casa e sua parentela, supõe-se que daí surgiu a necessidade do poeta em narrar fatos que “preenchessem” estes anos; contudo, o foco deste trabalho está em apresentar como ocorreram as cenas de reconhecimento na obra.

Considerada por Aristóteles como essencial para a elaboração de um enredo complexo (sendo o enredo complexo a produção ideal para ser apreciada e atingir o propósito peculiar de uma tragédia – a catharse, conforme o autor), o elemento de reconhecimento é bastante abordado na obra em questão, até mesmo porque, devido ao fato de estar a tanto tempo longe, Telêmaco, filho de Odisseu, ainda não conhecia seu pai, pois era ainda muito criança quando Ulisses partiu para guerrear contra Tróia. Há ainda a questão da deusa Palas Atena, que o envelhecia ou rejuvenescia, mudando-lhe a aparência constantemente, ora fazendo-o mendigo, ora fazendo-o nobre. Assim, difícil era para Ulisses ser reconhecido, considerando também o fato de que, na maioria das vezes, a princípio, ele não queria mesmo que houvesse o reconhecimento.

Segue, portanto, a descrição de cinco cenas de reconhecimento que acontecem a partir do canto VIII. A primeira ocorre no último lugar em que Ulisses esteve antes de retornar à pátria, as outras, ocorrem quando ele já está em Ítaca. Ressaltamos, contudo, que as partes apresentadas não envolvem todas as cenas onde ocorrem os reconhecimentos , tal qual foram sistematizados por Aristóteles, na obra Odisseia, de Homero.

CENAS DE RECONHECIMENTO DE ULISSES

Reconhecimento de Ulisses pelo rei Alcinoo

Ocorre quando Ulisses, acolhido pelo rei Alcinoo, ao ouvir o arauto Demódoco a narrar para o rei e seus convidados (entre eles, Ulisses) os grandes feitos dos Gregos durante o final da conquista de Tróia, sendo esta já a segunda vez que Demódoco é chamado à presença do rei e canta sobre os feitos dos gregos sobre os troianos e a terceira que ele comparece à presença do rei para recitar.

São dois os elementos que favorecem o reconhecimento: o primeiro seria por recordação/memória (descrita por Aristóteles como a terceira espécie de reconhecimento) que acontece quando se vê (no caso, se ouve) alguma coisa sobre o assunto e o segundo seria urdido pelo poeta. Ulisses ao ouvir a narrativa de Demódoco, se recorda e chora, fazendo com que seja reconhecido, e o fato deste reconhecimento por memória acontecer devido citaredo, nos leva ao segundo reconhecimento (que é também o segundo citado por Aristóteles), que é o reconhecimento forjado pelo poeta. Podemos verificar estes reconhecimentos no canto VIII, no decorrer dos versos 470-600 aproximadamente.

Reconhecimento de Ulisses pelo filho Telêmaco

Um homem inicialmente estranho se aproxima de Telêmaco e diz ser seu pai, mas o jovem de inicio o rejeita, dizendo que aquele que ali se fazia presente na verdade era um demônio. Entretanto após conversarem, Telêmaco reconhece Ulisses, se abraçam e choram. Esse reconhecimento acontece por declaração através de duas tentativas, que se fazem presentes no canto VIII, primeiro nos versos 187-189 e posteriormente nos versos 202-212.

O reconhecimento por declaração, também conhecido como reconhecimento por raciocínio, decorre de acontecimentos espantosos que são frutos de fatos verossímeis. Esse reconhecimento se deu de forma um tanto quanto peculiar, uma vez que quando Ulisses saiu de casa para ir para a guerra de Tróia, seu filho Telêmaco era apenas um menino, logo não seria possível o reconhecimento imediato deste como pai após tantos anos.

Vale ressaltar foi o primeiro encontro de Telêmaco com seu pai, o que já impossibilita de ser um reconhecimento por recordação, sinais ou forjado pelo poeta. Ficou confuso ao ver Ulisses vestido de mendigo e depois como um deus e dizendo ser seu pai, em um espaço de tempo tão curto. Em se tratando de reconhecimento por raciocínio, o primeiro contato do filho com o pai se deu de forma ilógica, ao passo que o segundo contato gerou outra declaração que se fez de forma mais clara e consequentemente lógica.

Reconhecimento de Ulisses pela sua serva Euricléia

O reconhecimento da serva Euricléia, assim como o de Penélope (esposa de Ulisses), é extremamente marcante pela beleza da sequencia dos acontecimentos e a singularidade do momento. Euricléia é a serva mais antiga do palácio, participou de toda a trajetória de Ulisses, enquanto rei, e de todo labor de Penélope na ausência de seu amo. Nota-se o apreço que Ulisses tem por ela, ao solicitar a Penélope que fosse a mais antiga serva do palácio que lhe lavasse os pés (v.v 346-348, canto XIX), sabendo ele que seria Euricléia a designada para este trabalho. Assim, após Ulisses conquistar a benevolência de Penélope, mesmo se apresentando a ela como forasteiro e mendigo, conforme os costumes hospitaleiros a rainha solicita então que a serva lhe lave os pés. Da mesma forma que aparenta predileção por Euricléia, o fato de ele segurá-la pelo pescoço, causa estranheza e certo espanto, contudo, no continuar da narrativa, percebe-se que tal atitude foi necessária para que seus planos se concretizassem.

Apesar de este reconhecimento ser marcado como um típico reconhecimento por sinal, através do contato direto que a serva tem com a cicatriz na coxa de Ulisses (v.v 393, 394 do canto XIX), cicatriz esta inconfundível aos olhos da criada, que teve o conhecimento de como tal marca foi adquirida e qual o local exato do sinal adquirido. Gostaríamos de ressaltar aqui, que em um primeiro contato, ocorre a questão da lembrança do amo através da semelhança física entre o mendigo e Ulisses, dito pela serva, o que poderíamos enquadrar no reconhecimento por memória, conforme consta nos versos 379 a 382, uma espécie de silogismo que não se conclui (tem o corpo como o de Odisseu, fala como Odisseu, logo...): “[...] nunca vi semelhança tão grande como essa que mostras com Odisseu, não somente no corpo, nos pés e na fala.”.

Isso cria uma expectativa quanto ao reconhecimento, que culmina com a visão da cicatriz. Daí a beleza do reconhecimento, que a nosso ver, se engrandece com a expectativa que o primeiro contato de Euricléia gera, quando ao olhar para o mendigo ela se lembra de Ulisses, ao falar com ele, a semelhança se aprofunda, entretanto, o reconhecimento não ocorre, não se concretiza, Odisseu contorna a situação, pois não quer que este reconhecimento ocorra. Contudo, ao ver a cicatriz, não há mais como negar, então ele assume sua identidade (declaração), mas solicita que não seja revelado à ninguém.

Reconhecimento de Ulisses por seus servos, o porqueiro e o vaqueiro

O reconhecimento aqui se dá através de duas espécies, que seriam a primeira e a terceira espécies citadas por Aristóteles, que seriam por sinais (congênitos ou adquiridos) e por raciocínio, respectivamente. Os acontecimentos podem ser observados no canto XXI, v. 188 a 272 aproximadamente.

Ulisses já havia retomado seu trono e sido reconhecido por sua esposa e filho. Agora, após vinte anos, em estando ele ao pátio aproxima-se de Eumeu, o porqueiro, e de Filécio, o vaqueiro; e lhes pergunta sobre o que sentiriam/pensariam se Ulisses retornasse, e como obteve uma resposta positiva e teve certeza da sinceridade das palavras de seus servidores, declara-lhes ser ele Ulisses em pessoas, o que nos remete ao reconhecimento através de declaração, que seria a quarta espécie de reconhecimento amostrada por Aristóteles, a do reconhecimento por raciocínio, uma vez que, ao declarar ser ele Ulisses, gera uma necessidade quase automática por parte dos ouvintes de racionalizar tal informação para então acreditar ou não.

Essa declaração, por sua vez proporciona o reconhecimento através de sinais (no caso, adquirido), uma vez que para afirmar sua declaração, Ulisses recorre à demonstração da cicatriz que adquiriu durante uma caçada no monte Parnaso o que encerra indiscutivelmente o reconhecimento. “[...] Quando os dois homens a viram e plena certeza obtiveram, [...]” v. 223-224, canto XXI – Odisseia.

Reconhecimento de Ulisses por sua esposa Penélope

O canto XXIII é centrado basicamente no reconhecimento de Ulisses por Penélope, sua esposa. Muitas evidências foram apresentadas, entretanto ela só teve certeza de que aquele homem era o seu esposo no momento em que diz à serva Euricléia que arrume a cama para ele dormir. Ulisses diz que não seria possível retirar do quarto do casal a cama para que ele pudesse dormir, visto que ela não poderia ser removida do quarto, por ser construída sobre um tronco de oliveira. Após essa declaração de Ulisses, Penélope pode ter certeza de que aquele homem realmente era seu marido.

Os reconhecimentos presentes nesse canto são por sinais, declaração (raciocínio) e memória. O reconhecimento por raciocínio está presente nos versos 25-30, em que a serva anuncia a Penélope à presença de Ulisses no Palácio; vv. 97-103, Telêmaco diz a sua mãe que aquele homem que estava a sua frente era Ulisses; vv. 107-110, Penélope acredita que se realmente for Ulisses aquele homem, logo vão se reconhecer em virtude dos sinais. O reconhecimento por memória ocorre entre os versos 183-204, em que Ulisses relata a Penélope detalhes sobre a cama, que continha recordações que pertenciam exclusivamente ao casal. O reconhecimento por sinal ocorre no verso 74, em que a serva descreve a Penélope a cicatriz que viu em Ulisses, quando lhe lavava os pés.

Acreditamos haver aqui uma espécie de reconhecimento através das ações, pois por meio da ação desenvolvida durante o diálogo de Penélope e Ulisses, surge a situação da retirada da cama que não podia ser movida do lugar, como já foi observado. Então através do reconhecimento por memória, também já analisado, acontece simultaneamente o quinto tipo de reconhecimento citado por Aristóteles, que seria aquele decorrente das ações. Daí também a grandiosidade da beleza da cena, por conter os dois melhores elaborados tipos de reconhecimento.

CONCLUSÃO

Conforme as observações prestadas neste trabalho, podemos observar que Homero, em relação aos reconhecimentos de Ulisses, utilizou sempre mais um de um tipo de reconhecimento. Concluímos, portanto, que o autor da Odisseia busca uma certa complexidade nestas cenas, uma vez que ele não se limita a apenas uma espécie de reconhecimento. Ressaltamos também, que o fato de haver mais de uma espécie de reconhecimento deve-se não apenas há criatividade do autor, mas ocorre como consequência de outro reconhecimento, um exemplo bem claro disto seria o reconhecimento por memória, o qual pode se desencadear devido a um reconhecimento por sinal ou aquele que é urdido pelo poeta, não nos cabe aqui, entretanto, analisar se tais usos e complexidades do poema foram totalmente intencionais, ou se estes se mesclam devido as similaridades entre algumas espécies de reconhecimento citadas por Aristóteles.

Concluímos, portanto, que as cenas de reconhecimento são riquíssimas em suas apresentações, e a cada uma cabe uma peculiaridade que perfeitamente se enquadra no momento e situação em que a cena ocorre, observando também a sequencia da narrativa da obra.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Arte Poética. Trad. Ana Valente. Lisboa: Celouste Gulbenkian, 2007.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo,7ª reimpressão. ed. Companhia das Letras, 2001.

AUERBACH, Érich. Mimesis. São Paulo. ed. Perspectiva, 1987.

HOMERO. Odisséia. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.

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Autor: Virginia Maria Nuss


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