Contato com um grupo social diferente do seu, mas ao seu lado. Um diário de campo com moradores de rua acolhidos pela SORAN.



 

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE – FURG

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA INFORMAÇÃO – ICHI

DISCIPLINA DE FUNDAMENTOS DA ANTROPOLOGIA

PROF. DR. GIANPAOLO KNOLLER ADOMILLI

 

CONTATO COM UM GRUPO SOCIAL DIFERENTE DO SEU, MAS AO SEU LADO.

UM DIÁRIO DE CAMPO COM MORADORES DE RUA ACOLHIDOS PELA SOCIEDADE RIOGRANDINA DE AUXÍLIO AOS NECESSITADOS.

 

BRENDA CAPELARI

MAIO DE 2010

RIO GRANDE - RS

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

PRIMEIRA OBSERVAÇÃO

ENTRE 19 E 23 HORAS – SEXTA-FEIRA 30 DE ABRIL DE 2010

 

    Fui recepcionada pela vigilante Beth após bater no enorme portão de ferro castigado pelo tempo e pelas pedras que nele foram jogadas numa noite em que um homem embriagava-se dentro do albergue, quebrando uma das regras para permanência no recinto e foi obrigado a se retirar.

    Desde 1996, ano de sua inauguração, a SORAN (Sociedade Riograndina de Auxílio aos Necessitados) utiliza o mesmo sistema de acolhida: o portão é aberto a partir das 18h, primeiramente é servido um jantar recém preparado e logo após alguns vão diretamente para seu respectivo dormitório - a ala feminina comporta 15 a 20 mulheres e ala masculina: 30 - cada ala tem seu banheiro. Outros seguem para a “sala da tevê”, onde permanecem até a hora imposta para que estejam na cama - término da última novela transmitida pela Rede Globo. A questão do banho é bastante crítica. Além de necessária, é uma das imposições da SORAN sempre driblada por alguns. Todos os tipos de drogas são proibidos no período de acolhimento, mas o cigarro é demasiadamente consumido nesse tempo. Esses dados brutos foram captados na minha primeira observação geral do lugar na companhia de Beth e sob olhares curiosos daqueles que palitavam os dentes escorados nas paredes do pátio e que compartilhavam a mesma indagação silenciosa da qual desviavam o olhar quando eu os mirava.

    Nesta noite o albergue abrigava cinco mulheres com idades entre 31 e 54 anos, embora aparentassem muito mais. Todas se encontravam no quarto quando a elas fui apresentada. Somente a luz do banheiro estava ligada. Duas já dormiam e as outras se preparavam para deitar. Como havia poucas mulheres, a distância que as separavam uma das outras era de no mínimo duas camas. Uma delas servia de suporte para a grande quantidade de bonecas e animais de pelúcia que julguei pertencer àquela mulher que dormia agarrada a duas bonecas velhas e sujas, que segundo Beth ela as chama de filhas. Não houve intenção de iniciar uma conversa, pois a situação não me pareceu oportuna e eu já tinha consciência que o meu contato com as mulheres seria um pouco mais complicado.

    “Muito pouco se sabe sobre elas. Na verdade, pouco se sabe sobre muitos aqui. Mas as mulheres são as mais desconhecidas. São fechadas e muito mais problemáticas que os homens” – Nara é cozinheira do albergue há quatro anos e confirmou algo que eu já estava preparada para ouvir, mas que mesmo assim me deixou triste: “Vai ser difícil tirar algo concreto delas. Estou aqui faz tanto tempo e já vi tanta coisa. Tem uma mulher aqui que eu nunca sei o nome. Não porque eu tenha uma péssima memória, mas porque nem ela sabe. Não sabe ou não quer falar a verdade. O fato é que ela já apareceu aqui com vários nomes diferentes. Elas mentem sobre suas vidas e porque motivos estão aqui. Sentem vergonha do passado, sei lá! Tu vais ter que conseguir a confiança delas. Aí, elas decidem se te dizem a verdade ou inventam histórias.”

tempos no albergue. Fábio é responsável pelo controle do portão no período da entrada (18- 21h) e da saída (6- 7h), registrando em ata tudo o que se passa nesse período e revistando os que são denunciados por porte de drogas. Se confirmado o porte, Fábio leva o indivíduo para fora do portão, seu nome é marcado no registro e este nunca mais terá o acolhimento da SORAN. “É ruim expulsar alguém daqui... Mas o fato é que as regras são claras! A SORAN dá comida boa, banho quente e cama limpa. E pra garantir que sempre vai poder contar com isso, a única coisa que precisa fazer é não usar drogas enquanto estiver aqui dentro. É realmente uma pena colocar um pobre coitado pra rua nessas noites frias, mas ele tinha que ter respeitado as regras.” – Desabafava Fábio acendendo o cigarro de sua mulher que servia o prato de pessoas que ainda chegavam para jantar. O cardápio da noite era arroz com salsicha e feijão oferecidos em pratos de plástico azul-marinho e colheres. A sobremesa eram bananas e cáquis vindos de doações. E a bebida: água.

     Visitei a sala de refeições quando ninguém mais jantava. Não havia vestígios de comida nas mesas, muito menos no chão - após comerem, eles se dirigem para a lixeira de materiais orgânicos onde despejam todos os restos de seus pratos para entregá-los limpos. Duas grandes mesas brancas e dezesseis banquinhos nelas embutidos compõem o organizado refeitório. Há furos no canto da parte superior de uma das alvas paredes revelando um possível encaixe de suporte para uma televisão que uma vez esteve ali.

     A vigilante Beth, que me acompanhara desde o primeiro momento dentro do albergue, foi de fundamental importância na minha interação com o grupo. Uma mulher que já quebrou muitos tabus lidando sozinha com os albergados das 19h às 7h, virando a madrugada zelando pela ordem do lugar que trabalha: “Quando entrei aqui, e isso não faz muito tempo, não só os meus superiores como também os albergados me olhavam e indiretamente eu sabia exatamente o que eles pensavam: Uma mulher? Uma mulher vai manter a ordem disso? É sempre assim, acham que as mulheres são sempre o lado mais fraco a arrebentar. Sentimentais demais. Mas olha, te digo que hoje eu já mostrei ser muito capaz. Já enfrentei muita coisa aqui sozinha. Já sei muito bem como lidar com drogados ou com pessoas que eu tenho que colocar fora daqui bêbados. Já vi muita coisa. E não vou negar que já chorei vendo situações limites para um ser humano. Chorei. Mas chorei escondida. Tenho que mostrar força. E hoje, tenho certeza que sou muito forte e adoro o meu trabalho. Adoro mesmo.”

       Quando fui apresentada aos que se encontravam na “sala da tevê” ficou evidente o respeito que aqueles homens tinham para com uma mulher que realmente tem uma aparência tão frágil, mas de uma voz tão segura. Beth me chamou à sala. A única iluminação era a luz que vinha de uma grande televisão antiga no canto direito da sala. A penumbra não era capaz de esconder olhos ainda muito curiosos:

      “Psicologia? Serviço Social? O que é que tu cursa?” – me perguntou um homem muito magro, que fumava sentado no braço do sofá mais perto da janela aberta. Respondi Arqueologia e que meu trabalho era para a disciplina de Antropologia. “Ah! Arqueologia não é que estuda os dinossauros?” – Deram risada da minha expressão para essa pergunta que teria uma resposta negativa. Esse momento era fundamentalmente crucial para que o meu diário acontecesse. Tudo dependia daquele instante. Eu já tinha passado a primeira impressão. Boa ou não, o fato é que precisava mostrar que em nenhum quesito eu era diferente deles.

       O assunto engrenava. A Arqueologia Bíblica deu brecha para questões religiosas. E eu já estava sentada no chão, quase no meio da roda composta por oito homens com sede de discussão. Beth havia saído da sala fazia tempo e eu nem tinha reparado. Minha atenção estava prontamente voltada aos conceitos que aqueles homens a meia-luz da televisão debatiam.  José, um nordestino que passava sua primeira noite no albergue, foi o primeiro a mesclar os assuntos com sua história pessoal e me prometeu cumplicidade para auxiliar no crescimento do meu trabalho: “Eu tenho 44 anos de vida e o que não me falta é caso pra contar. Sou desgraçado desde que nasci! Sabe aquela coisa de desgraça hereditária? Meu pai era um alcoólatra que morreu muito cedo. A vida passou depressa pra ele, quase em vão. Antes de morrer ele me pediu pra que não servisse café no velório dele. Eu não sei se aqui no Sul vocês têm o costume de velar em casa o seu morto, mas no Nordeste é assim. Meu pai mandou servir cachaça para os que iriam velar seu corpo.”

      José estava sentado a minha direita, numa poltrona de forro gasto mais próxima da televisão e de sua mala. Disse que se considera um “turista financiado pelo Governo”. Há quatro anos leva uma vida de albergue, disse que desde que sua vida perdeu o sentido no Sergipe, largou mulher e filhos pra viver sozinho. Além de família, tinha casa e emprego estável, mas o álcool estava o transformando num homem de difícil convívio. Antes desses quatro anos migrando de albergue em albergue, de Estado em Estado, José viveu dois anos nas ruas, dormindo em postos de gasolina ou em cemitérios. “Juntei todo o dinheiro que eu tinha no Sergipe e comprei uma passagem pra São Paulo. Vivi nas ruas da capital esses dois anos. Meu único medo era de adoecer, porque de fome ninguém morre”. “E a tua sede por álcool nesse tempo aumentou?” – perguntei – “Não posso mentir. Piorou e muito. Pra passar a fome, o frio e até pra passar o tempo que parecia tão lento eu arrecadava umas moedas e comprava álcool. Mas não se pode julgar as pessoas da mesma situação que eu pelo meu exemplo. Eu vim com o vício de casa. Essa idéia que de morador de rua é sempre bêbado é um conceito já formado! Ninguém pensa que a bebida às vezes é a melhor saída pra essas provações da vida?”

       A novela já tinha terminado e a água do chimarrão que eu fiz questão de beber, também. Já havia passado uma hora do horário imposto para que estivessem na cama. Eu tinha que ir embora. Estava encantada com essas pessoas que chegaram ao extremo e aqui estão: sobreviventes e carregando um sorriso imenso. “É o que meu pai sempre dizia: é melhor sorrir numa palhoça do que chorar num palácio. Tem gente se jogando de suas suítes presidenciais e a gente aqui no chão, felizes.”

       No entanto, a minha primeira noite não poderia ter acabado de maneira melhor: quando saia pelo mesmo portão que entrei, acompanhada pela vigilante Beth, alguns albergados com quem passei essas valiosas horas na “sala da tevê” me esperavam para se despedirem. Mas além de me saudarem, disseram uma das melhores coisas que ouvi em toda a minha vida, a qual tentarei reproduzir em palavras escritas sem garantia de fidelidade: “É menina, chegaste aqui e com esse jeito espontâneo ganhou respeito.. Sentaste no chão, tomaste nosso chimarrão, agüentaste a fumaça do nosso cigarro, ficou no meio dessa gente que a sociedade acha imunda e quer dar voz pra gente!”       

      Dormi melhor.

 

 

 

SEGUNDA OBSERVAÇÃO

ENTRE 20 E 23 HORAS ­– DOMINGO 02 DE MAIO DE 2010

 

      Domingo chuvoso. Vento frio. Péssimo para uma garganta inflamada, fator que não teve muita influência na minha decisão. Me sentia sozinha. Peguei uma lotação pro Centro que comportava no mínimo umas 60 pessoas, por isso chegar até a catraca era uma missão quase impossível. Quando finalmente bati o Cartão do Estudante, ele foi recusado. Para minha falta de informação: domingo o Cartão do Estudante não bate. Óbvio não? Ótimo momento para essa descoberta. Não tinha um centavo no bolso e a única solução era descer na próxima parada. Desço, volto pra casa, pego dinheiro, troco de roupa e retorno a parada. Detalhe: eu estava há uns três quilômetros de casa. Se poderia pensar que eu chegaria em casa e desabaria na cama desistindo da realização da minha segunda observação. Não. Minha segunda observação aconteceu.

       “A gente estava pensando que tu não virias mais, menina!” – Fui recepcionada por Paulo que saia do dormitório masculino aonde tinha acabado de tomar banho. Os fatores que levaram Paulo a buscar auxílio na SORAN são ironicamente trágicos. Mas a narrativa cômica deste homem que tem um riso tão contagiante - que nem os dentes estragados pelo fumo, nem a sua história de vida deixa transparecer toda a tristeza que sobreviveu e a qual transforma em piada. Paulo tem 37 anos, é natural de Porto Alegre - onde realizou um curso profissionalizante em marcenaria, veio com a família para Rio Grande há 17 anos e teve por 12 anos sua carteira de trabalho assinada. Morava em uma casa comprada com seu irmão mais velho e sua mãe, que veio falecer pouco tempo depois de chegarem aqui. A casa ficou para o irmão mais velho que além de não ter um bom relacionamento com Paulo, era dependente químico. Paulo, então com 25 anos, resolveu seguir sua vida longe dos vícios do irmão, com quem até hoje nunca mais teve contato. Há quatro atrás se casou com uma mulher de 76 anos. “Mas era uma mulher muito bem conservada, sabes? Não tive filhos com ela, mas ela tinha um com cinco anos a menos que eu. Um ano atrás salvei uma garota de se afogar na praia do Cassino e só me dei conta dos documentos no bolso da calça na metade do mar! Estava difícil retirar a segunda via, até porque eu estava desempregado naquela época e sem documentos fica ainda pior conseguir um emprego. Sai da casa da minha futura ex-mulher há 20 dias. Então, são 20 dias que eu estou aqui.”

      Lurdes, a assistente social da SORAN, os ajuda a retirar a segunda via ou refazer a documentação. Paulo estava esperando a chegada de seus documentos para a confirmação de um emprego.

      Cheguei a “sala da tevê” e pela primeira vez consegui realmente visualizar aquele local que nessa noite era iluminado por uma lâmpada. Duas máquinas de costura enferrujadas ficam no fundo da sala e na enorme basculante está escrito em tinta vermelha “RÉGIS E DANIELA” que mais tarde eu descobriria que o casal foram os primeiros albergados da SORAN. Informação dada pelo Seu Manoel, que junto com o Régis e a Daniela freqüentou o local desde sua abertura, mas que diferentes deles, continua aqui.

        Numa certa tarde, dias antes de começar meu trabalho aqui, eu estava esperando uma lotação na Praça Tamandaré quando reparei em um homem que insultava um poste e brigava com o vento. Vestia um terno escuro onde no bolso estava um lenço de nylon marrom e nos pés calçava uma sandália aberta com meias velhas e sujas. O homem se dirigiu a uma das lixeiras e nela enfiou as duas mãos de maneira tão feroz e tão experiente a procura de algo, retirando uma lata de refrigerante um pouco amassada e muito suja. Numa tentativa de tirar a sujeira que tinha encontrado na parte interna da lata, ele a virou de boca para baixo fazendo sair um repugnante líquido denso e amarelado. A reação do homem foi de reposta a algo muito desagradável. Imagine a minha. Na SORAN, eu reencontrei este homem que não saia da minha cabeça há dias: Seu Manoel, como é chamado pelos outros albergados, é um homem de 51 anos, bem apessoado e muito introvertido. Confesso que pensei ser impossível tirar uma palavra daquele homem. Mas Beth me aliviou: “Ele tem aquela fachada de calado, poucas palavras, mas o Seu Manoel quando começa a falar não para. Ele é um amor de pessoa. Está há anos aqui e nunca deu dor de cabeça pra ninguém. Mas vou te contar uma coisa que ele não irá te falar: Seu Manoel faz as unhas e é bastante vaidoso. Reparaste no cabelo dele? Ele mesmo fez aquelas mechas loiras!” Como imaginar que aquele homem cujas mãos você viu colocando no lixo teria qualquer tipo vaidade?

     Nessa noite, me sentei perto do Seu Manoel. Estava decidida a tirar pelo menos um “boa noite” daquele homem que me cultivava tamanha curiosidade. Com a ajuda de Vagner e Richer, dois rapazes que estão no albergue há algumas semanas, consegui atrair a atenção de Manoel que é telespectador assíduo de telenovelas, chamando para a conversa que era sobre as antigas novelas da Rede Globo. Quando me dei conta, este homem que antes era um grande enigma estava narrando para mim toda sua vida.

      Começou me perguntando se eu conhecia os Molhes da Barra ou se eu já tinha visto o pôr-do-sol no Cassino, lugares que ele conhecia desde a infância por sempre ter acompanhado seu pai que era pescador. Viveu com os pais até os 40 anos, quando estes vieram a falecer. Na época Manoel estava desempregado e a única saída foi morar com sua irmã mais velha. Dias depois, Manoel foi atropelado, ficando meses com a perna engessada. Ainda assim, os exaustivos trabalhos domésticos que a irmã o obrigava a cumprir como condição de sua estadia na casa, tinham de serem feitos não importando se sua perna doía ou não. Manoel não suportou a situação por muito tempo, quando resolveu sair da casa e tomar seu rumo sozinho. Era 1996 e Manoel: um morador de rua. No mesmo ano foi criada a SORAN onde até hoje ele passa suas noites. “Durante o dia recolho jornais e latinhas para reciclagem. Tiro de quarenta a cinqüenta reais por mês. Sabe o que eu compro com esse dinheiro? Relógios.” Manoel compra em média 14 relógios por ano. Tem fascínio por eles. Vi o brilho nos olhos daquele homem quando elogiei o belo relógio banhado a prata no seu punho esquerdo. Por recolher jornais pelas ruas, sempre está com as notícias atualizadas. Quando comentei que tinha interesse em levar filmes para que assistissem nas noites do final de semana, Seu Manoel me perguntou se eu conhecia os filmes do Almodóvar. Fiquei extremamente cativada com aquele senhor, pois nunca encontrei alguém com que eu pudesse compartilhar as minhas críticas sobre os filmes de Pedro Almodóvar. Manoel é um grande apreciador das películas mais antigas do diretor, as recentes ele ainda não viu, mas as conhece pelas resenhas publicadas nos jornais. Me comprometi a trazer o filme “Hable Con Ella” para assistirmos no próximo sábado e para alegria de Se Manoel: “Há anos tenho vontade de ver este, que é um dos melhores ou senão o melhor de dele”.

      Na minha segunda noite no albergue conheci Leandro que freqüenta a SORAN há sete anos, desde que resolveu não voltar mais para casa por necessidade de ficar sozinho e por problemas com seus vizinhos. Tem depressão crônica e foi aposentado pelo Governo com vinte anos. Apaixonado por pagode confessou se achar muito parecido com o cantor e compositor mineiro Alexandre Pires, tanto no físico como na voz – fato que sempre o faz ser a chacota entre albergados. Leandro era a alegria da noite revivendo por pedidos de seus companheiros antigos sucessos musicais. Os sintomas da sua doença que se agravaram quando presenciou o assassinato de seus pais uma década atrás. Leandro confessa não os sentir mais com a mesma intensidade, mas ainda assim não pretende voltar para casa. Gosta de estar nas ruas. “Recebo uma boa aposentadoria, então me permito passar os dias sem ocupação nenhuma. Fico por aí cantando meu pagode. Tenho dinheiro pra sentar num bom bar no domingo de tarde, tomar uma cerveja e ver o meu time jogar.” Como todos os homens albergados, Leandro passa uma boa imagem por estar bem vestido. “É isso que conta! A sociedade dá importância pra imagem que tu passa pelas roupas que está vestindo. Eu consigo entrar tranquilamente em qualquer local público, pois estou bem vestido. Esse meu casaco de marca desvia muitos preconceitos. Uma vez eu vi a Ivone sendo retirada de uma lanchonete como se fosse um vira-lata, tudo porque a ela usa aqueles farrapos” Ivone é uma senhora que está há anos no albergue. Pouco se sabe sobre ela. Beth disse que nem certeza se é esse o seu verdadeiro nome. Não tem documentos, apareceu aqui sem registro algum. De uns anos pra cá ela tem apresentado problemas mentais que estão dificultando seu raciocínio e sua fala.  A Ivone me evita.

 

 

TERCEIRA OBSERVAÇÃO

ENTRE 19 E 22 HORAS ­– QUINTA-FEIRA 06 DE MAIO DE 2010

 

      Meus “objetos de pesquisa” me esperavam na “sala da tevê” ansiosos pela notícia que eu iria dar. Para que a sessão de filme do final de semana acontecesse, eu necessitaria da autorização do Alexandre, presidente da SORAN. Todos temiam uma resposta negativa, pois a oportunidade de distrair a mente com algo agradável, já fora de sua rotina, tinha os deixado animados e para a alegria de todos a resposta era positiva.

      A noite estava repleta de novidades: Paulo se despedia do albergue, pois havia conseguido “um bico” de vigilante noturno. José já tem passagem marcada para Uruguaiana, uma realização pessoal. Richer garantiu serviço temporário em uma construção, um recomeço para ele. Richer tem uma história de vida muito parecida com a de Paulo: profissional de marcenaria, parente envolvido com drogas, saída da casa da família, relacionamento com uma mulher mais velha - diferente do caso de Paulo, Richer foi traído e com seu melhor amigo. No dia que flagrou a traição, esteve a ponto de matar a facadas o homem. Mas não teve coragem de consumar o ato. Largou tudo e está tentando refazer a vida. Homem de voz serena e de boas piadas. “A verdade é simples. A luta é a mesma, mas quanto mais tu quer enxergar é mais difícil. Somos todos uns loucos que precisamos de ajuda. Obrigado pela companhia. Isso tudo muito mesmo.” Richer escreveu isso no meu caderno de anotações.

       Não sei se foi correto me envolver tanto com o “objeto” de pesquisa- termo, aliás, um tanto quanto agressivo. São pessoas! Pessoas fantásticas! Cativantes! Que cultivaram respeito por mim e deram imensa importância ao trabalho que realizei. E além do meu respeito, terão pra sempre toda a minha admiração e uma enorme gratidão. Como resistir a esse envolvimento? Tudo é diferente quando é visto por dentro, quando se está dentro e relatado por quem está dentro.

      “Na verdade nós não somos moradores de rua. A maioria de nós tem casa. A maioria de nós está aqui só de passagem ou porque perdeu o emprego e não tem como se sustentar ou está à procura de emprego e precisa de ajuda enquanto procura... São tantos casos. Nós não moramos na rua. Passamos o dia pela cidade, aproveitando o que ela tem de melhor. Não pedimos esmola para ninguém, não incomodamos ninguém. Nós temos comida. Não passamos fome e sempre temos para onde voltar. Aqui é o nosso lar.” Esse foi o desabafo do Seu Carlos que permitiu que eu gravasse sua voz no meu celular. Na grande parte dos dois minutos que correram a gravação são predominantes as fortes tossidas deste homem que consome demasiadamente tabaco. No mais, pouco soube da história de Carlos. Assim como a de todas as mulheres do albergue que me evitam e simplesmente me ignoraram permanecendo como um grande mistério para mim.

       O fato é que sábado eu tenho um compromisso inadiável com meus novos amigos. Um ótimo filme com baciadas de pipoca. E o chimarrão, é claro. E que me perdoe o Seu Manoel, mas vou começar com “Ensaio Sobre a Cegueira”. O Saramago é melhor.

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Autor: Brenda Capelari


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