Desapropriação em face da função social da propriedade



1- Introdução

No Brasil, o direito à propriedade é assegurado pela Constituição em suas cláusulas pétreas, e o Código Civil protege a propriedade com muito rigor. Por outro lado, a propriedade tem de atender aos seus fundamentos sociais. A relativização do direito de propriedade, decorrência natural da necessidade de se atender novas situações sociais, faz emergir naturalmente sua função social. Quando a propriedade não é exercida para o fim que é concebida, pode ocorrer a desapropriação.

2- Desenvolvimento

A raiz histórica da propriedade prende-se no Direito Romano, onde ela foi sempre individual. Somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo romano podia ser seu objeto, já que a dominação nacionalizava a terra conquistada.

O direito de propriedade passou por transformações históricas. Inicialmente detentor de um tradicional caráter absoluto, inviolável e sagrado, assumindo uma concepção altruísta. Posteriormente, o direito de propriedade passou e ser medido pelos interesses coletivos e não mais simplesmente pela ótica do proprietário.

Caio Mário da Silva Pereira fala em publicização do direito privado e fundamenta sua afirmação alegando que a influência do Estado e a necessidade de se instituírem fórmulas dirigidas à realização da finalidade preliminar do direito no propósito de garantir e proteger o bem-estar do indivíduo in concreto geram a tendência a publicização da norma jurídica. Segundo ele, tal fato é verificado nas restrições que o proprietário sofre na utilização e disponibilização do bem. As mudanças demográficas, representadas pelo aumento significativo da população, da industrialização e das transformações econômicas e sociais do século XX demandaram significativas alterações dos paradigmas do Direito. A relativização do direito de propriedade é decorrência da necessidade de atender novas situações sociais emergenciais.

A propriedade, hoje, tem-se marcado pelo desequilíbrio, incerteza e mutação. Alteraram-se os regimes jurídicos e os regimes políticos. A propriedade recebe o impacto que vai até a luta pela supressão do domínio individual, a que se contrapõe a resistência de velhos conceitos. E conforme a influência do regime político sobre o modelamento da tipicidade dominial, o Direito de nosso tempo conhece e disciplina a propriedade individual como padrão de direito subjetivo nos regimes capitalistas, a ela se contrapondo a propriedade coletiva predominante, especialmente no que concerne aos bens de produção, vigente nos regimes socialistas.

Enfim, a propriedade é o direito que a pessoa física ou jurídica tem de usar, gozar, dispor de um bem ou reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha (art. 1.228, caput, do novo Código Civil). Trata-se do mais completo dos direitos subjetivos e centro do direito das coisas, devendo ser analisado à luz da função social consubstanciada na codificação privada e da Constituição Federal de 1988.

O direito de propriedade aplicado aos meios de produção configura a liberdade para o desenvolvimento das atividades econômicas mercantis. A propriedade privada existe com o objetivo de acolher um fim mais amplo, que se denomina função social da propriedade.

A noção de função social surgiu do entendimento de que os bens não são dados aos homens para que deles extraiam o máximo de benefício e bem estar com sacrifício dos demais, e sim para que deles se utilizem na medida em que possam preencher a sua função social. A partir do momento em que o Ordenamento Jurídico reconheceu que o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão somente para satisfação do seu interesse, a função da propriedade tornou-se social. Assim, o exercício do direito de propriedade há de ter limite, ou seja, o cumprimento de certos deveres e o desempenho de tal função.

A Constituição de 1988 insere entre os princípios gerais da atividade econômica, ao lado da propriedade privada, a sua função social (art.170) que se considera cumprida quando utilizada para geração de riqueza, garantia de trabalho, recolhimento de tributos ao Estado e promoção do desenvolvimento econômico.

Dessa forma caracteriza-se como uma restrição ao principio da propriedade privada. Em relação aos meios de produção, estabelece o objetivo de garantir a todos a existência digna, visando o bem estar da coletividade. Configura-se em que esta seja uma ferramenta destinada à realização da existência digna de todos e da justiça social.

Se destina, assim, para a garantia dos demais princípios quando explorados pela livre iniciativa. Cria uma norma de conduta positiva e coletiva a ser praticada constantemente pelo proprietário ou controlador da empresa. É uma fiança de cumprimento da ordem econômica, no que diz respeito à utilização de seus meios de produção, sendo componente fundamental à propriedade. 

Na Constituição vigente o direito de propriedade alcançou status de direito inviolável, em sua extensão máxima, como riqueza patrimonial e princípio da ordem econômica, vinculando o direito à realização de uma função social e verificando-se a exigência para que a mesma atenda à função social.

Para José Afonso da Silva, referida proposição reveste-se de um caráter programático, vale dizer, determina que os princípios sejam cumpridos pelos correspondentes órgãos legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos, como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado. Entende também que a propriedade é um direito assegurado, não podendo ser desconsiderado, mas condiciona-se a sua utilidade que dependendo da espécie poderia inclusive ser socializada.

Inúmeros são os instrumentos de cumprimento da função social da propriedade. Em virtude da importância assumida no texto constitucional vigente, apresentam-se de diversas formas e são geralmente revestidos de eficácia e aplicabilidade advindas de fontes distintas.

Destarte vale observar que referidos instrumentos emergem fundamentalmente do texto
constitucional, mas também são regulamentados por vasta e complexa legislação infraconstitucional, bem como dos principais dispositivos apresentados pelo novo Código Civil de 2002, interpretados sob a ótica do direito privado.

A ordem econômica brasileira tem como princípio de sua estrutura e como um direito fundamental a consagração constitucional da função social da propriedade. A partir disto, entende-se que para que haja a tutela da posse, a função social precisa ser exercida.

A Constituição Federal explicita o conteúdo da função social rural (art. 186) e da propriedade urbana (art. 182, § 2º) como sendo a adequada utilização dos bens por interesse social.

A função social da propriedade urbana no seu artigo 182, § 2º, da Constituição vigente, determina que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade previstas no plano diretor. Plano diretor é uma lei ordinária municipal que estabelece o uso, a ocupação e a manutenção do solo urbano, e fixa a política de desenvolvimento e de expansão urbanas (artigo 182, § 1º), sendo obrigatório a cidades com mais de vinte mil habitantes.

A Função Social da propriedade rural no artigo 186 determina que a propriedade rural atende sua função social quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência fixadas em Lei, os seguintes requisitos: a) aproveitamento racional adequado; b) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

O descumprimento da função social da propriedade pode levar à perda da propriedade, por desapropriação, indenizada em títulos e não em dinheiro, exceto no caso de imóvel rural, as benfeitorias úteis e as necessárias. Essa desapropriação paga em títulos é chamada de desapropriação-sanção.

A desapropriação sanção implica a perda da propriedade urbana mediante indenização em títulos da dívida pública, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais, A emissão desses títulos depende de aprovação previa do Senado Federal, tudo segundo o artigo 182, § 4º, III. No caso de propriedade rural, a indenização será em títulos da divida agrária, com clausula de preservação do valor real, resgatáveis em até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão. A sanção aparece na imposição, contra o expropriado, de não ser indenizado imediatamente, mas ao longo de anos.

Caso sejam descumpridos tais requisitos da função social da propriedade, o imóvel fica sujeito à desapropriação por interesse social mediante justa e prévia indenização, em conformidade com a Constituição Federal Brasileira de 1988. Daí se conclui que a propriedade que não cumprir sua função social fica sem proteção constitucional.

3- Conclusão

A função social da propriedade é um princípio que está vinculado a um projeto de sociedade mais igualitária, isso se deve em razão de submeter o acesso e o uso da propriedade ao interesse coletivo. A propriedade passa, assim, a ter seu uso condicionado ao bem-estar social e, portanto, a ter uma função social e ambiental.

A função social, hodiernamente, cumpre o papel de elemento inibidor e repressor das distorções jurídicas originárias da degenerada e ilegítima utilização da propriedade. Trata-se de um agrupamento sistematizado de regras constitucionais que objetiva manter ou repor a propriedade na sua destinação normal, de forma que a mesma seja benéfica e útil a todos, e não apenas ao proprietário.

O Poder Judiciário pode e deve avaliar, quando provocado, se as propriedades cumprem a sua função social, em cuja tarefa é possível ao magistrado utilizar os parâmetros escritos na Constituição, mas independentemente de qualquer norma inferior, não podendo se escusar de julgar ou de aplicar o princípio da função social da propriedade sob a falsa alegação de imprecisão.

Conclui-se que a propriedade é um direito que não pode ser utilizado de forma individualista, devendo satisfazer aos interesses da coletividade mediante a destinação para a sua função social, conforme previsão constitucional atual. Disto deflui o fato de a propriedade que não cumprir a sua função social, não terá garantia constitucional e que o seu proprietário não deverá ter assegurada a defesa nas ações possessórias.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.

FIÚZA, César. Direito Civil - Curso Completo. 11ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

MÁRIO, Caio da Silva Pereira. Instituições de direito civil. 19ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1999. v.IV.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000.

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 3ª edição. São Paulo: Malheiros, 1998.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direitos reais. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2002. 

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Autor: Ana Luisa Ribeiro Leite


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