Propriedade privada e função social da propriedade: contradição ou coerência frente à ordem econômica constitucional?



Propriedade privada e função social da propriedade: Contradição ou coerência frente à Ordem Econômica Constitucional? 

 

Kellen Fonseca Librelon[1]

 

 

Resumo

 

 O presente artigo apresenta como principal temática a discussão sobre o princípio da propriedade privada e o princípio da função social da propriedade, com o objetivo de demonstrar que tais princípios não são contraditórios e que ambos são de grande relevância para o Direito Econômico.

Ao longo dessa análise, será possível perceber também que a função social da propriedade passou a ser um elemento integrante do conceito de propriedade privada e que a Ordem Econômica Constitucional institui instrumentos para que a propriedade atinja a sua função social, como é o caso da desapropriação sancionatória para fins de reforma agrária.

 

Palavras-chave: Propriedade privada, função social da propriedade, Direito Econômico, Ordem Econômica Constitucional.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

1 – Introdução

 

O Direito Econômico pode ser conceituado como um sendo “um conjunto de normas que tem por finalidade conduzir, regrar, disciplinar o fenômeno econômico.” (FONSECA, p. 11, 2005). Esse ramo do Direito pode ser entendido ainda como aquele que visa regular a política econômica adotada pelo Estado, conforme dispõe João Bosco Leopoldino da Fonseca:

 

“O Direito, enquanto ciência, se dedica ao estudo das relações intersubjetivas, sob o aspecto normativo. Mas há ainda um outro aspecto, o formal, a configurar e delimitar cada campo de estudo. Como visto acima, o Direito pode estudar as normas que regem aquelas relações sobre vários prismas. Um deles é o da direção da política econômica pelo Estado. Será este o aspecto que identificará e distinguirá o Direito Econômico dos demais  ramos jurídicos.” (FONSECA, 2004, p. 11).

 

O artigo 170 da Constituição Federal elenca os princípios que regem o Direito Econômico. Dentre eles, pode-se destacar o princípio da propriedade privada e o princípio da função social da propriedade. Em um primeiro momento, poder-se-ia questionar se não haveria contradição entre esses dois princípios, uma vez que o primeiro vincula-se a um direito individual e o segundo, a um direito de cunho social. No entanto, ao longo dessa análise será possível perceber que ambos são de grande relevância para o Direito Econômico e que não são contraditórios entre si.

 

2 – Princípios da propriedade privada e da função social da propriedade na Constituição Federal de 1988

 

O princípio da propriedade privada vincula-se aos direitos que o proprietário pode exercer sobre os bens de sua titularidade. Conforme Rodrigo César Rebello Pinho (2010), o direito de propriedade na legislação civil consiste na faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, bem como o direito de reavê-la do poder de quem a possua ou a detenha de maneira injusta.

No âmbito constitucional, o conceito de propriedade é abrangente, incluindo não apenas o patrimônio a título de direitos reais, mas também os direitos pessoais e as propriedades artísticas e literárias, conforme dispõem Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Barbosa Quinaud Pedron: “a atual proteção à propriedade (art. 5º, XXII, e art. 170, II, da CR/88) é abrangente, incluindo o patrimônio e sob esse título os direitos reais, os direitos pessoais e as propriedades literárias e artísticas, as intervenções e as descobertas.” (FERNANDES; PEDRON, 2011, p. 307).

Todavia, deve-se considerar que não mais prevalece a concepção de que o direito de propriedade corresponde a um direito absoluto. Isso porque o proprietário, ao utilizar a coisa, deve respeitar o interesse social. Desse modo, a propriedade é utilizada considerando-se não apenas a vontade do seu titular, mas também as conseqüências positivas e negativas que essa utilização poderá trazer para a sociedade. A esse respeito, Rodrigo César Rabello Pinto afirma que:

 

“A concepção do direito de propriedade como um direito absoluto do titular, de poder utilizar a coisa e desfrutá-la da forma que melhor entender, mesmo que em detrimento dos demais, não mais prevalece. A utilização e o desfrute de um bem devem ser feitos de acordo com a conveniência social da utilização da coisa. O direito de propriedade, dentro de uma evolução histórica, é vista cada vez menos como um direito subjetivo de caráter absoluto, para se transformar e uma função social do proprietário. O direito do proprietário deve ajustar-se aos interesses da sociedade. Em caso de conflito, o interesse social pode prevalecer sobre o individual. (PINTO, 2010, p. 150-151).

 

Nesse contexto, percebe-se que o princípio da função social da propriedade destaca-se como um fundamento de grande relevância para estabelecer a adequação da utilização da propriedade privada ao interesse social.

Nos dizeres de Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Barbosa Quinaud Pedron (2011), a função social da propriedade passa a ser entendido como um elemento integrador do conceito de propriedade. Isso indica que “... não poderá ser juridicamente considerado proprietário aquele que não der ao bem uma destinação compatível e harmoniosa com o interesse público.” (FERNANDES; PEDRON, 2011, p. 308).

Evidencia-se, desse modo, que o princípio da função social da propriedade não tem por finalidade frustrar o direito do proprietário ou contrariar os pressupostos da propriedade privada, mas fazer com que se promova uma utilização consciente, a qual deve observar não apenas os interesses individuais, mas principalmente a conveniência social.

 

3 – Relevância dos princípios da propriedade privada e da função social da propriedade no âmbito da Ordem Econômica Constitucional

 

A Constituição Federa/1988, no que tange à Ordem Econômica, atribui relevância ao princípio da função social da propriedade, ao estabelecer em diversos dispositivos que a propriedade urbana e rural deve cumprir a função social, fixando inclusive sanções para os proprietários que descumprirem essas disposições. Um exemplo disso seria a edificação compulsória, o imposto progressivo e a desapropriação a serem opostos em desfavor dos proprietários de imóvel urbano que não promovam o seu adequado aproveitamento (art. 182, § 4º, CF/88).

Outro exemplo seria a desapropriação para fins de reforma agrária dos imóveis rurais em que não se evidencie o cumprimento da função social da sociedade (art. 184 CF/88). Nesse caso, a Constituição objetivou atribuir uma forma de sanção aos proprietários rurais que mantém latifúndios improdutivos, inutilizáveis. Com a desapropriação, estes imóveis são transferidos para pessoas que têm interesse em cultivá-los e torná-los produtivos.

Sobre a função social da propriedade nos imóveis urbanos e rurais, Bernardo Gonçalves Fernandes e Flávio Barbosa Quinaud Pedron discorrem sobre os requisitos constitucionais para que a propriedade urbana e rural alcance a função social:

 

Ao se falar em propriedade imóvel urbana, o texto constitucional (art. 182, parágrafo 2º) estabelece que a função social seja atendida de acordo com a exigência de ordenação da cidade, fixada no plano diretor do mesmo. Já a função rural qualificada no artigo 186 da CR/88, traz como requisitos simultâneos: (1) aproveitamento racional e adequado; (2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; (3) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e (4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (FERNANDES; PEDRON, 2011, p. 308).

 

Como foi possível evidenciar, o princípio da função social da propriedade destaca-se no Direito Econômico como uma forma de estabelecer o melhor aproveitamento dos bens imóveis, tendo em vista o interesse social. Não obstante, deve-se considerar que “... o princípio da função social da propriedade não autoriza a suprimir, por via legislativa, a instituição da propriedade privada.” (SILVA, 2005, p. 284). Isso significa que a propriedade privada continua sendo um importante princípio constitucional, mas deve ser interpretado e analisado juntamente com o princípio da função social da propriedade. No entendimento de José Afonso da Silva (2005), a inserção do princípio da função social da propriedade não impede a existência da propriedade privada, mas modifica a sua natureza.

 

4 – Conclusão

 

Diante dessa análise, conclui-se que o princípio da função social da propriedade não representa uma contradição ou um afronto ao princípio da propriedade privada. Ao contrário, a função social passa a integrar o conceito de direito à propriedade, de modo que a propriedade de um bem só é possível se houver o cumprimento da sua função social.

Compreende-se então que, no âmbito da Ordem Econômica Constitucional, a propriedade privada prevalece como um relevante referencial. No entanto, esse princípio não deve ser entendido como um direito individual e absoluto do proprietário, mas deve apresentar como elemento integrador o princípio da função social da propriedade, de modo que o bem seja utilizado conforme a conveniência e os interesses sociais.

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flavio Barbosa Quinaud. Curso de direito constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

 

FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

 

PINHO, Rodrigo César Rebello. Da organização do Estado, dos poderes e histórico das constituições. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

 

 


[1] Bacharelanda do 10º período do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Email: [email protected].

 

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