A prisão do indiciado e sua flagrante inconstitucionalidade
Antes de se analisar a incomunicabilidade do indiciado, cabe examinar sua aplicabilidade e discutir se a Constituição Federal de 1988 recepcionou ou não o dispositivo que trata do tema.
Estabelece o artigo 21 do Código de Processo Penal, in verbis:
Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da sociedade ou a conveniência da investigação o exigir.
Parágrafo único. A incomunicabilidade, que não excederá de três dias, será decretada por despacho fundamentado do Juiz, a requerimento da autoridade policial, ou do órgão do Ministério Público, respeitado, em qualquer hipótese, o disposto no artigo 89, inciso III, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei n. 4.215, de 27 de abril de 1963).
Mas nem sempre foi assim. Ao indiciado era vedada a comunicabilidade até mesmo com seu próprio advogado. Diante disso, havia clara afronta aos princípios que regem o Estado Democrático de Direito, aos princípios da ampla defesa e do contraditório, e ofensa ao direito de defesa técnica do indiciado, ou seja, podia-se observar um verdadeiro Estado inquisitivo nesse sentido.
Cabe esclarecer que todo dispositivo deve ser criado e interpretado em face da Constituição Federal, sobretudo à luz dos principios que devem ser observados pelos legisladores como um norte para as demais matérias.
A Constituição Federal traz como um de seus princípios a igualdade que estabelece que todos devem ser tratados de forma igual independente da natureza. Se o indiciado é meramente investigado no sentido de ter praticado ato infracional, ainda não havendo sentença condenatória transitada em julgado, não há motivos para tratá-lo como culpado, restringindo sua liberadade, tampouco privando-o de comunicar-se com o mundo exterior, ainda que por curto lapso temporal, uma vez que além de ferir vários princípios constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o contraditório e a ampla defesa, a incomunicabilidade não traz benefícios consideráveis para as investigações, sobretudo em casos mais complexos.
A Constituição Federal estabelece que ninguem sera considerado culpado atá o trânsito em julgado de sentenca penal condenatória, consagrando a presunção de inocência, um dos princípios basilares do Estado Democrático de Direito, como garantia processual penal, visando a tutela da liberdade pessoal. Dessa forma, há necessidade de o Estado comprovar a culpa do individuo, que é constitucionalmente presumivelmente inocente, sob pena de regressão ao total arbítrio estatal.
As prisões cautelares são flagrantemente inconstitucionais, porque mesmo que por curto lapso de tempo, vem a considerar o indiciado como verdadeiro culpado, sendo que não houve, até entao, uma sentença condenatória transitada em julgado. Existem medidas cautelares para substituir as prisões cautelares e nem em ultima ratio deveria se cabível a um mero indiciado, que se vem a ser preso, pode sofrer consequências irreversíveis.
Um indiciado que vem a ser privado de sua liberdade e posteriormente é declarado inocente merece do Estado indenização pelos danos sofridos, porque foi preso injustamente por uma infração penal que não cometeu. Ainda assim, existem casos em que a mera indenização não é suficiente para reparar os prejuízos trazidos pela privação da liberade.
Se mesmo no estado de defesa, não é possivel a incomunicabilidade do preso, por lógica, não se pode admitir que o seja no estado de paz. A doutrina majoritaria entende que o dispositivo que determina a incomunicabilidade do indiciado é inconstitucional (Tourinho Filho, Romulo Moreira, Nestor Tavora, Rosmar Rodrigues), mas existe quem discorde, como Damásio de Jesus ao defender que "a proibição diz respeito ao período em que ocorrer a decretação do estado de sítio, aplicável à prisào por crime contra o estado, ou seja, infracao política”. Defende ainda que o legislador constituinte, se quisesse elevar tal proibição à categoria de princípio geral, certamente a teria inserido no artigo 5º, ao lado de outros mandamentos que procuram resguardar os direitos do preso; não o fez, relacionando a medida com os direitos politicos. Ainda que a proibição à incomunicabilidade do preso não esteja no capítulo referente aos direitos e garantias fundamentais, não se pode admitir que a Carta Magna veio a recepcioná-la. O Código de Processo Penal por ser um decreto-lei não pode desafiar ou mitigar princípios constitucionais. Sendo legislação hierarquicamente inferior, dever se levar em consideração a Carta Magna, de maneira que os dispositivos contrários a ela devem ser entendidos como revogados tacitamente ou interpretados de maneira a nao ferir os princípios estabelecidos constitucionalmente. Aplicar o art. 21 da maneira como traz o Código de Processo Penal seria desafiar a aplicabilidade dos princípios e garantias fundamentais e norteadores do Estado Democrático de Direito.
Assim, não tendo sido revogado expressamente, o artigo 21 do Código de Processo Penal deve ser interpretado não de forma literal, mas de forma teleológica, buscando-se a intenção da lei. A interpretação do referido dispositivo deverá ter sempre em vista a Constituição Federal, a orientadora maior do ordenamento juridico, adaptando as interpretacoes das normas vigentes ao sentido e finalidade das modernas exigências sociais.
Assim como a incomunicabilidade, que as prisões cautelares na fase do inquérito sao inconstitucionais, porque não obedecem os princípios constitucionais inerentes ao Estado de Direito, ou seja, o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência.
Faz-se necessário buscar provas contundentes quanto ao cometimento de alguma infraçãoo penal, para depois vir a restringir liberdade do indiciado, mas o que ocorre é uma afronta aos direitos expressos na Carta Magna que determina: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa com os meios e recursos a eles inerentes.
A prisão cautelar na fase das investigacões é utilizada como instrumento de repressão e arbitrariedade, que demonstra a existência de um Estado inquisitivo. O prejulgamento do indiciado como culpado em uma investigação policial, com restrição de sua liberdade, vem a suprimir garantias e direitos fundamentais retroagindo a um Estado que nao corresponde ao Estado Democrático de Direito expresso na Constituição Federal.
Na fase do inquérito policial, fase administrativa e pré processual, busca-se chegar a autoria e a materialidade de uma infração penal. A autoridade policial não tem provas provas contundentes que justifiquem uma privação da liberdade do indiciado. O que fundamento as prisões cautelares no inquérito policial é a garantia da ordem pública, da ordem econômica ou a conveniência da instrução processual penal, sendo conceitos muito amplos, que permitem certa discricionariedade perigosa.
Quando se restringe a liberdade de um individuo na fase pré-processual, observa-se uma verdadeira antecipação de culpabilidade do indiciado. Tourinho Filho aduz que: "o inquérito policial é mera peça informativa, nao podendo servir para a pré-punição do investigado mediante sua segregação sem o início da ação penal".
Cabe mencionar que o Brasil é signatario do Pacto de São José da Costa Rica, que estabelece em seu artigo 8º,II, que "toda pessoa acusada de delito tem o direito a que se presuma sua inocência enquanto nao se comprove legalmente sua culpa”, tendo o referido instrumento valor de norma constitucional. Desta feita, indiscutivelmente não seria possível, mais uma vez, a concessão de prisão em fase pré-processual.
Referências
NUCCI, Guilherme de Souza. Provas no processo penal: o valor da confissão como meio de prova no processo penal. 2.ed.- São Paulo: Editora Revista dos tribunais, 2011.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Antonni Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 7.ed. - Salvador: Editora Juspodivm, 2012
http://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=5027
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2005-2006. 2 v.
JESUS, Damásio Evangelista de. Código de Processo Penal anotado. 21. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 2004.
Autor: Tatiana Vasconcelos Costa
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