A PERDA DA FUNÇÃO PUNITIVA DA PRISÃO ALIMENTAR POR FORÇA DE INSTRUÇÕES INFRACONSTITUCIONAIS TENDENTES A OBSTACULIZAR A EXECUÇÃO DE ALIMENTOS



INTRODUÇÃO | PREVISÃO LEGAL E REQUISITOS DA PRISÃO ALIMENTÍCIA | REFLEXOS DOS OFÍCIOS-CIRCULARES 21/93 E 59/99 DA CGJ DO TJ/RS NA EXECUÇÃO DA PRISÃO POR DÍVIDA ALIMENTAR | REFLEXOS DA SÚMULA 309 DO STJ NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS | CONCLUSÃO | NOTAS | REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS | ANEXOS

INTRODUÇÃO

Muito se discute acerca da natureza jurídica da prisão alimentícia. Majoritariamente têm se entendido que a prisão alimentícia não tem caráter punitivo, eis que esta não se confunde com a função da coerção penal. Essa posição defende que a prisão do devedor tende a tão-somente persuadi-lo a não descumprir a ordem que o obrigou a prestar alimentos.

De outra banda, não podemos ignorar que também exista uma função punitiva na prisão civil por débito alimentar, independentemente do cunho patrimonial que a envolva. Tanto é verdade que a prisão é decretada somente após o débito estar configurado, como contraprestação – punição – ao inadimplemento, mesmo que se admita que o cerceamento da liberdade tenha o firme propósito de evitar a reincidência e que o simples cumprimento da pena não exime o devedor da dívida.

Discussão inócua, frente à atual corrente tendente a vulgarizar o débito alimentar, vez que, não obstante a natureza jurídica original que o legislador pretendeu conferir à prisão alimentícia, essa tendência ainda encontra respaldo doutrinário, jurisprudencial e constitucional.

Portanto, tem-se que a prisão civil constitui-se em medida punitiva, admitida em nossa Constituição nas hipóteses de depositário infiel e devedor de alimentos, conforme art. 5º, inc. LXVII, in verbis:

“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;”
    
O grifo não consta no original.

A Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) – incorporada ao ordenamento jurídico pátrio pelo Decreto nº 678/92 – aboliu a prisão civil para o depositário infiel, contudo manteve a coerção em se tratando de débito alimentar.
  
Quanto à prisão civil do depositário infiel – que não é nosso tema – cabe referir que têm se entendido cabível, haja vista tratar-se de previsão constitucional, tornando a convenção subalterna, vez que adida ao nosso regramento jurídico anteriormente à promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 [1], que conferiu força de emenda aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem absorvidos pelo país.

Portanto, continua sendo admitida a prisão civil do depositário infiel e do devedor de alimentos (esta jamais posta em discussão), eis que, em que pesem recomendações infraconstitucionais tendentes a abolir a força punitiva da coerção, ainda se entende que é, dentre todos os atos executórios, o mais eficaz.
 

PREVISÃO LEGAL E REQUISITOS DA PRISÃO ALIMENTÍCIA

Além da previsão constitucional, a prisão civil do devedor de alimentos vem regulada no Código de Processo Civil, em seu art. 733, § 1º e no caput do art. 19 da Lei nº 5.478/1968 (Lei de Alimentos):

Código de Processo Civil:

Art. 733. Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
§ 1o Se o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.

Lei de Alimentos:

Art. 19. O juiz, para instrução da causa, ou na execução da sentença ou do acordo, poderá tomar todas as providências necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou do acordo, inclusive a decretação de prisão do devedor até 60 (sessenta) dias.

Grifamos.

O legislador, ao redigir os dispositivos mencionados, teve presente a necessidade de punir de forma severa – com o cerceamento da liberdade – aquele alimentante que se mantém inadimplente de forma reiterada e proposital, eis que lhe é facultada uma gama de situações que permitem elidir a prisão.
  
Para ser preso, o alimentante deve preencher os seguintes requisitos de forma cumulada: a) estar obrigado judicialmente a prestar os alimentos; b) descumprir o comando judicial com a inadimplência; c) ser executado pelo rito do art. 733 do CPC; d) ser citado para, no prazo de três dias, “efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo”, além de lhe ser facultado, no mesmo prazo, propor uma forma de parcelamento do débito.
  
Apenas com o preenchimento de todos esses requisitos sem qualquer providência do devedor em adimplir o débito é que a prisão poderá ser decretada. Explica-se: existem entendimentos no sentido de, mesmo expirado o prazo do caput do art. 733 do CPC sem qualquer manifestação, autorizar a elisão da prisão mediante comprovação de pagamento parcial do débito, conforme jurisprudência:

“HABEAS CORPUS. PRISÃO. ALIMENTOS. EXECUÇÃO. O PAGAMENTO DAS TRÊS ÚLTIMAS PARCELAS ARREDA O DECRETO PRISIONAL, CABENDO PROSSEGUIR NA EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA. ORDEM CONCEDIDA. VOTO VENCIDO.” [2]
  
Este não é entendimento isolado, tendo inclusive já sido objeto de deliberação do Supremo Tribunal Federal, conforme fragmento da ementa:

“(...) 3. Tendência da jurisprudência no sentido de admitir que somente as últimas três prestações vencidas teriam o caráter estritamente alimentar, ficando nesta hipótese sujeito o alimentante à prisão civil (CPC, artigo 733). 4. As prestações mais velhas anteriores a três meses estariam a ensejar a cobrança por meio de execução, porém sem o constrangimento da decretação da prisão civil, em face de sua feição tipicamente indenizatória (CPC, artigo 722). (...)” [3]

Grifos nossos.

O presente estudo não se prestará a aprofundar essa questão, entretanto não podemos deixar de registrar que esse entendimento fomenta nossa irresignação.

Assim, não é absurdo concluir que a sanção prevista pela Constituição Federal e regulada pelo Código de Processo Civil e pela Lei de Alimentos encontra sérios entraves formais, processuais e burocráticos que terminam por esmaecer a função punitiva da prisão alimentícia.
 
Não obstante esses entraves sobejamente conhecidos para a decretação da prisão civil do devedor de alimentos, a prática nos mostra ser ainda mais complexa a execução da prisão, com a freqüente ocultação dos devedores, frustrando a concretização da medida.

Se, então, o credor de alimentos finalmente conseguir levar a cabo a execução, tendo passado pelos requisitos já referidos e logrado privar o Executado da liberdade, deparamo-nos com outra situação criada em prol do devedor: o cumprimento da pena em regime aberto, em albergues, conforme adiante melhor se abordará.

REFLEXOS DOS OFÍCIOS-CIRCULARES 21/93 E 59/99 DA CGJ DO TJ/RS NA EXECUÇÃO DA PRISÃO POR DÍVIDA ALIMENTAR

Conforme referido no item anterior, têm se entendido que o cumprimento da pena de prisão por débito alimentar deve ser realizado em albergues, em regime aberto. Essa é a “recomendação” expressa nos Ofícios-Circulares 21/93 e 59/99 da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Em outras palavras, o devedor apenas pernoitará no albergue.

Trecho do Ofício-Circular nº 21/93 da CGJ do TJ/RS:

“Considerando a absoluta inconveniência de cumprimento de ‘prisão civil’ em estabelecimento destinado a apenados por fatos criminosos, recomendo a V. Exa. que, não sendo caso de prisão domiciliar, determine, sempre que possível, seu cumprimento sob regime aberto em ‘casas de albergados’.”

Parte do Ofício-Circular nº 59/99 da CGJ do TJ/RS, que republicou o Ofício nº 21/93 e acrescentou relação de albergues para o cumprimento das prisões alimentícias:

“Considerando a absoluta inconveniência de cumprimento de PRISÃO CIVIL em estabelecimento destinado a apenados por fatos criminosos, recomendo a Vossa Excelência que, não sendo caso de prisão domiciliar, determine, sempre que possível, seu cumprimento sob regime aberto em CASAS DO ALBERGADO.”

Sim, os textos se repetem. Repetem-se também suas absolutas inconveniências.

Em razão dessas recomendações é que não é incomum vermos – especialmente no Rio Grande do Sul – devedores de alimentos que cumpriram (ou cumprem) prisão alimentícia permanecerem em débito, já que o modelo imposto não desencoraja a inadimplência.

Ademais, não é segredo que os próprios devedores de alimentos investem – os mesmos recursos que sonegam aos alimentados – em melhorias nos albergues que freqüentam. Trocam colchões, executam pequenos reparos, aparelham salões de jogos e fazem pleno uso desse tipo de mordomia que, provavelmente, não teriam em outro lugar.

São situações como essa que dão à sociedade a certeza da impunidade e o conseqüente descrédito na justiça, assim como incentivam os contumazes devedores a reincidir no débito.

As noções nitidamente garantistas de nosso regramento penal (onde a maior lesada acaba sendo a sociedade) não podem permanecer incidindo no âmbito do Direito de Família, mormente se tivermos por norte que o lesado, nesse caso, será o alimentado (menor de idade, em geral), hipossuficiente por essência e que nada mais deseja senão exercer o direito de ser alimentado por aquele que tem essa obrigação.

Segundo o Dicionário Houaiss [4], o verbete “inconveniente” (termo utilizado nos ofícios mencionados) possui, dentre outras, a acepção “desvantajoso”. Se é desvantajoso ao devedor de alimentos cumprir pena em estabelecimento destinado a apenados por fatos criminosos, qual adjetivo usar para classificar a violação do direito do alimentado, que estará fadado a nada receber em razão de todas as benesses concedidas ao devedor?

Tamanho despautério leva-nos a concluir que o Corregedor, quando se investiu na figura de legislador, usou de parcialidade ao “recomendar” a prisão em albergues. Partiu da premissa de que o ambiente carcerário, onde habitam presos criminais, não é compatível com o devedor de alimentos. Olvidou-se de atentar que do outro lado existe um ser humano que está sendo lesado, provavelmente da forma mais cruel que alguém possa ser lesado: negando-lhe meios para subsistir.
 
É esse tipo de situação que fomenta a ânsia dos alimentantes em não alcançar a verba alimentar a que estão obrigados. Valem-se da máxima cada vez mais enraizada na sociedade: “o crime compensa”.

Pergunta-se: a prisão civil do devedor de alimentos em sistema fechado é inconveniente para quem?
  
Não se ignora que nosso sistema carcerário está falido, sendo objeto inclusive de recente CPI. Contudo, temos que ter presente que o preso por dívida alimentícia é, quiçá, o mais perigoso e ameaçador entre todos, já que priva de sustento aquele ser humano que necessita do seu amparo. Inexiste atitude mais vil que o abandono.
  
A superlotação, a falta de estrutura e todas as demais mazelas conhecidas do nosso sistema carcerário, jamais impediram que novos condenados criminalmente fossem recolhidos presos junto aos presídios. Diante dessa realidade, temos afastado a hipótese de que a “inconveniência” em manter os devedores de alimentos presos em regime fechado deva-se à falta de vagas.
  
Defensores da prisão alimentícia em regime aberto possuem outro argumento (falho) para defender essa posição. Segundo eles, se o alimentante não conseguiu pagar os alimentos em liberdade, não seria recluso que auferiria renda para pagá-los. Dessa forma, apenas pernoitando em albergues, teria condições de amealhar verba para pagar os alimentos, pois teria o período do dia para trabalhar.

Ora, se em total liberdade o alimentante não honrou seu compromisso, não será albergado que o fará. E é com esse propósito (tornar desvantajosa a inadimplência) que a prisão do devedor de alimentos deve se processar em regime fechado – em presídios e de forma implacável – para coibir a reincidência.

Não é outro o entendimento de Araken de Assis:

“...E com efeito, o deferimento de prisão domiciliar ao executado constitui amarga pilhéria. Dela não resulta nenhum estímulo real sobre a vontade renitente do devedor. O controle do confinamento, ademais, se revela difícil e na maioria das vezes improvável; assim, torna-se pífia a ameaça derivada do meio executório.” [5]

Até pouco tempo, o preso em sistema de albergue apenas conseguiria passar o dia em liberdade se comprovasse possuir uma atividade laborativa. O preso que vivia de biscates, até então, permanecia no albergue sem poder sair, em face da não-comprovação de vínculo empregatício.

Recentes julgados têm entendido que, mesmo aquele que não possa provar a atividade laboral, poderá ausentar-se do albergue durante o dia, conforme entendimento da 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS. O mesmo julgado faz referência ao Ofício-Circular nº 21/93 da CGJ do TJ/RS, ora atacado:

“HABEAS CORPUS. DÍVIDA DE ALIMENTOS. PRISÃO CIVIL. CUMPRIMENTO EM REGIME ABERTO. 1. A prisão civil decorrente de dívida alimentar deve ser cumprida em regime aberto, podendo o devedor sair para exercer sua atividade laboral, independentemente do estabelecimento carcerário onde se encontrar recolhido. Recomendação da Circular nº 21/93 da Corregedoria-Geral da Justiça. 2. O fato do desemprego não impede a saída do devedor, desde que seja para exercer atividade laboral, que pode ser autônoma. Ordem concedida.” [6]
  
O grifo não consta no original.

Outro julgado da mesma Câmara, adotando a recomendação do Ofício-Circular nº 59/99, da CGJ do TJ/RS, que republicou o de nº 21/93:

“ALIMENTOS. AÇÃO DE EXECUÇÃO. PRISÃO CIVIL. REGIME ABERTO. Conforme entendimento assentado na jurisprudência desta Corte, o executado pelo rito do art. 733 do CPC, ficará preso em regime aberto, de acordo com determinação da Corregedoria-Geral de Justiça (Circular n° 59/99). Concederam a ordem, para determinar o cumprimento da prisão civil em regime aberto.” [7]

É em razão dessa espécie de pronunciamento judicial que vemos cada vez mais os alimentantes se esquivando de alcançar alimentos e os alimentados, sem qualquer alternativa, passando a cometer pequenos delitos e todos os demais desdobramentos que se originam na necessidade financeira.

REFLEXOS DA SÚMULA 309 DO STJ NA EXECUÇÃO DE ALIMENTOS

Quando o legislador conferiu ao credor de alimentos a faculdade de optar entre as duas modalidades de execução (arts. 732 e 733 do Código de Processo Civil), não fez qualquer ressalva quanto à prescrição do débito alimentar. Este vinha regulado no Código Civil de 1916, no art. 178, § 10º, inc. I (cinco anos), conforme transcrição:

Lei nº 3.071/1916 – Antigo Código Civil:

Art. 178 - Prescreve:
(...)
§ 10 - Em 5 (cinco) anos:
I - As prestações de pensões alimentícias;”

Hoje – mais uma evidência da flagrante tendência em banalizar o débito alimentar – esta mesma dívida prescreve em dois anos, conforme art. 206, § 2º do Código Civil vigente:

Lei nº 10.406/2002 – Código Civil:

Art. 206. Prescreve:
(...)
§ 2º Em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem.”

Com o advento da súmula nº 309 do STJ, de 22/03/2006, as execuções de alimentos pelo rito do art. 733 passaram a poder abranger apenas as 3 (três) prestações vencidas anteriores ao ajuizamento da ação, in verbis:

Súmula 309. O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.”

Grifamos.

É bem verdade que a jurisprudência já vinha admitindo a execução de alimentos nos moldes hoje impostos pela súmula 309, entretanto por pura construção, eis que inexiste em nosso ordenamento jurídico qualquer menção à “prescrição” de três meses para a execução dos alimentos pelo rito da prisão.
  
Cabe informar que a redação original da súmula nº 309, datada de 27/04/2005, referia-se às três prestações anteriores à citação do Executado, o que se constitui em verdadeira aberração. Seria injusto não admitir que a alteração da súmula veio abrandar o sofrimento do alimentado, entretanto não passou de uma correção sobre matéria que não necessitava ser sumulada.

Há quem defenda que a matéria carecia, sim, de súmula, já que a prática da execução pelo rito da prisão vinha sendo a da cobrança dos últimos três meses sem qualquer previsão legal. Não corroboramos desse entendimento, haja vista que se a previsão legal é a da prescrição da dívida alimentar em dois anos, não há que se falar em súmula para regulamentar matéria já regulamentada, muito menos se a alteração se prestar (como se prestou) a prejudicar o alimentado.
  
Por força da súmula nº 309, se assentou o entendimento (praticamente pacificado pela jurisprudência) no sentido de que as prestações alimentícias que forem executadas pelo rito da prisão não poderão ser objeto de decreto prisional caso possuam mais de três meses de vencidas. Explica-se: se o alimentado ingressa com ação de execução em determinada data (abrangendo as três prestações vencidas anteriormente) e o Executado é citado nos termos do art. 733 do CPC, v.g., seis meses depois, basta pagar as prestações dos últimos três meses anteriores à citação para ser elidida a prisão. Isto, porque o Poder Judiciário tem entendido que as pensões não cobradas anteriores a esse período perdem o caráter alimentar, restando ao alimentado converter a dívida remanescente para a execução pelo rito do art. 732, como forma apenas de ressarcimento de despesas. [8]
  
Essa também é a irresignação de Maria Berenice Dias, como bem sinalizou em seu artigo “Súmula 309 do STJ: um equívoco que urge ser corrigido!”: [9]

“...a jurisprudência consolidou-se no sentido de admitir o rito do apenamento somente com referência a três prestações alimentícias vencidas à data da propositura da demanda. O fundamento, de todo insubsistente, é que dívida anterior a tal período perde sua natureza alimentar, passando, em um passe de mágica, a dispor de feição indenizatória.”

O grifo é nosso.

É importante entender que – mesmo que a súmula nº 309 fosse coerente – se o alimentado ingressou em juízo com um feito executivo e, entre o ajuizamento e a citação válida do Executado decorreu determinado prazo de tempo sem que o credor tenha dado causa à demora, é injusto impor ao alimentado abrir mão de determinada dívida pelo rito da prisão e converter esse débito para o procedimento previsto no art. 732, mediante nova ação.
  
Essa orientação que tem norteado os julgamentos seria coerente (caso a súmula nº 309 também o fosse) para os casos em que o credor, por inércia, deixasse de executar os alimentos impagos em tempo hábil, restando-lhe tão-somente a cobrança pelo rito do art. 732. Agora, decretar a perda do caráter alimentar de determinada dívida que vem sendo cobrada ao longo de vários meses (muitas vezes em razão da própria morosidade da justiça), é sanção deveras pesada para um alimentado que não logrou receber os alimentos de maneira voluntária. Coerentemente, o STJ teve o seguinte pronunciamento, em caso análogo:

“(...) Entendimento que não é de aplicar-se, entretanto, quando não se verifica inércia do credor que, para receber o devido, se vê forçado a movimentar sucessivas execuções, dada a atitude do alimentante, recusando-se a cumprir o determinado.” [10]
  
Entretanto, é interessante trazer à baila que essa mesma ementa trouxe o entendimento dominante em seu âmago, atendendo à instrução da súmula 309:

“Alimentos. Prisão. É da jurisprudência que não se decreta a prisão, tendente a forçar os pagamentos de alimentos, quando o credor deixa acumular numerosas prestações, fazendo com que o débito se torne especialmente elevado. Em tal caso, a coerção se referirá apenas às três últimas.
    
Grifamos.
    
Ora, não se trata do credor deixar “acumular numerosas prestações, fazendo com que o débito se torne especialmente elevado”. Há que se ter presente que – mediante inércia ou não do credor – o devedor só se verá executado caso não cumpra voluntariamente à determinação judicial, ou seja: desde o momento em que deixou de alcançar os alimentos (quer seja executado imediatamente ou não), é sabedor de que está na iminência de ser executado.
 
Parece-nos, s.m.j., que o Superior Tribunal de Justiça – bem como todos os demais colegiados inferiores – em favor de uma benesse estúpida ao devedor de alimentos, esqueceu-se que os alimentos são irrenunciáveis e, assim o sendo, necessitam de um melhor regramento e/ou melhor aplicação do regramento hoje vigente.

Imprescindível deixar de mencionar, entretanto, que existem julgados contrários à instrução contida na súmula 309 do STJ, não fazendo distinção entre prestações recentes e antigas, conforme refere Theotônio Negrão [11]. Todavia, são julgados esparsos que não lograram influenciar a dominante corrente jurisprudencial.
  
Não é razoável que o alimentado (que já sofre naturalmente diante de sua hipossuficiência e pela necessidade de ter que processar seu alimentante) ainda tenha que conviver com essa vasta coleção de dificuldades para ver satisfeito seu crédito e com a não menos vasta quantidade de benesses concedidas ao alimentante, sempre tendentes a banalizar a dívida alimentar e exaurir a eficácia da prisão civil prevista em nossa Constituição, no Código de Processo Civil e na Lei de Alimentos.

Da abalizada literatura de Cesare Beccaria [12]:
  
“Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria de que falamos se preocupe constantemente em destruí-las.
Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta de delitos.”

CONCLUSÃO

O Direito não pode ser uma ciência estanque, eis que deve estar sempre atento às transformações da sociedade para que possa acompanhar a evolução do homem e adaptar a norma escrita à realidade fática.
  
Contudo, o que temos visto no caso em comento é uma constante transformação do regramento jurídico, do entendimento jurisprudencial e da prática jurídica e processual, sempre e reiteradamente em prejuízo do credor de alimentos.
  
A súmula 309 do STJ e os Ofícios-Circulares 21/93 e 59/99 da CGJ do TJ/RS passaram a ser aplicados tão logo publicados sem qualquer reflexão mais profunda por parte dos magistrados. As ponderações ficaram por conta de alguma doutrina que não passou de “voz clamante no deserto”.

Acerca da aplicação reflexiva do regramento jurídico, o ex-Desembargador do TJ/RS, Sérgio Gischkow Pereira, fez irrepreensível arrazoado ao comentar o método empregado pelo Desembargador Rui Portanova em seus julgados:

“Haverá o Dr. Rui Portanova de perseverar em sua busca incessante por um direito justo, trabalho sublime que não pode ser mesmo enfraquecido pela preocupação com ´recursos e reformas´; é reincidência das mais salutares e saudáveis, fundamentais para se evitar o esclerosamento e a iniqüidade do Direito. Só assim a ciência jurídica se mantém aberta, arejada, sujeita à crítica. O que não se pode, em absoluto, é cair na armadilha do legalismo, do positivismo, do tecnicismo lógico-formal, que conduzem à exegese e aplicação não reflexiva do ordenamento jurídico; atitudes como a do Dr. Portanova é que impedem que este malefício se produza.” [13] [14]

Compete ao magistrado então, no uso do bom senso, contemporizar a aplicação dessas orientações, com o propósito de tornar mais eficaz a execução de alimentos, proporcionando ao credor uma maior probabilidade de sucesso em suas pretensões, que hoje são fulminadas pelo imenso número de situações dispostas ao devedor, todas tendentes a obstaculizar a satisfação do crédito do alimentado.


NOTAS

[1] A Emenda Constitucional nº 45/2004, dentre outros, adicionou o § 3º ao art. 5º da Constituição Federal, regulamentando a adoção de convenções e tratados internacionais sobre direitos humanos ao nosso regramento jurídico.

[2] Habeas Corpus nº 598400174, 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS. Relator: Desembargador Antônio Carlos Stangler Pereira. Julgado em 10/12/1998.

[3] Habeas Corpus nº 74663/RJ, 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal. Relator: Ministro Maurício Corrêa. Julgado em 08/04/1997. Publicado em 06/06/1997.

[4] HOUAISS, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Versão 1.0, 2001.

[5] ASSIS, Araken de. Da Execução de Alimentos e Prisão do Devedor. 5ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 148;

[6] Habeas Corpus nº 70022519698, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS. Relator: Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em 19/12/2007.

[7] Habeas Corpus nº 70009006347, 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do RS. Relator: Desembargador José Carlos Teixeira Giorgis. Julgado em 23/06/2004.

[8] Vide jurisprudências do TJ/RS e do STF, coladas no item sob subtítulo “Previsão legal e requisitos da prisão alimentícia”.

[9] DIAS, Maria Berenice. Súmula 309 do STJ: um equívoco que urge ser corrigido! Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 686, 22 maio 2005. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2008.

[10] Habeas Corpus nº 11176/SP, 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Eduardo Ribeiro. Julgado em 27/03/2000. Denegaram a ordem, v.u. Publicado no DJU de 15/05/2000, p. 154.

[11] NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊA, José Roberto F. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 38ª edição atualizada até 16/02/2006, São Paulo: Saraiva, 2006. p. 835 – JTJ 259/247.

[12] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martins Claret, inverno de 2002. p. 102.

[13] PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4ª edição revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. Contracapa.

[14] Segundo informação da contracapa do livro, essa citação é trecho do acórdão nº SGP 190077453 da 13ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul, onde foi relator o Juiz de Alçada Sérgio Gischkow Pereira. Em consulta ao saite do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, dito número de acórdão remete a uma Apelação Cível cujo trâmite se operou na 3ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. COSTA, Aline Paula Gomes. A inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia: uma análise empírica. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 997, 25 mar. 2006. Disponível em:. Acesso em: 08 jul. 2008.

2. BRASIL. Constituição Federal, 1988.

3. CONVENÇÃO INTERAMERICANA SOBRE DIREITOS HUMANOS. Pacto de São José da Costa Rica, 1962.

4.  BRASIL, Decreto 678, 1992.

5.  BRASIL, Código de Processo Civil. Lei 5.869, 1973.

6. BRASIL, Lei de Alimentos. Lei 5.478, 1968.

7. Ofício-Circular 21 da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 1993.

8. Ofício-Circular 59 da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 1999.

9. HOUAISS, Dicionário Eletrônico da Língua Portuguesa. Versão 1.0, 2001.

10. ASSIS, Araken de. Da Execução de Alimentos e Prisão do Devedor. 5ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

11. CAPEZ, Fernando. Prisão civil. O Pacto de São José da Costa Rica e a Emenda Constitucional nº 45/2004. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 910, 30 dez. 2005. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2008.

12. GAGLIANO, Pablo Stolze. A prisão civil do devedor de alimentos. Disponível em: . Acesso em 10 jul. 2008.

13. ALARCÃO, Thais Arruda de; OLIVEIRA, Guilherme Arruda de. As formas de cumprimento da prisão alimentar. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 2, nº 93. Disponível em: Acesso em: 25  jun. 2008.

14. DIAS, Alan. Aspectos jurídicos da prisão civil por alimentos. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 39, fev. 2000. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2008.

15. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Súmula 309, 2006.

16. BRASIL, Código Civil antigo. Lei 3.071, 1916.

17. BRASIL, Código Civil. Lei 10.406, 2002.

18. DIAS, Maria Berenice. Súmula 309 do STJ: um equívoco que urge ser corrigido! Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 686, 22 maio 2005. Disponível em: . Acesso em: 03 jul. 2008.

19. NEGRÃO, Theotônio; GOUVÊA, José Roberto F. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 38ª edição atualizada até 16/02/2006, São Paulo: Saraiva, 2006.

20. BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Martins Claret, 2002. p. 102.

21. PORTANOVA, Rui. Motivações ideológicas da sentença. 4ª edição revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

ANEXOS

OFÍCIO-CIRCULAR N° 21/93-CGJ

Republicado pelo O.C. 59/99-CGJ.
Porto Alegre, 12 de maio de 1993.

F.: 21458/92/0

Prisão civil. Recomenda-se a determinação do cumprimento sob regime aberto, com a utilização de casas de albergados.

Sr.(a) Juiz(a):

Considerando a absoluta inconveniência de cumprimento de "prisão civil" em estabelecimento destinado a apenados por fatos criminosos, recomendo a V. Exa. que, não sendo caso de prisão domiciliar, determine, sempre que possível, seu cumprimento sob regime aberto em "casas de albergados".

Nesses casos, faz-se necessário atentar para que "conste no mandado o local" do cumprimento da pena, para sua correta execução.

Segue relação dos estabelecimentos disponíveis no Estado para a finalidade em referência:

- Casa do Albergado Padre Pio Buck, em Porto Alegre;
- Casa Alber¬gue Feminina, em Porto Alegre;
- Instituto Penal de Canoas, em Canoas;
- Casa Albergue Santos e Medeiros, em Gravataí;
- Patronato Lima Drumond, em Porto Alegre;
- Colônia Penal Agrícola Gal. Daltro Filho, em Charqueadas;
- Instituto Penal de Mariante, em Estância Mariante (próximo a Venâncio Aires).

Valho-me da oportunidade para renovar-lhe a certeza do meu respeito e apreço.
Desembargador RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR
Corregedor-Geral da Justiça

Exmo.(a) Sr.(a)
Dr.(a) Juiz(a) de Direito/Pretor(a) da Vara/Comarca

OFÍCIO-CIRCULAR N° 59/99-CGJ

Porto Alegre, 06 de agosto de 1999.

Ref: Prisão Civil. Recomenda-se a determinação do cumprimento sob regime aberto, com a utilização de Casas do Albergado.

Expediente nº 20.781-0300/ 99 – 0              
Republica o Ofício-Circular n.º 21/93-CGJ e acrescenta  Anexo da Relação das Casas Prisionais com sua classificação.

Senhor(a) Juiz(a):

Considerando a absoluta inconveniência de cumprimento de PRISÃO CIVIL em estabelecimento destinado a apenados por  fatos criminosos, recomendo a Vossa Excelência que, não sendo caso de prisão domiciliar, determine, sempre que possível, seu cumprimento sob regime aberto em CASAS DO ALBERGADO.

Nesses casos, faz-se necessário atentar para que conste no mandado o local do cumprimento da pena, para sua correta execução.

Segue relação dos estabelecimentos disponíveis no Estado para a finalidade em referência: Casa do Albergado Padre Pio Buck, em Porto Alegre; Casa Albergue Feminina, em Porto alegre; Instituto Penal de Canoas, em Canoas; Casa Albergue Santos e Medeiros, em Gravataí; Patronato Lima Drumond, em Porto Alegre; Colônia Penal Agrícola Gen. Daltro Filho, em Charqueadas; Instituto Penal de Mariante, em Estância Mariante (próximo a Venâncio Aires).

Atenciosas saudações.
Des. Paulo Augusto Monte Lopes
Vice-Corregedor-Geral da Justiça

Exmo(a). Senhor(a).
Doutor(a). Juiz(a) de Direito
 
Registre-se e publique-se.
Maria Cecília D. de Souza Leal,
no exercício do cargo de Secretário.


Autor: Eduardo Antônio Kremer Martins


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