Rios turvos: A raposa x o pinto



RIOS TURVOS: A RAPOSA X O PINTO.

 

Docente: Renata Pimentel

Discente: Luciana Carneiro Nunes[1]

 

 

Artigo apresentado à Professora Renata Pimentel da disciplina A Voz Feminina na Literatura Brasileira 2ª turma – 2012.1, turno noite do curso de pós-graduação em Literatura Brasileira e Interculturalidade.

 

Resumo: O presente artigo estabelece uma análise da obra da autora pernambucana Luzilá Gonçalves, Rios Turvos. Traz a narrativa da história da vida de Bento Teixeira, autor do momento literário Barroco, do século XVII .Acentua os cânones sociais machistas , corrompido pelo peso social da sua época., destacando também o cunho atemporal na interpretação da posição da mulher frente aos séculos. A estrutura do artigo foi realizada de forma a dividir a análise pessoal do livro em subtítulos, criando um raciocínio linear, seqüenciando o objeto de estudo aqui exposto.

Palavras Chaves:  Mulher, sociedade e  história.

Abstract: This article set up an analysis of the work of Pernambuco author Luzilá Gonçalves, Rios Turvos. It brings the narrative of the life story of Bento Teixeira, author of the literary moment Baroque of the seventeenth century. Stresses sexist social canons, corrupted by the social weight of his time, Highlighting also the timeless nature in the interpretation of the position of women in the face of centuries. The structure of this article was made in way to divide the personal analysis of the book captions, creating a linear reasoning, sequencing the subject matter discussed here.

Keywords: Woman, society, history.

 

Introdução

Este ensaio analisa a condição da realidade ficcional da construção da mulher, destacada pela sociedade da época, do Brasil  Colônia, como a parte frágil e submissa, mas que na obra, pela própria alcunha, desmitifica essa vertente versus o homem, parte superior na cadeia das regras sociais, que surge na narrativa com sobrenome devorável pela audácia feminina retratada no  romance  Os Rios  Turvos, de Luzilá  Gonçalves Ferreira. A obra, independente do período histórico em que está inserida, dá conta da discussão a respeito da irreverência e “emancipação” da mulher, simbolizada destacadamenteem Filipa Raposae da luta dos valores construídos sob o olhar masculino.

Para tanto, e não sendo diferente, farei referência à vida da autora já  conhecida   e  reconhecida   pela   construção  de  personagens   femininos   de  notável   força  e  expressão, que procura, através de seus textos, dar elasticidade ao espaço da mulher  dentro   da sociedade.

O enredo da obra também será um item destacado à parte por se tratar de situar com maior evidência alguns detalhes do protagonista Bento Teixeira, personagem de extrema importância para o desencadeamento dos acontecimentos dos quais o presente trabalho; é objeto de estudo.

A autora

Pernambucana de nascença, Luzilá Gonçalves Ferreira formou-se em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); fez Doutorado na França e estudou no Centro Superior de Estudos de Francês. Atualmente, é professora e Vice Coordenadora da Pós-graduação em Letras da UFPE.  Sua linha de pesquisa aborda a literatura escrita por mulheres em Pernambuco.

Por esse motivo, o eixo central da sua obra é a condição feminina, pois procura em suas personagens retratar problemas gerais a todas as mulheres. No caso de Filipa Raposa, a autora confessa, em entrevista a Raquel Rodrigues, da Agenda Cultural, que emprestou-lhe  a  voz   e  um   pouco   da  personalidade.   Atentos à leitura do romance, após tal confissão, arrisca-se a dizer que Filipa é, na verdade, uma espécie de “alter-ego” da autora a quem ela transforma numa mulher à frente do seu tempo pelas leituras, desejos e modos. A personagem se torna a maior crítica da produção literária de Bento Teixeira: questiona, desmonta e acrescenta versos nos poemas do marido numa espécie de “fusão” poética, num mesmo “eu-lírico”.

 

 

Enredo e aspectos gerais

 Bento Teixeira, autor da Prosopopeia, obra que marcou o início do Barroco na literatura nacional, é considerado o primeiro poeta brasileiro. No entanto, no que se refere à Prosopopeia, de Bento Teixeira, foi publicada pela primeira vez em Portugal no ano de 1601.

Esse aspecto, a crítica especializada não concorda em, pelo menos, três pontos: a questão de ser ou não o primeiro poeta do país; de ser o poema brasileiro ou não, uma vez que seu autor nasceu em Portugal e o texto não é publicado no Brasil; e, ainda, se o poema é mais épico ou mais elogioso.

O romance, Os Rios Turvos, traz Bento Teixeira como personagem central, é estruturado em 23 capítulos; uma nota na qual a autora antecipa aos leitores a existência de outros textos de caráter literário e histórico; um Translado, documento históricoem que Luzilátranscreve a confissão de Bento Teixeira perante o Tribunal da Santa Inquisição (prova   de  que   o   personagem   teve   existência   real);   e   11  epígrafes   em   que  é   possível,  somente através delas, reconstruir a vida do poeta. Não podemos deixar de acrescentar que a obra não obedece a uma ordem lógica e seria correto afirmar que um acontecimento desencadeia o outro. Há, ainda, três grandes ciclos que se fecham na narrativa: o espaço: Bento vem de Lisboa com sua família fugindo da Inquisição e volta para o mesmo local condenado por ela; a denúncia: a obra inicia-se com Filipa o denunciando perante o Santo Ofício e contando aos visitadores que o marido havia jurado pelas partes vergonhosas de Nossa Senhora e termina quando Bento faz esse juramento e explica porque o faz, tentando defender-se das acusações de plágio, protagonizadas pelos amigos João Pinto e Antônio Madureira; a reconstrução da vida de Bento Teixeira: o maior ciclo de todos.   Após a leitura, temos de montar e recuperar em nossa mente e no texto os principais fatos que marcaram sua existência.

Quanto ao enredo, a obra recupera a vida do poeta numa mistura de biografia e ficção em ordem não-linear. Por isso, com o objetivo de se dar certa linearidade aos acontecimentos no intuito de favorecer o desenvolvimento do nosso estudo, os organizamos em ordem cronológica.

Bento chega ao Brasil com os pais, cristãos-novos, para fugir do alcance da Santa Inquisição. Esta é descrita como o grande motivo de preocupação do poeta ao longo de toda a narrativa, numa espécie de “quase” premonição ou, talvez, de preparação para o que lhe aconteceria no futuro. Estuda no Colégio Companhia de Jesus e é ajudado pelo bispo Don Antônio Barreiras. Desde então procura viver fielmente de acordo com os preceitos católicos. Nesse ambiente, faz importantes amizades que lhe servirão mais tarde como testemunhas de defesa perante o Tribunal do Santo Ofício.

            Chega a ser denunciado anteriormente  ao visitador  da  Inquisição pelo  fato  de  ter  lido Diana , de Jorge Montemayor (autor judeu), e também por ter, a pedido do seu sobrinho  Antônio Teixeira, traduzido do latim para o português o livro Deuterônimo  (livro da Torá,  que Javé ditara a Moisés), tarefa essa que só caberia à Igreja. Porém, não é levado à prisão por esses feitos.

Casa-se com Filipa Raposa, cristã-velha, mulher sedutora, bonita, fogosa e inteligente. Essas qualidades da esposa fazem com que o poeta tema os olhares masculinos e procure controlá-la, sem sucesso.   Conforme ele previa, as qualidades e os modos de Filipa chamam a atenção de todos.  Por conta das maledicências e das supostas traições, Bento se vê obrigado a mudar frequentemente de uma cidade para outra. Até que fixam residência no Cabo: último lugar em que viveram juntos, localizado nas terras de João Paes.  Neste local, pensava o poeta que iria afastar a sua bela mulher dos “perigos” da convivência em sociedade e poderia, então, melhor vigiá-la. 

Entretanto, boatos de que ela o traía com o único homem com quem tinha contato mais direto, o padre Duarte, levaram Bento a assassiná-la.  Resolve fugir para Olinda e entrega os dois filhos (a quem sempre tratava com frieza por se parecerem demais com a mãe, ou, talvez, por ter dúvidas quanto à paternidade) e uma carta a João Paes, mas acaba por apresentar-se ao Tribunal Inquisidor.

Em 12 de agosto de 1595, recebe ordem de prisão e ele mesmo, exibindo seus conhecimentos, prepara os documentos de defesa. Mas, perante os Inquisidores, reconhece sua culpa e renega suas crenças na esperança de ser libertado.  Todavia, é condenado e enviado a Lisboa. Morre na prisão em julho de 1600. No ano seguinte, a Inquisição permite a publicação da primeira edição da Prosopopeia .

A narrativa ainda nos dá detalhes de que Bento vivia das aulas que ministrava como professor de latim, aritmética e poesia e apresenta o exercício e as dificuldades do poeta na construção de seus versos, o que não acontecia com a esposa que compunha versos e trovas com uma facilidade que lhe fluíam naturalmente.

Raposa x Pinto

 

O grande tema da narrativa pode ser resumido ao amor de Bento e Filipa Raposa que o levou à decadência, no entanto, outros temas são passíveis de observação: a criação literária (inspiração e exercício); a voz das minorias (judeus);  a crítica ferrenha ao clero; a  condição da mulher na época em que está inserida a obra, e a guerra dos sexos.

O ciúme que Bento sentia por Filipa era provocado por sua beleza, por seu rosto “que parecia ter sido traçado por um artista, um artista chegado à perfeição de  sua arte...”  (p.   60),   além   de   seus  grandes   olhos   verdes   que   fascinavam   a   todos   e   que   o   haviam  enfeitiçado desde  o primeiro momento  que  a vira.

 “Um fascínio de serpente, que a gente fixa e que nos fixa ao solo, incapaz de desviar a contemplação, que é atração e medo.” (p.  60).

A autora conseguiu trazerem Rios Turvosos conflitos reais vividos no Barroco e isso pode ser percebido na narrativa nos aspectos da dualidade; Reforma- Contrarreforma, fidalgo – vassalo, autonomia da mulher – homem, conceitos – negação, cristãos novos- cristãos velhos, excluídos – dominador, igreja – liberdade; amor – ciúmes, cobranças – sociedade, vida – morte, cristianismo –judaísmo, poesia épica – poesia lírica, fidelidade – traição.

O fator mais intrigante na obra é que diante de tantas referências Luzilá traz um toque peculiar, mas muito instigante à personagem de Filipa, pois não há  na  História  muitos  dados biográficos  disponíveis  a  respeito  da  esposa  de  Bento  Teixeira,  o  que  demonstra   que   a  personagem   é   construída   em   torno   de   um   interessante  jogo   ficcional   em  que   lhe   são  emprestadas características físicas e psicológicas fundamentais para o desfecho da obra. Por mais que haja importância na tematização do personagem de Bento, fica na atmosfera a marca da impressão que ela nos proporciona. Essa passa a ser sentida nos diálogos que o casal enfrenta na narrativa, que ficam claros a grandiosidade e retórica dada a Raposa.E todo incomodo que o Pinto deixa transparecer , passando a ideia clara que não há como vencer o duelo. Sempre era Filipa quem tomava  certas  iniciativas  e  deixava  o  noivo desconcertado  a  correr para  a Igreja   e  confessar  os pecados  aos padres maliciosos.  Ela também se confessava e notava o interesse, a malícia do padre e o poder que exercia sobre ele, já seduzido por sua beleza. Traços que Luzilá pintou na personagem, que se destaca como principal alimento da obra. Na verdade, Filipa com sua beleza, educação e inteligência era condenada pela sociedade machista que queria as “matronas decentes” reclusas ao espaço do lar, e também pelo próprio marido criado ouvindo dos padres que era preciso ter muita cautela com as mulheres, o que piorava em muito a situação do casal. Por conta da condenação masculina (todos que falavam sobre Filipa eram homens), o marido tirou-lhe a vida e o interessante é que fora condenado apenas por seus crimes como herege e mau   cristão.   Jamais se mencionou no julgamento o assassínio da mulher caracterizado, nas “entrelinhas” do texto, como sendo natural para a época, afinal, ele limpava sua honra.

            O caráter literário da obra está no fato de esta não responder se Filipa traiu ou não o marido, apesar de um jogo de pistas que deixam por conta do leitor o julgamento final. Para Bento, todavia, como não acreditar que a mulher envolvera-se com Francisco de Souza Ledo; Paulo de Vaçova, Francisco de Almeida e padre Duarte, se ao lembrar-se do comportamento dela durante o namoro, o noivado e mesmo na casa do pai, o nobre André Gavião, tudo a chamava “culpada”? 

Na carta que deixa a João Paes após ter assassinado Filipa, Bento diz que a esposa  lhe pedira perdão pelos adultérios cometidos, entretanto, em  seu leito de morte, a Raposa, após ouvir-lhe todos os motivos que o levaram ao extremo, apenas lhe pede perdão por ter feito sofrer por todos os anos em que juntos viveram, sem dar confirmação da sua traição novamente incitando o leitor à duvida.

Era difícil para Teixeira lidar com uma mulher como Filipa Raposa. Aliado a todos os problemas que já tinham, a guerra dos sexos se intensificava em situações em que a esposa, às vezes, para falar mal, outras para ajudá-lo, completava  seus  versos  com  uma  facilidade  para   ele  desesperadora,  pois   ficava  horas  a  fio  repetindo  e  repetindo   o  verso anterior tentando buscar  algo  que  lhe  completasse. Apesar das mágoas, quando a mulher assim procedia, os dois uniam-se num mesmo “eu lírico”, num mesmo poema...

Culta, Filipa aproveitava-se das suas qualidades para zombar Bento pelos plágios cometidos em alguns de seus versos, muito embora não tivesse a certeza de que ele o fazia com intenção ou inconscientemente devido à aplicação das leituras clássicas. Numa noite, encolerizada, ela o chama de “plagiador descarado e poeta medíocre” (p. 22).

O enfoque de detalhes que Luzilá propõe a obra é muito forte, pois até os sobrenomes dos personagens leva a uma intertextualidade, uma vez que na cadeia alimentar, a raposa por lógica devora o animal mais frágil, o pinto. E, para impacto do leitor, ela cria um conflito para essa percepção se confunda, pois quando Bento a mata a visão machista social gera um grito, mostrando a honra lavada. Mas, sabiamente, o golpe fatal ela já tem dado, uma vez que parte dela a denúncia a Santa Inquisição.

É interessante  destacar   que   Rousseau  acreditava   serem  as  mulheres   artistas   em  menor grau, o que vem de encontro com a personagem alter-ego  da autora da obra. Filipa  Raposa vai provando, ao longo da narrativa, que sua capacidade artística, em algumas vezes  supera a de Bento, tendo ele mesmo reconhecido a boa poeta que era a esposa durante suas  recordações na prisão em Lisboa. Bento a queria, simplesmente comum e virtuosa como as demais mulheres, mas essa não era Filipa  Raposa   que   ansiava   em   seus  gestos,   atitudes   e   ações   pela   liberdade   e  independência.  Ela não se limita ao espaço interno, subverte aos costumes, passeia, colhe  flores, toma banho no riacho sozinha e também com os filhos, vai à Igreja,  emprega-se em Igarassu  como professora, mesma profissão  do marido  e  contribui  financeiramente no lar. (ROCHA-COUTINHO, 1994) 

Desde o início da   narrativa,   Filipa   encanta   e   assusta   Bento   com   sua   forte  personalidade estabelecendo-se, assim, a guerra “silenciosa” entre eles: ele recita um verso  de algum poeta clássico e ela o completa; ele compõe outros, ela ajuda ou critica e também  os  faz  com  fluidez  encantatória;  e  ainda,  como  ele,  é  suficientemente   qualificada  para  empregar-se como professora e comungar da mesma profissão do marido.

O investimento na felicidade pessoal no qual se refere Rocha-Coutinho, é tão- somente o que Filipa ansiava  se o marido  soubesse interpretá-la, já  que casa-se por amor.  Mas, por ser uma mulher à frente de seu tempo, não vê no marido a realização de suas ambições carnais que a teriam, talvez, controlado como o poeta assim desejava se tivesse sido “mais competente” em tais assuntos.

Há que se acrescentar que, em algumas ocasiões, Filipa o chamava para a cama e ele ficava trabalhando até mais tarde na esperança de que ela adormecesse... Outras vezes, ele se via “forçado” a cumprir com suas obrigações sem, ao menos, dar-lhe um beijo ou olhar em seu rosto durante o ato. Esse acaba sendo mais um motivo de dúvida para o leitor em  relação  à traição  da Raposa:  o  apetite  sexual  que lhe  dominava  o  ser. Mas, por mais que se procure no romance uma posição, acabamos nos entregando às próprias conclusões.

Considerações finais

O eixo central da obra de Luzilá é a condição feminina.  Sendo assim, a autora cumpre importante papel socialem Os Rios Turvospor retratar e denunciar um problema comum a todas as mulheres independente do contexto histórico no qual estejam inseridas: a busca pelo próprio espaço, pela liberdade sexual e de expressão da condição de opressão em que viviam (e, algumas ainda vivem) sob os olhares condenatórios dos homens, que desejavam limitar-lhes o espaço no intuito de controlá-las. Luzilá, ao romancear a biografia de Bento Teixeira, apresenta os primeiros ecos do feminismo na época no Brasil Colônia através da Filipa Raposa, que diante das tentativas de opressão do marido, busca a liberdade de sua arte, de seus desejos e do seu espaço na sociedade.

Mas é compreensível a morte da Raposa pelas mãos do poeta porque a personalidade de Filipa excedia os limites daquela sociedade julgada, exclusivamente, sob o olhar masculino.  Por esse motivo, a autora não teve outra saída se não dar um fim à personagem. Afinal, ela dá como modelo do que o olhar masculino considerava “decente”,as personagens mães dos protagonistas limitadas ao espaço do lar.

Nesse sentido, cremos que a autora, tendo-as inserido nesse contexto histórico com tantas particularidades comuns a todos os tempos, teve a intenção de denunciar e de chamar   a atenção do leitor para o fato de que em todos os períodos da história, lentamente, ocorrem   algumas transformações, mas a busca das mulheres pelo próprio espaço na sociedade e no  mercado de trabalho, ainda dominado pela filosofia e olhar masculinos.

A imagem de fragilidade e submissão sempre esteve ligada à mulher na história, principalmente na antiguidade, idade média e moderna. Muitos pensadores, teólogos e filósofos contribuíram para aumentar sua posição de inferioridade, mas o que não impediu que muitas mulheres se rebelassem contra tal atitude em todos os tempos.Em Filipa Raposapode se perceber esse discurso de relutância e em morte ela golpeia o Pinto, deixando-o inerte diante das cartas que revela escreverem vida. Muitoshomens em torno do tempo nutrem discursos nivelando a mulher às migalhas dos cães que caem da mesa. Contribuiu para o preconceito contra o sexo feminino ao longo dos tempos, na Antiguidade, Platão dizia "que os homens covardes que foram injustos durante sua vida, serão provavelmente transformados em mulheres quando reencarnarem"; Aristóteles afirmava que "a fêmea é fêmea em virtude de certas faltas de qualidade". Na Idade Média, as mulheres foram classificadas de três formas como prostitutas, bruxas ou santas servindo como modelo à Virgem Maria. As prostitutas eram as que se entregavam aos vícios da carne e utilizavam seus corpos para saciar os desejos ou para ganho. As mulheres bruxas eram as que de alguma forma iam contra os dogmas da igreja. Muitas mulheres que tinham de alguma forma acessam as artes, as ciências ou a literatura padeceram nas mãos da santa inquisição. Buscar alguma forma de conhecimento custou à vida de milhares de mulheres. As mulheres da Idade Média tinham que ser moldes de virtudes da Virgem Maria, dóceis, puras e devotadas aos seus maridos. Religiosos como São Tomas de Aquino dizia que "ela era um ser acidental e falho e que seu destino é o de viver sob a tutela de um homem, por natureza é inferior em força e dignidade". Tertuliano dizia que "era a porta do Demônio".

Quando a autora traz uma mulher frente há seu tempo com ímpeto de raposa, faz uma denúncia clara a maneira como o sexo feminino, historicamente, é destruído. Nutrindo-se de injúrias, políticas e desmando religiosos. A ausência de punição para Bento, que lavou a sua honra ao ter em mãos o sangue da não confessa mulher mostra a posição de inferioridade e repressão feminina.

Na idade moderna, não foi muito diferente. Renomados pensadores tiveram sua parcela de contribuição nas justificativas de sexo frágil. Rousseau, no século XVIII, disse que a mulher é um ser destinado ao casamento e a maternidade, Lamennais chamava-a de "estátua viva da burrice", Diderot escreveu que embora pareçam civilizadas "continuam a ser verdadeiras selvagens" e que ela era propriedade do homem. Napoleão não menos machista afirmava "a mulher é nossa propriedade e nós não somos propriedade dela". Kant a considera "pouco dotada intelectualmente, caprichosa indiscreta e moralmente fraca"; Schopenhauer coloca a mulher entre o homem e o animal e diz "cabelos longos, inteligência curta"; Nietzsche considera que "o homem deve ser educado para a guerra; a mulher para a recreação do guerreiro". Para Balzac, a única glória das mulheres estava em fazer pulsar o coração de um homem, para Proudhon a mulher que trabalhava era uma ladra que roubava o trabalho de um homem.

Todas essas impressões são retratos de um país, que ainda veste calças com botas de inquisidor. “O grito pode não ser mais ecoado na voz do poeta que adormece a matéria, mas traz a reflexão denunciadora do ontem e hoje do nosso país, “Brasil, mostra tua cara”!” Luzilá em sua obra trouxe essa analise e discussão diante da mulher no Brasil desde o período colonial até a atualidade.

Referências

FERREIRA, Luzilá Gonçalves. Os Rios Turvos . Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia  da. Tecendo por   trás  dos panos:  a mulher brasileira  nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

HAHNER, June. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas -

1850-1937. São Paulo, Brasiliense, 1980.

GOLDBERG, Anette. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de

uma utopia de liberação em ideologia liberalizante. Dissertação de

Mestrado, IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, 1987. 


[1] Graduada em Licenciatura em Letras pela Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE e cursando pós-graduação em Literatura e Interculturalidade.

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Autor: Luciana Carneiro Nunes


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