Tribunal do júri e a fundamentação das decisões



Tribunal do Júri e a fundamentação das decisões

 

Raphael Narcizo[1]

Resumo

O presente artigo trata do requisito da jurisdição da fundamentação das decisões instituído pela Constituição da República de 1988 em seu art. 93, IX e sua relação contraditória com o Júri Popular que se baseia no sistema da livre convicção em insofismável contrariedade ao Estado Democrático de Direito. Para tanto, será analisado brevemente as perspectivas mí(s)tica e de legislação simbólica das normas que tratam do Tribunal do Juri e do Conselho de Sentença.

Palavras-chave: Tribunal do Júri. Mito. Legislação Simbólica. Estado Democrático de Direito. Fundamentação das decisões.

1 INTRODUÇÃO

Este artigo propõe uma reflexão crítica acerca do Tribunal do Júri. Embora seja um assunto polêmico, com muitas discussões, não serão abordados temas como suposta ausência de técnica jurídica e neutralidade dos jurados, a influência da mídia e clamor social ou a teatralização do parlatório. Pretende-se, entretanto, pensar o Tribunal do Júri sobre a ótica do Estado Democrático de Direito, instituído pela Constituição da República de 1988, na qual está inscrito o direito-garantia[2] do devido processo, a exigibilidade da fundamentação das decisões e a desmi(s)tificação do julgamento por próprios pares como fundamento do caráter democrático.

 2 MITO

Há três pontos a serem analisados acerca do Tribunal do Júri que merecem destaque. Primeiro, o mito do caráter democrático da representação popular pela formação do Conselho de Sentença composto de sete cidadãos de notória idoneidade. Mito como:

produto de conjecturas socioculturais e religiosas vigentes em um determinado período da história da humanidade como parâmetro para o controle e a busca da regularidade social. É por isso que se pode afirmar que o mito legitima o exercício autoritário do poder”. (COSTA).

“O tribunal do júri denota caráter democrático ao transparecer a participação popular mediante o julgamento do acusado pelos seus próprios pares” (COSTA), mas como examinado por Fabrício Veiga Costa:

A procedimentalização do Tribunal do Júri no Brasil é de cunho inquisitorial no momento em que concentra nas mãos dos jurados a legitimidade para julgar, conforme suas convicções pessoais, impossibilitando a participação dos interessados na construção do provimento jurisdicional.

A soberania dos veredictos e o sigilo das votações denotam o caráter autoritário do Tribunal do Júri, uma vez que a dispensa da fundamentação jurídica das decisões dos jurados. (COSTA).

Embora Nestor Távora observa que a “doutrina diverge quanto à origem do Tribunal do Júri” (TÁVORA), o professor aponta que esta pode ser “visualizada tanto na Grécia como em Roma, havendo quem veja um fundamento divino para a legitimidade desse órgão” (TÁVORA), bem como de acordo com a maior parte da doutrina que “indica como raiz do Tribunal do Júri a Magna Carta da Inglaterra, de 1215, bem como seu antecedente mais recente, a Revolução Francesa de 1789.” (TÁVORA).

Independente da sua origem:

A instituição do Júri no Brasil surge em 1822, por intermédio do Decreto da lavra do Príncipe Regente D. Pedro e previa a competência do tribunal popular “para o julgamento do abuso de liberdade de imprensa.” Sua composição era de 24 cidadãos, “homens bons, honrados, inteligentes e patriotas”, nomeado pelo Corregedor do Crime da Corte e Casa. (CUNHA; PINTO, 2009, p. 148)

Desde então, mitiga-se a racionalidade crítica, no procedimento caracterizado pelo sistema da íntima convicção, pelo argumento de uma suposta legitimidade mi(s)tificada junto ao suposto caráter democrático proporcionado pela composição do Tribunal do Júri.

Não se discute, contudo, a violência praticada pela aplicação de um direito normalizador por supostos indivíduos idôneos, que outrora eram os homens bons, honrados, inteligentes e compatriotas. Somente em uma suposta democracia pela “representação popular” de uma sociedade civil (sic) de homens normais é que as decisões se limitam a critérios de sensibilidade e bom senso.

Neste sentido, é possível ver o caráter democrático do conselho de sentença formado por “pessoas idôneas” como mito que “justifica” as decisões secundum conscientiam, mas estas “não tem substrato legal, porque adotam juízos de convicção íntima, sem que esta convicção esteja balizada em critérios legais.” (LEAL, 2010).

3 LEGISLAÇÃO SIMBÓLICA

Desde 1822 quase todas as Constituições – a única que não trouxe foi a de 1937 – institucionalizaram o Tribunal do Júri (CUNHA; PINTO) que, embora polêmico, tem o papel de confirmação de valores sociais, no caso em tela preconizada pelo clamor punitivo dos crimes dolosos contra a vida, sem descurar da aparência mítico-democrática já exposta e, ainda, de legislação-álibi, para fortificação da confiança dos cidadãos no Estado e nos sistemas políticos e jurídicos. (NEVES, 2007).

A característica de legislação simbólica como leciona Marcelo Neves se torna uma constante no espaço do mí(s)tico, naturalizado, do convencionado e do supostamente pactuado conforme as “sequelas místicas do poder constituinte originário” (LEAL), lugar onde não se discute ou não se toma o devido cuidado ao falar sobre uma decisão democrática, que é:

exatamente identificá-la dentro da estrutura do devido processo constitucional, por suas expansividades judiciais, legislativas e administrativas, como provimento de todos os sujeitos do processo e não do ato humano monocrático ou colegiado decorrente de um dos sujeitos do processo como função ou órgão protetor da estrutura procedimental processualizada que, a rigor democrático, dispensa qualquer forma volitiva de tutela ou cobertura judicial cortesã, porque é na estrutura processual, como espaço jurídico-pluralístico-discursivo, que se legitima toda atividade estatal normativa no paradigma jurídico da democracia. (LEAL, 2002, p.130).

Quando se propõe a democratização do espaço procedimental no paradigma do Estado Democrático de Direito, não se trata apenas de repensar a hermenêutica dos juízos de ponderabilidade e conveniência monocráticos ou tribunalícios do poder judicante (LEAL), mas sim de todos institutos procedimentais como o tribunal do júri que coloca o acusado em posição de “fora-da-lei”[3] e inimigo da sociedade civil (sic) uma vez que permite ao jurados, em um suposto espaço democrático legitimado, decidir sem fundamentar com violenta agressão aos princípios constitutivos do processo, sendo este como:

uma institucionalizante teoria linguístico-jurídica pela qual é firmado o pacto-sígnico (nível instituinte e constituinte), quanto a significados dos binômios estruturantes, não disjuntivos, de um mundo humano de bases fundantes e biunívocas de vida-contraditório, liberdade-ampla defesa, dignidade-isonomia, a balizarem a construção de uma sociedade jurídico-política (forma de vida humana) por uma comunidade de legitimados ao processo (povo) [...]. (LEAL, 2010, p.41).

3 fundamentação das decisões

Conforme lição de Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira:

Não é injustificado o fato de que ordens jurídicas que refletem o paradigma do Estado Democrático de Direito determinem sob pena de nulidade, que as decisões judiciais sejam fundamentadas, no quadro de um devido processo. (OLIVEIRA, 2001, p. 141)

A Constituição da República de 1988 ao adotar este paradigma estabelece que:

Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:

[...]

IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;

Embora a Constituição institua a fundamentação das decisões como requisito da jurisdição, conforme já exposto, há:

um resquício do sistema da Livre Convicção no art. 464 do Código de Processo Penal, que dispõe sobre o Júri Popular. Neste procedimento, cabe ao Conselho de Sentença decidir segundo a consciência de cada um dos seus integrantes, sendo despicienda a fundamentação descisória (THIBAU, 2011, p.51)

Como assevera Vinicius Lott Thibau, a “liberdade na apreciação do resultado probatório significa a possibilidade da ausência de qualquer logicidade empregada na avaliação judicial” (THIBAU, 2011, p.50) e a ausência de fundamentação, “impõe-se como consequência da vedação de controle, pelas partes, da metodologia utilizada pelo julgador para alcançar a congnominada verdade real ou material.” (THIBAU, 2011, p.50).

No sistema da livre convicção, adotado pelo sistema common law, privilegia-se “a dominação estatal em detrimento do povo” (MADEIRA, 2006, p.158), o juiz adquire “o convencimento da ocorrência dos fatos com a prova dos autos, fora da prova dos autos e até contra a prova dos autos”. (MADEIRA, 2006, p.158).

Em um procedimento processualizado, “nasce o dever funcional do juiz de fundamentar a decisão, analisando todos os vértices do objeto litigioso delimitado argumentativamente pelas partes”. (MADEIRA, 2006, p.159).

André Cordeiro Leal citado por Dhenis Cruz Madeira é preciso quanto à relação do requisito da fundamentação das decisões e o Estado Democrático de Direito:

a questão de fundo que é deslembrada pela afirmativa de que o juiz é livre para decidir, bastando que motive ‘racionalmente’ sua decisão, é exatamente a da própria ‘racionalidade’ decisional no Estado Democrático de Direito, porque o juiz, mediante mera indicação de textos legais e de fórmulas de que se utilizara para aplicação das normas ao caso posto extirparia das partes o direito fundamental de construir discursivamente a própria racionalidade decisória.

Mais do que garantia de participação das partes em simétrica paridade, portanto, o contraditório deve efetivamente ser entrelaçado com o princípio (requisito) da fundamentação das decisões de forma a gerar bases argumentativas acerca dos fatos e do direito debatido para a motivação e das decisões.

 Uma decisão que desconsidere, ao seu embasamento, os argumentos produzidos pelas partes no iter procedimental será inconstitucional e, a rigor, não será sequer pronunciamento jurisdicional, tendo em vista que lhe faltaria a necessária legitimidade [...] (LEAL apud MADEIRA, 2006, p.162)

CONCLUSÃO

Resta evidenciado a incompatibilidade do procedimento do Tribunal do Júri baseado na íntima convicção dos jurados, que decidem conforme suas sensatas e inteligentes mentes em afronta ao devido processo, aos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia.

O suposto cidadão que é acusado por um crime doloso contra a vida é, a priori, tido como “fora-da-lei”, uma vez que lhe é tirado ou, no mínimo, mitigado os direitos fundamentais que não só teorizam a procedimentalidade legislativa, executiva e judiciária, mas que são a garantia de participação em formas de vida não autoritárias.

É imprescindível e urgente repensar e modificar tudo no ordenamento jurídico brasileiro de fundações mí(s)ticas e de legislação simbólica que acabam por institucionalizar meios de violência para um Estado que se propõe a tutelar uma pressuposta sociedade civil (sic) em detrimento dos direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito que, neste caso especificamente, confrontam os princípios constitutivos do processo e a procedimentalidade democrática.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado. 1988.

BRASIL, Código de Processo Penal (1941). Código de Processo Penal. In: GOMES, Luiz Flávio. RT Mini Códigos. 13 ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2011. p. 344-477.

COSTA, Fabrício Veiga. A desmitologização do Tribunal do Júri pela racionalidade crítica. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 94, nov 2011. Disponível em: . Acesso em jun 2012.

CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Processo Penal e doutrina prática. Salvador: Juspodivm, 2009.

MADEIRA, Dhenis Cruz. A cognição no direito democrático. 2006. 228f. Dissertação (Mestrado)

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 9. ed. rev. e aum. São Paulo: Forense, 2010.

LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria processual da decisão jurídica. São Paulo: Landy, 2002.

LEAL, Rosemiro Pereira. Processo como teoria da lei democrática. Belo Horizonte: Forum, 2010.

STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do Júri. Símbolos e Rituais.  4ª ed. rev. E mod. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001

TÁVORA, Nestor; ANTONNI, Rosmar. Curso de direito processual penal. 3. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2009.

THIBAU, Vinícius Lott. Presunção e prova: no direito processual democrático. Belo Horizonte: Arraes, 2011.

[1] Graduando (8° período) da Faculdade Mineira de Direito pela PUC Minas. [email protected]

[2] “instituto jurídico democrático destinado à desprivatização e despersonalização da fidúcia. Direito-protegido sem vinculo jurídico de sujeição de uma pessoa a outra.” (LEAL, 2010, p. 290).

[3] “A lei (sistema jurídico) que não permite esta inclusão dis-cursiva (contraditorializado) cria o “fora-da-lei” que vai marcar a ausência de democracia.” (LEAL, 2010, p.42).

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