O acordo de leniência e as inovações trazidas pela lei 12.529/11



O acordo de leniência e as inovações trazidas pela Lei 12.529/11

Flávia Siqueira Costa Pereira[1]

 

O acordo de leniência é uma espécie de “delação premiada”, um benefício que pode ser concedido pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) ao agente que colaborar com as investigações e com o processo administrativo, auxiliando na identificação dos demais envolvidos na infração e na obtenção de informações e documentos que comprovem sua ocorrência, que tem o potencial de extinguir a punibilidade nos crimes contra a ordem econômica.

Muitos dos delitos contra a ordem econômica, em especial aqueles que configuram lesão à livre concorrência, são difíceis de identificar e investigar sem o auxílio daqueles envolvidos na conduta delituosa, já que possuem caráter sigiloso e fraudulento[2]. De fato, a experiência demonstrava que eram remotas as possibilidades de uma persecução regular infiltrar nos blocos de controle dos cartéis para que fosse possível a devida arrecadação das provas necessárias a ensejar uma condenação e, portanto, a saída encontrada foi o encorajamento da confissão e colaboração de um dos agentes envolvidos no crime, para que pudesse apresentar provas, mormente em relação às reuniões clandestinas, e indicar os demais envolvidos.

Neste prisma, o acordo de leniência, inspirado em instituto do Direito Norte Americano, foi adotado em nosso ordenamento jurídico, funcionando como um incentivo para que os agentes envolvidos nestes tipos de delitos colaborem nas investigações e facilitem a persecução criminal e administrativa, situação na qual o Estado irá ser mais leniente, ou brando, na reprovação da sua conduta.

A Lei 12.529/11 veio à baila no intuito de estruturar o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispor sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, e mudou a regulação acerca do acordo de leniência, revogando a Lei 8.884/94 que até então dispunha sobre seu funcionamento e requisitos.

O Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência tem como uma de suas mais relevantes funções a investigação de condutas anticompetitivas praticadas tanto por empresas e associações quanto por pessoas físicas, para que possibilite a condenação destes agentes que praticam condutas ofensivas à concorrência. A fixação de preços ou condições de venda entre concorrentes (cartel), a discriminação de preços, a venda casada, dentre outros, são exemplos de condutas lesivas à concorrência e passíveis de sanção.

A referida lei exprime o interesse da sociedade em conceder benefícios aos infratores que queiram cessar a conduta e passar a cooperar com as autoridades de defesa da concorrência, a fim de permitir a condenação dos demais autores dos crimes. De fato, o interesse em desvendar e punir todos os envolvidos nos delitos contra a ordem econômica se sobrepõe ao de punir um único indivíduo ou empresa.

 No que tange ao acordo de leniência, a Lei 12.529/11 traz algumas inovações. Em seu artigo 86 dispõe que o “Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável (...) com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração; e II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação.”

 Tal dispositivo legal praticamente reproduz a previsão do revogado artigo 35-B da Lei 8.884/94[3], adequando-o, contudo, à reformulação da composição do CADE proposta pela própria lei, que excluiu a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, incluindo-a na própria estrutura do CADE, sob a denominação de Superintendência-Geral.

O acordo firmado disporá sobre as condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo. Já os requisitos que devem ser preenchidos para a celebração do acordo por empresas continuam os mesmos, e todos necessariamente devem estar presentes. São eles: (i) a empresa deve ser a primeira a se qualificar com respeito à infração noticiada ou sob investigação; (ii) a empresa deve cessar completamente seu envolvimento na infração a partir da data da propositura do acordo; (iii) a Superintendência-Geral não tenha provas suficientes para ensejar uma condenação à época da propositura do acordo; e, por fim, (iv) a empresa deve confessar sua participação no delito, e cooperar plenamente com as investigações e com o processo administrativo, comparecendo a todos os atos processuais.

Insta mencionar que, de acordo com o § 2º do artigo 86 da referida lei, as pessoas físicas também poderão se beneficiar dos acordos de leniência, isto se preenchidos os requisitos acima expostos, mas sendo-lhe dispensado que seja a primeira a se qualificar com respeito à infração. 

A proposta de acordo será sigilosa, nos termos do § 9º do artigo 86 da lei, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo. Assim, caso a proposta de acordo seja rejeitada, não haverá que se falar em confissão quanto à matéria de fato, tampouco reconhecimento da ilicitude da conduta, não sendo possível a divulgação da proposta.

 Por ocasião do julgamento do processo administrativo, se o acordo tiver sido cumprido, na hipótese de a proposta de acordo ter sido apresentada à Superintendência-Geral sem que tivesse conhecimento da infração noticiada, será declarada extinta a punibilidade do agente em relação à Administração Pública. Nos demais casos, em que o agente tenha se proposto a realizar o acordo depois que a Superintendência-Geral já tivesse conhecimento da conduta, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços, ponderada de acordo com a efetividade da colaboração prestada e a boa-fé do agente.

A nova lei modificou a competência para a declaração de extinção da punibilidade ou redução da pena, que agora deve ser feita pelo Tribunal, no momento do julgamento. Antes, a competência era atribuída ao próprio CADE, contudo, a modificação foi feita para evitar questionamentos acerca da sua constitucionalidade, já que era celebrado por uma autoridade administrativa sem que houvesse a intervenção de uma autoridade judicial.

A Lei 12.529/11 manteve a possibilidade de extensão dos benefícios do acordo de leniência às empresas do mesmo grupo, de fato ou de direito, bem como aos seus dirigentes, administradores e empregados envolvidos no delito, de acordo com a previsão do § 6º do artigo 86, contanto que o acordo seja firmado em conjunto e esteja em consonância com todas as condições impostas. 

Em contrapartida, inovou em relação à legislação passada ao prever o impedimento de celebração de outro acordo de leniência caso o mesmo seja descumprido, o que perdurará pelo prazo de três anos a contar da data do seu julgamento.

 Ainda, foi excluída da legislação a previsão do § 1º do artigo 35-B da Lei 8.884/94[4], o qual impedia a celebração do acordo em relação às empresas ou pessoas físicas que tivessem estado à frente da conduta delituosa. Desta forma, não importa mais o status da participação do agente no crime, sendo possível a celebração do acordo mesmo nos casos em que se mostrava como “agente principal”.

 Por fim, a celebração do acordo de leniência suspende o curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia em relação ao agente que dele se beneficia. Tal benefício, que antes se aplicava somente aos crimes contra a ordem econômica previstos na Lei 8.137/90, agora é estendido aos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, como os previstos nas leis 8.666/93 e no artigo 288 do decreto-lei 2.848/40. Caso o acordo seja devidamente cumprido, haverá a extinção da punibilidade em relação a estes crimes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Secretaria de Direito Econômico. Combate a cartéis e programa de leniência. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Direito Econômico, 2009. 33 p.

NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. 1312 p.

RODAS, João Grandino. Acordos de leniência em direito concorrencial: práticas e recomendações. Revista dos Tribunais (São Paulo), São Paulo, v.96, n.862 , p.22-33, set. 2007.

SOBRAL, Ibrahim Acácio Espírito. O acordo de leniência: avanço ou precipitação. Revista do IBRAC, São Paulo, V. 8, n. 2, p. 131-146, 2001. 

ZANOTTA, Pedro; BRANCHER, Paulo Marcos Rodrigues (Org.). Desafios atuais do direito da concorrência. São Paulo, SP: Singular, 2008. 341 p.


[1] Acadêmica de Direito, cursando o 10º período na Faculdade Mineira de Direito – PUC Minas.

[2] BRASIL. Secretaria de Direito Econômico. Combate a cartéis e programa de leniência. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Direito Econômico, 2009. p. 17.

[3] “Art. 35-B. A União, por intermédio da SDE, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um a dois terços da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte:

I - a identificação dos demais co-autores da infração; e 

II - a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação.”

[4] “Artigo 35-B (...) § 1º O disposto neste artigo não se aplica às empresas ou pessoas físicas que tenham estado à frente da conduta tida como infracionária.”


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