Reforma agrária: a efetivação das funções social e econômica da propriedade



Isabel Maia Coêlho* 

Resumo: A presente intervenção objetiva analisar a reforma agrária sob a perspectiva de reparo parcial, embora tardio, da péssima estruturação fundiária brasileira. A conjuntura histórica do país evidencia a concentração da propriedade agrária, bem como seu subaproveitamento e até mesmo ociosidade, circunstâncias que afrontam o mandamento constitucional da função social da propriedade. São objeto deste trabalho os desdobramentos econômico e social agregados à reforma agrária, destacada a concessão de incentivos creditícios e técnicos aos beneficiários, para além da mera redistribuição e regularização da posse dos imóveis rurais. 

Unitermos: reforma agrária; Direito Constitucional Agrário; função social da propriedade. 

1 Introdução 

Os problemas atinentes à estrutura fundiária brasileira têm origem no período colonial. Àquela época, a coroa portuguesa cedeu imensuráveis extensões de terra a particulares com o desígnio de ocupar o vasto território de sua mais nova propriedade. O instituto das sesmarias perdurou por três séculos e, ao seu término, parte significativa das glebas outorgadas era constituída por latifúndios improdutivos resultantes, dentre outros fatores, do extrativismo mineral. Nem mesmo a ‘Lei de Terras’ - datada de 1850 - e a transição para o regime republicano foram hábeis a modificar substancialmente a criticável distribuição das terras no Brasil.

No interregno de1930 a1960 as discussões acerca da questão agrária ganharam foros de relevância, no entanto, a ação governamental efetivamente reformista jamais foi tida como prioritária e/ou possível, notadamente porque a questão agrária tornou-se também uma questão político-partidária e ideológica, sem que fosse considerada sua viabilidade econômica e sua instrumentalidade social. A propósito, há quem patrocine a intervenção estatal meramente paliativa, propagando desarrazoadas soluções para o problema em contraposição à ‘custosa’ reforma agrária, desprezando o fato de que a luta pela terra transcende o que é economicamente avaliável e de que a reforma agrária constitui meio de inclusão social ativa, corolário da dignidade da pessoa humana garantida em sede constitucional.

Por outro lado, não se pode desconsiderar que as regularizações fundiárias e os assentamentos, em que pese haver divergências, ultrapassam a condição de meros atos administrativos e representam essencialmente a reforma agrária, posto que tal instituto abarca toda ação tendente a descentralizar a propriedade da terra.

É preciso enfatizar que o processo de reforma agrária na Constituição da República de 1988 está assentado no instituto da desapropriação da propriedade que não cumpre sua função social e da tributação em alíquotas progressivas que desestimulam a manutenção de propriedades improdutivas. Nota-se, portanto, que o constituinte originário pretendeu condicionar o exercício do direito de propriedade a interesses marcadamente sociais.

 

 2 Institutos constitucionais da política agrária

 

Leciona Emilio Alberto Maya Gischkow que a política agrária representa a ação específica do Poder Público ou dos elementos do poder, consistentes na eleição dos meios adequados para influir na estrutura e na atividade agrária com o objetivo de estabelecer um ordenamento satisfatório dessa atividade, obtendo desenvolvimento econômico e bem-estar da comunidade  (GISCHKOW apud BARROSO, 2004, p. 88).

Nesse passo, o legislador constituinte projetou o imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), a reforma agrária e as políticas agrícolas de modo a atenuar a concentração e a manutenção de glebas rurais ociosas e subutilizadas, reconhecendo tais problemas como de ordem estrutural e não meramente social.

Em matéria de tributação da terra a CR/88 em seu artigo 153, inciso VI, § 4° e a Lei 9.393/96 conferem ao ITR função extrafiscal, isto é, a finalidade precípua da exação fiscal em comento não é a arrecadação, mas desestimular o subaproveitamento da terra com a majoração de sua alíquota, sendo, pois, notório instrumento de política agrária.

A reestruturação fundiária intentada pelo constituinte (artigos184 a186 da CR/88) tem como um de seus pilares efetivar a justiça distributiva e encontra-se substancializada no instituto da desapropriação por interesse social, típico meio de intervenção do Estado na propriedade privada com vistas a garantir sua função social.

Cumpre ressaltar que o número de propriedades desapropriadas não alterou a estrutura agrária do Brasil. Dados recentes divulgados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) apontam que no ano de 2011 foram assentadas pouco mais de 22.000 (vinte e duas mil) famílias, todavia, a reforma agrária não se subsume a assentamentos. Muito além da concessão da propriedade, a questão agrária carece de políticas que promovam o adequado estudo do potencial produtivo da terra, de assistência técnica e treinamento dos beneficiados com a reforma agrária, isto é, exige-se um conjunto de políticas que extrapolam a simples desapropriação para assentar famílias.

Nesse sentido, valiosa é a lição do Professor José de Souza Martins:

A reforma agrária é um tema político que se propõe em termos qualitativos e não em termos quantitativos. Não é o número de desapropriações ou o número de assentamentos em terras desapropriadas ou compradas que definem o perfil da reforma agrária brasileira, sua justeza ou não. O essencial é que haja um setor ponderável da sociedade reivindicando a ampliação do lugar da agricultura familiar no sistema econômico e que em parte essa agricultura familiar esteja nas mãos de pessoas que se ressocializaram na luta pela reforma agrária e nela se politizaram. É o que assegura no campo e no interior a diversificação das oportunidades de trabalho e a modernização não só econômica, como também das mentalidades e das relações sociais. Mesmo que a referência ideológica seja equivocada e insubsistente, posta além da realidade histórica de quem luta pela reforma ou é por ela alcançado. É uma descabida perda de tempo essa querela sobre números que, tanto num lado como no outro, representam algo diverso do que está sendo discutido. [1]

 

Um acordo firmado entre o governo brasileiro e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) deu origem ao Programa de Consolidação e Emancipação de Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária, executado pelo INCRA. Embora incipiente, o propósito do citado programa é louvável, a saber, investir em infraestrutura, assessoria técnica e preparo dos assentados, concedendo, portanto, subsídios para o desenvolvimento social e econômico – efeitos que devem ser agregados à política de redistribuição da renda em análise.   

A política de desenvolvimento rural é o derradeiro instituto constitucional de que ora se ocupa. O artigo 1°, § 2° do Estatuto da Terra dispõe que a política de desenvolvimento rural é o conjunto de providências de amparo à propriedade da terra, que se destinam a orientar, no interesse da economia rural, as atividades agropecuárias, seja no sentido de garantir-lhes o pleno emprego, seja no sentido de harmonizá-las com o processo de industrialização do país. Em consonância com o estatuído, a CR/88 dispõe em seu art. 187 que a política agrícola será planejada e executada (...) com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transporte. A seguir, são elencados no citado dispositivo constitucional os instrumentos para sua realização, abarcando mecanismos creditícios e fiscais; a instituição de preços compatíveis com os custos de produção e a garantia de comercialização; incentivo à pesquisa e tecnologia; assistência técnica e extensão rural; seguro agrícola; fomento ao cooperativismo; eletrificação rural e irrigação e, por fim, habitação para o trabalhador rural.

Para Lucas Abreu Barroso outros três mecanismos da política agrária imprescindíveis para obtenção dos resultados pretendidos pela Constituição são a inalienabilidade pelo prazo de dez anos dos títulos de domínio ou de concessão de uso de imóveis rurais distribuídos pela Reforma Agrária (art. 189, caput), a regulação e limitação da aquisição ou arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira (art.190) e a usucapião agrária (art. 191). (BARROSO, 2004, p. 96).

 

3 Função social e econômica da propriedade agrária

 

Sobre as variadas funções da propriedade, pontua Juan José Sanz Jarque que:

 

O tema da questão agrária se estende e identifica universalmente hoje com o histórico e mais amplo tema da ‘eterna questão da terra’ e da propriedade da terra, nas múltiplas e diversas funções que esta como superfície habitável do globo terrestre deve cumprir, a serviço do homem e da comunidade política em geral. [2]

 

Em substituição à propriedade enquanto direito absoluto, a Constituição Federal atribui à terra nítida conotação social. O ordenamento jurídico pátrio não preconiza a supressão da propriedade como direito individual e sim apregoa a conservação do direito de propriedade como meio de estímulo ao trabalho e à produtividade, entretanto, impõe restrições ao exercício do direito de propriedade com o escopo de adequá-lo aos interesses públicos.

É essa adequação que justifica a intervenção do Estado na propriedade privada. O mesmo Estado que garante o direito à propriedade torna impositivo o aproveitamento racional do solo, isto é, confere ao titular do bem as faculdades de usar, gozar e dispor da propriedade agrária e, simultaneamente, incorpora àquele direito encargos consistentes no uso econômico devido da terra. 

É irrefutável o fato de que a manutenção de níveis satisfatórios de produtividade e a conservação de recursos naturais – incumbências atribuídas ao proprietário da terra – substanciam não só o cumprimento da função social da propriedade, mas também sua função econômica, posto ser esta indissociável daquela. Evidentemente, a propriedade imobiliária agrária é um bem que importa à economia, notadamente se considerada sua aptidão em gerar riquezas.

Com acuidade o social-democrata Karl Kautsky salientou que:

 

No momento em que se institucionaliza a propriedade privada da terra e esta se torna produtora de mercadorias, os respectivos lotes isolados também se transformam em mercadorias. Comoos meios de produção se transformam em capital, por outro lado, nada impede que também se veja na terra uma forma de capital (...).[3]

 

Daí desponta o motivo pelo qual o ordenamento jurídico brasileiro visa coibir a manutenção de imóveis rurais para fins puramente especulativos, exigindo que o senhorio dê função social à propriedade. Não o fazendo, a União está autorizada a desapropriar o imóvel para fins de reforma agrária, lastreando o decreto expropriatório na supremacia do interesse social, consoante se extrai do art. 184 da CR/88.

É neste contexto que se torna indispensável o escólio de José de Souza Martins ao discorrer sobre o bloqueio econômico – insista-se, e também social – engendrado pela concentração imobiliária, que ora se transcreve:

 

A questão agrária é, em termos clássicos, o bloqueio que a propriedade da terra representa ao desenvolvimento do capital, à reprodução ampliada do capital. Esse bloqueio pode se manifestar de vários modos. Ele pode se manifestar como redução da taxa média de lucro, motivada pela importância quantitativa que a renda fundiária possa ter na distribuição da mais-valia e no parasitismo de uma classe de rentistas. [4]

 

Destoando do posicionamento de alguns segmentos da sociedade, a reforma agrária não se encerra em uma política de distribuição de renda. O instituto em apreço, além de garantir moradia, produção para subsistência e trabalho aos beneficiários, deve ser visto como instrumento estratégico que viabiliza modificações no vigente modelo de desenvolvimento agrícola, sustentando o crescimento econômico

Em afortunada síntese versando acerca da relevância da reforma agrária, o sociólogo e professor José de Souza Martins aduz que:

 

Se as condições de vida dos trabalhadores em geral e dos pequenos agricultores são ruins, é necessário que elas melhorem para que eles ampliem sua entrada no mercado com seu trabalho ou seus produtos. Se eles entram no mercado de produtos ou no mercado de força-de-trabalho de modo restrito, reduzem as possibilidades da reprodução ampliada do capital em seu conjunto. Por isso, em princípio, a modernização das relações de trabalho e a melhora das condições de vida dos trabalhadores interessa, em primeiro lugar, ao próprio capitalista. Este é um ponto que pede discussão: estamos falando da pobreza como empecilho ao desenvolvimento do capital e, por extensão, ao desenvolvimento da sociedade, ainda que nos limites do capitalismo. [5] 

4 Conclusão 

Ao término do presente trabalho conclui-se que a política fundiária brasileira não deve limitar-se à redistribuição e à regularização da posse da terra, mas tornar a reforma agrária uma intervenção social que tenha desdobramentos agregados, notadamente econômico. Para tanto, faz-se necessário apoio institucional do Estado para uma inserção social ativa, substancializada na concessão de apoio técnico e creditício aos beneficiários da reestruturação agrária, o que viabilizará o desenvolvimento das unidades familiares de produção agrícola e, por conseguinte, sustentará seu crescimento econômico.  

5 Referências Bibliográficas 

BARROSO, Lucas Abreu; PASSOS, Cristiane Lisita. Direito agrário contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004

 

CORAZZA, Gentil; MARTINELI JR., Orlando. Agricultura e questão agrária na história do pensamento econômico. Teoria e Evidência Econômica, Passo Fundo , v.10, n.19 , p.09-36, nov.2002. 

KAUTSKY, Karl. A questão agrária. São Paulo: Nova Cultural, 1986. 401p.

 

MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000).

 

PROENÇA, Alencar Mello. Compêndio de direito agrário. Pelotas: Educat, 2007. 329p. 

SILVA, José Afonso da. O constitucionalismo brasileiro: (evolução institucional). São Paulo: Malheiros, 2011. 544 p. 

[1] MARTINS, José de Souza. Reforma agrária – o impossível diálogo sobre a História possível. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 11(2): 97-128, out. 1999 (editado em fev. 2000)..

[2] No original: El tema de la cuestión agraria se extiende e identifica universalmente hoy con el histórico y más amplio tema de 'la eterna cuestón de la tierra' y de la propiedad de la tierra, en las múltiples y diversas funciones que esta como superficie habitable del globo terrestre debe cumplir, al servicio del hombre y de la Comunidad Política en general. BARROSO, Lucas Abreu; PASSOS, Cristiane Lisita. Direito agrário contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 27.

[3] KAUTSKY, Karl. A questão agrária. Brasília: Linha Gráfica Editora, 1998. p. 121.

[4] MARTINS. Ibidem. p. 99.

[5] MARTINS. Ibidem. p.

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Autor: Isabel Maia Coêlho


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