Sobre símbolos e cultura



Em 19 de novembro comemoramos o Dia da Bandeira. Como sabemos, o pavilhão nacional foi concebido logo após a Proclamação da República, em 1889. Idealizado a partir da antiga bandeira do Império, tem o escopo de representar a nação brasileira, o que tem se mostrado um ideal cada vez mais incompreendido.

Qualquer brasileiro com mais de trinta anos pode notar, caso recorra à memória, que o Dia da Bandeira vem perdendo importância ao longo do tempo. Que não caiamos, entretanto, na mesmice de culpar apenas o processo educacional brasileiro por isso. Esse também é um efeito, e suas causas, acredito, são mais profundas. Se me aventurasse a explicar esse fenômeno, indicaria algo que por vezes passa despercebido: a Bandeira Nacional está perdendo seu poder simbólico e, consequentemente, seu sentido.

O universo da linguagem é composto por símbolos. Eles são tão importantes que alguns antropólogos tomam nossa capacidade de simbolização como aquilo nos distingue dos animais irracionais: podemos ensinar um cão a se curvar perante um crucifixo, mas nunca poderemos ensiná-lo o que esses dois símbolos (o crucifixo e o gesto de se prostrar) significam. Como nos ensinou um dos maiores filósofos do século XX, Ludwig Wittgenstein, a constituição da linguagem (e necessariamente, dos símbolos que a compõem) se dá, entre outros fatores, no seu uso cotidiano, pela práxis à qual somos submetidos. Não admira, portanto, que para muitos compatriotas, o verde-amarelo represente apenas um time de futebol, uma atleta ou um piloto, pois a idéia da representação de uma síntese de ideais e valores comungada por todos os brasileiros parece cada vez mais uma utopia, visto que não é isso que encontram em seu universo simbólico cotidiano.

Poder-se-ia indicar o advento e o aprofundamento da globalização como o grande motor desse processo de perda de identidade nacional que vivenciamos. Afinal, a queda de fronteiras culturais, econômicas e políticas torna cada vez mais frágil o papel do Estado Nacional. Por exemplo, desde a década de 1980, a transnacionalização da economia e o conseqüente aumento da fluidez do capital internacional têm restringido o papel dos Estados, seja como fomentadores ou como reguladores dos processos e políticas econômicas.

A globalização, contudo, é apenas parte desse contexto. O Estado Nacional é uma criação moderna. É a Revolução Francesa, segundo Eric Hobsbawn, que faz surgir a idéia de nação como união de um povo. Desde a Renascença, alguns dos Estados Modernos já se encontravam em vias de estruturação, mas ainda eram indissociáveis da figura do soberano e da religião dominante, cabendo ao povo a obediência, e só. A Queda da Bastilha possibilitou ao povo francês tomar a consciência de ser o artífice de seu próprio destino, ideal iluminista que se difundiu rapidamente pela Europa, sendo a chamada “Primavera dos Povos” uma de suas conseqüências diretas. A substituição, na Bandeira do Brasil, do brasão da coroa imperial pela esfera azul estrelada, cem anos após a Revolução Francesa, caracteriza exemplarmente essa mudança de perspectiva.    

O maior problema, entretanto, é que até mesmo quando procuramos ressaltar nossa identidade cultural, o fazemos de modo fragmentário e superficial, privilegiando aspectos locais, familiares ou pessoais. Essa é a faceta mais nefasta do preconceito: procuramos nos dissociar de uma identidade cultural à qual pertencemos. Não há contradição no fato de eu ser caucasiano e reconhecer a importância e a beleza das contribuições da raça negra para o processo de formação da cultura nacional, pois mesmo inconscientemente, somos todos parte desse caldeirão que congrega diversos matizes, onde não deve caber qualquer espécie de preconceito. Quando entendermos e aceitarmos essa realidade, a Bandeira Nacional poderá simbolizar de fato tudo que em tese representa.

Jacintho Del Vecchio Junior

E-mail: [email protected]

 

Publicada originalmente no Jornal de Jundiaí em 24/11/2007

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